Bang-Bang? Desarmá-lo-emos primeiro

03/04/2018

Desarmá-lo-emos: conjugação com pronome oblíquo átono “o”. Gerúndio. Futuro do presente. No indicativo. Futuro e presente que indicam o proselitismo armamentista que está escudado, ainda, pelo maniqueísmo que nos divide desde o descobrimento da pólvora durante a Dinastia Han, na China. Homens bons. Homens maus. A União e os Confederados. O eixo e a tríplice aliança. Armas, germes e aço. Todos os confrontos mundiais, a despeito do elemento que culminou na ascensão de uns em detrimento dos outros, estão umbilicalmente conexos ao aspecto armamentista tanto quanto ao elemento estratégico. Quanto mais armas uma nação possuía, maiores suas chances em guerra.

Hodiernamente, na suposição de civilidade, impera a discussão armamentista propagada pelos cidadãos (civis) que encampam o pseudo lado “branco” da força. Conclamam com ênfase o “direito” de se armarem com espeque na doce sensação de segurança ou de poder - acrescento. Outrossim, a promessa de “vou armá-los” ganhou dimensões sobretudo políticas, compondo-a discurso-base de alguns candidatos ao posto político com iniciativa legal para tanto. Quanto mais armas circularem pelo país, esquizofrenicamente, para eles, maior segurança haverá. Não estamos em guerra, porém.

Aqui, saliento não trazer à colação quaisquer dados estatísticos, eis que acredito, concessa vênia, que dados são manipuláveis e estatísticas invariavelmente estão sob uma plaga geográfica ou classe determinante para o resultado “esperado”. Prossigo. Ao fazê-lo, rememoro a intenção do Ministério Público Federal em insurgir-se contra os atos infralegais que exigem comprovação à autoridade policial da necessidade de aquisição e registro de arma de fogo. Na ocasião, pensei: diferentemente dos Ministérios Públicos dos Estados, o MPF não lida diariamente com crimes de sangue praticados com armas de fogo legalmente adquiridas pelos motivos mais esdrúxulos possíveis. Indago-me, em abstrato, se tal iniciativa viria dos órgãos ministeriais estaduais, de um ou outro modo.

Ademais, a questão de fundo me parece repousar irrefutavelmente na “necessidade” de civis ostentarem armas de fogo. Nesse eito, os desejos armamentistas pelo porte de armas, embora não possam fugir à legalidade estrita, objetivam não apenas solapar a exigência legal (ou abrandá-la), mas a revogar o próprio Estatuto do Desarmamento, como se vê do Projeto de Decreto Legislativo (PDS) n. 175/2017, de lavra do Senador Wilder Morais (PP-GO) que convoca plebiscito para tanto. Enquanto isso, bem mais ao norte, os americanos, inclusive os que votaram em Donald Trump, estão a (re)discutir o comércio livre de armas de fogo. No epicentro da discussão: a frequência com que ataques são realizados contra a população americana por indivíduos adquirentes de armas de fogo incondicionadamente. Qual nação está regredindo? Retórico.

Destarte, valendo-me de um aporte jurídico americano, severamente criticado ainda que a aquisição de armas seja facilmente empregada, cito o postulado “stand-your-ground-law”. Fique firme. Não ceda terreno. Não recue. Cuida-se, em síntese, de uma justificativa criminal que permite a legítima defesa antecipada. Ou seja, uma arguição legal do direito de matar sempre que o autor sentir-se ameaçado independentemente de qualquer ato concreto ou indiciário da vítima. O quanto de subjetividade há nessa justificativa deixo aos tribunais norte-americanos decidirem. Porém, compreendendo o caso brasileiro, a revogação do Estatuto do Desarmamento, ou, na espécie, qualquer ato tendente à facilitação da aquisição, do registro e do porte de armas de fogo por civis nos aproximará inevitavelmente daquele sistema criminal. Considerando, para tanto, que no contexto de um homicídio aqui praticado com arma de fogo, desimporta, num primeiro instante, a legalidade ou não da aquisição da arma, e sim os motivos do ato e a elucidação de sua autoria.

Imaginem, caros leitores, a conjugação da necessidade de se armar com os motivos que levariam à utilização da arma. É fácil asseverar que a revogação do Estatuto do Desarmamento ou a facilitação da aquisição de armas de fogo acarretará um sem número de homicídios praticados pelos motivos mais banais. Uma discussão no trânsito, uma disputa de sinuca, um contratempo entre vizinhos, uma manifestação de preconceito, e, indo além, até mesmo a formação de justiceiros com armas legalmente adquiridas e registradas em busca de suas concepções de justiça mascarada de punição. Eis aqui uma pequena representação da utilização das armas de fogo legalmente adquiridas após a famigerada revogação do estatuto, caso ocorra de fato. Pensem também em manifestantes armados reivindicando suas pretensões contra o estado, o qual, aliás, sequer se prestará ao exercício jurisdicional, eis que qualquer entrave será decidido ao modo do velho-oeste: o mais rápido no gatilho.

No ponto, quanto mais armas de fogo circularem pelo país, maior será a necessidade de usá-las? Prefiro a precaução do que a resposta. A questão talvez seja quando e por que? Ou melhor, restará ao sistema de justiça apenas a análise do excesso punível, já que os motivos passarão a fazer parte de uma gama de subjetividade dos civis que adquirirão as armas sob os auspícios da legalidade que bate à porta. Caberá ao Poder Judiciário perquirir apenas “que tiro foi esse?” Demais disso, o enfrentamento à criminalidade de sangue ou patrimonial deve ser sempre uma incumbência estatal, e por mais que se possa cogitar uma falha abissal nesse desiderato, fomos nós que entregamos nossa segurança ao domínio de um ente moral e maior, devendo com ele permanecer. Essa é, sem conjectura, a chave da civilidade, e o aperfeiçoamento da estrutura governamental incumbida do dever de segurança pública precede – ou deveria preceder – à legalização do porte de armas aos civis.

No que diz respeito à atual exigência legal de que os civis demonstrem cabalmente a necessidade de possuírem e/ou portarem armas de fogo, far-se-ia bem, como lenitivo aos que anseiam pela revogação do Estatuto do Desarmamento, abranger outras hipóteses que encampam aquela necessidade; leia-se, ampliando o alcance do termo sem diminuir o grau de exigência probatória acerca da necessidade no plano fático. Porém, para os pregadores da política armamentista, essa solução de continuidade possível não lhes interessa, já que objetivam uma quase irrestrita aquisição e registro de armas por seus asseclas.

A bem da verdade, os que disseminam o armamento civil aproveitam-se do cenário nacional de (in)segurança pública, algumas vezes até propalando voluntariamente o caos, cuja chave maior é o medo. E nesse meio, pretendem entregar à população a segurança que compete ao Estado prover, enquanto aqueles serão os líderes do Estado, o que me soa um tanto ilógico, por sinal. Em síntese, uma promessa de acabar com aquilo que amedronta a população é uma promessa que arrecada voto. E essa é uma das maiores “armas” da equação civil-armamentista. Política do “bang-bang”.

Dessa forma, aclarando minha posição antiarmamentista, a guerra que atual e realmente enfrentamos é política e encontra-se travada nos bastidores do poder sem disparos, com as ruas refletindo a escassez de recursos a serem vertidos ao setor de segurança pública em razão de tudo o que fora desviado pela corrupção que assola a nação. É que armar a população para uma guerra forjada pelos interessados em seus resultados acabará convalidando-a em uma verdadeira guerra civil molecular a par de restaurar o ideal dos olhos por olhos, dentes por dentes e “balas por balas”.

 

Imagem Ilustrativa do Post: munição // Foto de: rafamaxber // Sem alterações

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