BASE PRINCIPIOLÓGICA DO CPC E ALGUMAS INCONGRUÊNCIAS RECURSAIS NO CPC DE 2015

29/05/2022

 Coluna Advocacia Pública e outros temas jurídicos em Debate / Coordenadores Weber Luiz de Oliveira e José Henrique Mouta

No presente estudo, discute-se algumas das incongruências recursais, presentes no CPC/2015, a partir de uma interface entre normas fundamentais processuais e a práxis forense: um novo olhar a partir da base principiológica do código.

Quando o tema é recursal, a primeira coisa que vem à mente, é a eistência tanto de um juízo de mérito quanto um juízo de admissibilidade. Aqui, vamos nos ater a questãoes relativas ao juízo de admissibilidade.

I - OS PRESSUPOSTOS DE ADMISSIBILIDADE RECURSAL COMO MATÉRIA DE ORDEM PÚBLICA e A SUPRESSÃO DO JUÍZO DE ADMISSIBILIDADE DA APELAÇÃO NO JUÍZO “A QUO”

Conforme o ensinamento de Friedrich Lent e Othmar Jauernig[1], citados por Sérgio Gilberto Porto e Daniel Ustárroz, “os pressupostos da admissibilidade correspondem aos pressupostos gerais do processo. Como na sua falta não pode seguir-se qualquer decisão de fundo da acção, também aqui na falta de admissibilidade não pode haver qualquer objecto do recurso; antes, este tem de ser rejeitado por inadmissível sem exame do seu objeto.”

Seja como for, os requisitos de admissibilidade recursal são matéria de ordem pública e devem ser apreciados, a qualquer tempo, por qualquer instância, mesmo que o Órgão Jurisdicional competente, à época, não o tenha feito. Portanto, entende-se que os requisitos de admissibilidade recursal são questão de ordem pública que refletem o interesse de toda a sociedade e, dessa forma, são imperativos que norteiam a correta prestação jurisdicional.

Dentre os requisitos de admissibilidade recusal, neste momento e para esta análise, emergem a tempestividade e o cabimento do recurso.

Pelo Código de 73, cabia ao juízo a quo fazer a análise dos requisitos de admissibilidade da apelação. Entretanto, com o advento do CPC de 2015, houve a supressão do juízo de admissibilidade da apelação no primeiro grau de jurisdição. Portanto, agora, a análise do juízo de admissibilidade é feita no segundo grau. , inúmeros recursos estão sendo remetidos ao Tribunal sem, entretanto,

II – EXEMPLO PRÁTICO

Em uma carta precatória oriunda de um processo de execução, cujo objeto era EXCLUSIVAMENTE a avaliação e praça de 50% de 10 (dez) lotes urbanos penhorados, de propriedade dos executados, foi exarada decisão judicial que homologou a arrematação e determinou a expedição da respectiva carta em favor da arrematante.

Pois bem, da decisão em tela, os executados manejaram, “equivocadamente”, recurso de apelação, tendo em vista que a referida carta precatória nada mais é do que um ato do processo executivo é recorrível, consequentemente, via agravo de instrumento e não via apelação. Por tal motivo, a apelação é inadmissível e, na hipótese, incabível o Princípio da Fungibilidade entre apelação e agravo.

Primeiro porque estes dois recursos atacam atos de natureza distinta, vale dizer, enquanto a apelação é manejada contra a sentença, já o agravo é manejado contra a decisão interlocutória.

Em segundo lugar, ao interpor o recurso de apelação e não o recurso de agravo, estão os executados, em verdade, comentendo erro grosseiro. De fato, a interposição de recurso onde resta configurado o erro grosseiro não pode prosperar. Consoante magistério de Araken de Assis “erro grosseiro se configura, efetivamente, na hipótese de a parte interpor recurso diferente do expressa e desnecessariamente apontado como próprio no dispositivo legal.”[2]

Ensina, ainda, o douto mestre, ao tratar dos fundamentos para rejeitar a fungibilidade recursal, que “de fato, o recurso próprio exibe pressupostos específicos (...), submetendo-se a negligência na simples troca do nome da espécie recursal ou, investigando mais a fundo, a inépcia da petição recursal, em virtude do descumprimento daqueles pressupostos.”[3]

In casu, os executados deveriam ter interposto agravo de instrumento, pois o art. 1015, parágrafo único do NCPC, prevê a interposição de agravo de instrumento contra decisão proferida no processo de execução.

Em terceiro lugar, cumpre destacar que inexiste "sentença homologatória" de arrematação, salvo no velho Regulamento 737 de 1850. No CPC de 1973, versão originária, haveria sentença na adjudicação, concorrendo vários pretendentes (art. 715, § 2.°). Tendo em vista a inexistência de sentença homologatória de arrematação, por óbvio, incabível é o recurso de apelação contra a decisão interlocutória que apenas homologou a arrematação. Portanto, no atual sistema processual brasileiro, o recurso aforado pela agravada não existe eis que não encontra amparo legal vigente no ordenamento pátrio!

Ademais, a remessa de recurso visivelmente inadmissível, cujo vício é insanável, ao segundo grau, fere o Princípio da Razoável Duração do Processo previsto tanto na Carta Magna quanto no Novo CPC. A seguir, esmiúça-se a presente argumentação.

III – O ENVIO DE RECURSO VISIVELMENTE INADMISSÍVEL, AO SEGUNDO GRAU DE JURISDIÇÃO, COMO AFRONTA AO PRINCÍPIO DA RAZOÁVEL DURAÇÃO DO PROCESSO PREVISTO NO INCISO LXXVIII, DO ART. 5º DA CF-88 E AOS ARTS. 4º, 5º, 6º E 8º DO NOVO CPC

A Emenda Constitucional nº 45/2004 inseriu o princípio da razoável duração do processo dentro das garantias fundamentais asseguradas a cada indivíduo. Tal princípio encontra-se insculpido no inciso LXXVIII, do art. 5º, da Constituição Federal de 1988, com o seguinte teor: “a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação”. Vale dizer: a busca da efetividade do processo advém do direito constitucional, da garantia constitucional de acesso à adequada tutela jurisdicional, que deve ser prestada dentro de um prazo razoável.

Seja como for, o direito à prestação jurisdicional tempestiva[4] e célere não pode ser visto apenas como um direito a uma prestação fática. O direito à tutela jurisdicional tempestiva e célere exige a técnica processual adequada, a instituição de um procedimento capaz de viabilizar a participação e, por fim, a própria resposta jurisdicional.

Logo, vê-se que o direito à tutela jurisdicional tempestiva e célere pressupõe consideração aos direitos de participação e de edição de técnicas processuais adequadas e idôneas e, também, pressupõe a obtenção de uma prestação por parte do Estado-juiz. O dever de prestação que se consubstancia em dever de proteção por parte do Estado-juiz[5] se materializa no momento em que há a prolação da decisão judicial a respeito, por exemplo, de direitos fundamentais. Portanto, o direito à tutela jurisdicional célere, tempestiva e efetiva (sem perder sua característica de direito de iguais oportunidades de acesso à justiça a todos os sujeitos do processo) é direito fundamental previsto na Carta Magna Brasileira.[6]

A partir da fundamentalidade do princípio da razoável duração do processo traz-se, para dentro da esfera do direito processual civil, a aplicabilidade prática do preceito. Nesse sentir, os art. 4º e 6º do NCPC pontuam pela necessidade das partes obterem, em tempo razoável, a solução integral do mérito.

Reza o art. 4º que “As partes têm o direito de obter em prazo razoável a solução integral do mérito, incluída a atividade satisfativa.” Por sua vez, o art. 6º disciplina que “Todos os sujeitos do processo devem cooperar entre si para que se obtenha, em tempo razoável, decisão de mérito justa e efetiva.”

Ora, Excelências, eis o ponto fulcral a ser observado: o recebimento de recurso inadmissível, cujo vício é insanável, afronta não apenas a garantia fundamental à razoável duração do processo como, também, os ditames do NCPC.

Ao receber recurso reconhecidamente inadmissível, está o Judiciário a procrastinar o andamento processual desnecessariamente! E mais: ao receber o recurso inadmissível, está o magistrado a ofender o princípio da cooperação encampado pelo art. 6º do NCPC, in verbis “Todos os sujeitos do processo devem cooperar entre si para que se obtenha, em tempo razoável, decisão de mérito justa e efetiva.”

Diga-se, ainda, que não apenas ao magistrado cabe zelar pela razoável duração do processo. Conforme o dispositivo em tela, também às partes é dado tal dever.

Portanto, a parte, ao manejar recurso visilvelmente impróprio, além de perpetuar o erro grosseiro, está a procrastinar o feito e, assim o fazendo, afronta não apenas a cooperação, mas também a boa-fé processual preconizada no art. 5º do NCPC, in verbis  “Aquele que de qualquer forma participa do processo deve comportar-se de acordo com a boa-fé.”

Nesse afã, ensina Guilherme Rizzo Amaral[7] que

(...) evidentemente o direito das partes a participar efetivamente do processo, dialogando com o órgão jurisdicional para a construção da solução mais justa para o caso concreto, traz consigo um correspondente dever de exercer tal atividade de forma proba, leal e efetivamente comprometida com a rápida solução da lide. Assim, sempre que as partes ou seus procuradores desviarem-se deste objetivo e passarem a se utilizar do processo como mecanismo de protelação da solução para o caso concreto, o princípio da cooperação, que até então fora aplicado para garantir o direito de participação no processo, passa a ser base fundamentadora para a aplicação de sanções processuais, como, aliás, comumente ocorre na jurisprudência.

Por outro lado, resta cristanlino que o recebimento de recurso inadmissível fere os fins sociais do processo tais quais disciplinados no art. 5º[8] da Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro (Decreto-Lei nº 4.657/1942), com a redação dada pela Lei nº 12.376/2010, bem como o disposto no art. 8º do NCPC: “Ao aplicar o ordenamento jurídico, o juiz atenderá aos fins sociais e às exigências do bem comum, resguardando e promovendo a dignidade da pessoa humana e observando a proporcionalidade, a razoabilidade, a legalidade, a publicidade e a eficiência”. A expressão fins sociais significa, conforme dizeres de Cristiano Imhof e Bertha Steckert Rezende, “além de resolver o litígio, é proporcionar a tranquilidade social”.[9]

Com o fito de proporcionar a tranquilidade social, “os objetivos da resolução da lide em causa individual transcendem à esfera privada”[10] e, ao transcender, afetam toda a sociedade.

Nesse mister, emerge a assertiva de que ao receber um recurso inadmissível, está o Judiciário a esquecer o fim social do processo uma vez que está deixando de examinar peças processuais bem elaboradas e causas que, em última análise, primam por solução. Logo, nessa ordem de ideias, indaga-se:

1- Para que receber um recurso em que já foi detectada, no seu nascedouro, a inadmissibilidade?

2- Para que receber um recurso que, inadvertidamente, foi elaborado com vício insanável?

3- Por que se utilizar da máquina jurisidiconal se, ao fim e ao cabo, restará flagrante a inadmissibilidade recursal e configurado o erro grosseiro?

Fato é que o recebimento do referido apelo e o seu envio ao segundo grau de jurisdição se mostra contrário à duração razoável do processo e aos fundamentos do NCPC. Ficam as indagações acima como forma de reflexão!!!!

 

Notas e Referências

[1] LENT, Friedrich; JAUERNIG Othmar.  Direito Processual Civil. 25. ed.Coimbra: Almedina, 2002, p. 363. apud PORTO, Sérgio Gilberto; USTÁRROZ, Daniel. Manual dos Recursos Cíveis. 5. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2016, p. 88.

[2] ASSIS, Araken de. Manual dos Recursos. 4. ed. São Paulo: RT, 2012, p. 104.

[3] ASSIS, Araken de. Manual dos Recursos. 4. ed. São Paulo: RT, 2012, p. 104.

[4] Ensina Diego Fernandes Estevez que “a duração razoável do processo apresenta dupla face: a duração oferecida pelo Estado e a duração a ser recebida pelo jurisdicionado.” ESTEVEZ, Diego Fernandes. Duração razoável do processo e recursos extraordinários. Revista Páginas de Direito, Porto Alegre, ano 5, nº 283, 08 de julho de 2005. Disponível em: http://www.tex.pro.br/index.php/artigos/100-artigos-jul-2005/5267-duracao-razoavel-do-processo-e-recursos-extraordinarios.

[5] Já dizia Hans Kelsen que “ A função denominada jurisdição é muito mais constitutiva, criadora de direito, na verdadeira acepção da palavra. Pois existe uma situação de fato concreta, ligada a uma específica conseqüência jurídica, e toda essa relação é criada pela sentença judicial. Assim, como ambas as situações de fato são ligadas nas relações do geral pela lei, assim deverão estar unidas, na relação do individual, pela sentença individual.” KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. 3. ed. Tradução de J. Cretella Jr e Agnes Cretella. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, p. 106.

[6] ASSIS, Araken de. Duração razoável do processo e reformas da lei processual civil. In FUX, Luiz; NERY JÚNIOR, Nelson; WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Processo e Constituição – Estudos em Homenagem ao Professor José Carlos Barbosa Moreira. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 195.

[7] AMARAL, Guilherme Rizzo. Comentários às Alterações do Novo CPC. São Paulo: RT, 2015, p. 55.

[8] “Art. 5º. Na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum”.

[9] IMHOF, Cristiano; REZENDE, Bertha Steckert. Novo Código de Processo Civil Comentado. Rio de Janeiro: Lumem Juris, 2015, p. 7. 

[10] ASSIS, Araken de. Processo Civil Brasileiro. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016, p. 372, v. I.

 

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