“Bandidolatria” e outras razões para desejar ser abduzido – Por Fernanda Mambrini Rudolfo

23/07/2017

Esta semana, vi algumas postagens com a seguinte frase: “Se eu for abduzido, não é sequestro, é resgate”. Depois de ver a programação de evento promovido pelo Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro (supostamente) sobre segurança pública[1], passei a ver ainda mais lucidez naquelas palavras. O flyer, divulgado nas mais diversas redes sociais, causou tanto alvoroço que chegou a virar matéria da página digital “Sensacionalista”[2].

Dentre os palestrantes, Kim Kataguiri; dentre os títulos, “Bandidolatria e democídio: ensaios sobre garantismo penal e a criminalidade no Brasil”.

Em um país em que chamar alguém da “garantista” pode ser considerado uma ofensa (sem sequer se saber que o garantismo não equivale ao abolicionismo, legitimando o poder punitivo, por exemplo), mas, ao mesmo tempo, cria-se o pseudoconceito de “garantismo integral” (teoria que, de fato, só aqui existe[3]), mencionar “bandidolatria” e garantismo em uma mesma sentença não pode passar de uma demonstração de desconhecimento teórico-metodológico. Nunca o título do texto “Ninguém é a favor de bandidos, é você que não entendeu nada”[4] caiu tão bem. Aliás, vamos parar de falar em “bandidos” quando sabemos que o que temos são pessoas criminalizadas.

Ao contrário do que consta da nota de esclarecimento do próprio Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro, não se trata de respeitar uma sociedade democrática e pluralista, nem mesmo de resguardar a livre manifestação de pensamento.

Para começo de conversa, o pluralismo deve ser compreendido em um contexto emancipatório, não mais conservador/liberal. Nesse sentido, extrai-se da obra de Antonio Carlos Wolkmer, no que concerne ao pluralismo jurídico na América Latina:

A proposta de um pluralismo jurídico como projeto de alteridade para espaços periféricos do capitalismo latino-americano pressupõe a existência e articulação de determinados requisitos, senão vejamos: a) a legitimidade de novos sujeitos sociais; b) fundamentação na justa satisfação de necessidades humanas; c) a democratização e descentralização de um espaço público participativo; d) a defesa pedagógica de uma ética da alteridade; e) a consolidação de processos conducentes a uma racionalidade emancipatória. [5] (grifou-se) 

Dentro desse contexto, o pluralismo, aliado à alteridade, deve funcionar como estratégia contra-hegemônica[6], não como uma mera reiteração das forças dominantes. Sem essa conotação, não se trata de efetivo pluralismo. É como falar em igualdade com aquele famoso desenho das caixinhas (dando uma caixa para que cada pessoa use para subir e ver por sobre um muro, quando todas essas pessoas apresentam alturas diferentes).

No nosso país, persiste a histórica e lamentável satirização das diferenças, com o congelamento dos lugares na sociedade, e a Constituição de 1988 segue dolorosamente em contradição com a vida, parecendo estar mais próxima uma alteração constitucional do que a evolução da realidade, mormente diante da atual composição do Congresso Nacional[7].

Em face disso, não se pode pretender que o ato de se conferir voz em condições iguais a pessoas que pensem de modos distintos (como se o problema se restringisse a esta questão) signifique o respeito à democracia, mas, pelo contrário, é a sua própria derrocada.

Aliás, não se trata simplesmente de permitir a manifestação de pensamento, que é livre dentro de certos limites, mas de o Estado legitimar um determinado discurso (mormente quando proferido pelos seus próprios agentes). E a liberdade de expressão só pode existir, nesses casos, se visar à defesa de um efetivo pluralismo, da diversidade ou mesmo da democracia, de suas decorrências. Caso contrário, não há liberdade de expressão, mas arbitrariedade, exibicionismo[8].

O Estado, por meio de todos as suas instituições, deve defender, acima de tudo, os direitos fundamentais, não se tornar uma mera reprodução de um programa midiático sensacionalista. Dar espaço ao discurso de ódio está longe de caracterizar o respeito ao pluralismo, dizimando os direitos das pessoas em situação de maior vulnerabilidade na nossa sociedade.

Diferentemente do que sustenta a referida nota de esclarecimento, não se trata de negar o “sagrado direito à voz”, mas de refutar o fato de uma instituição que tem como missão constitucional a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis[9] promover um discurso de demonização do outro, de segregação social e racial. Soma-se a isso a circunstância de um dos palestrantes ter contestável legitimidade para falar sobre segurança pública, eis que se trata de alguém cujas fontes já tiveram sua veracidade questionada e afastada em mais de uma oportunidade.

Certamente o repúdio à alteridade, bem como a legitimação de discursos pautados em dados comprovadamente falsos, não se encaixa no conceito de democracia. Democracia, esta, que deveria ser defendida pela instituição promotora do evento.

Também se deve parar de falar que as críticas ao evento se dão por serem palestrantes de direita. Isto, porque não se trata de uma polarização política, mas de reconhecer a necessidade de se respeitar os direitos de todos os seres humanos, em detrimento de um discurso simplista, teórica e pragmaticamente insustentável, de rechaço às diferenças, ou mesmo de “direitos humanos para humanos direitos”.

Em síntese, vamos parar que está feio!


Notas e Referências:

[1] https://www.brasil247.com/pt/247/rio247/307272/Evento-do-MP-RJ-pode-ter-Kim-Kataguiri-para-palestrar-sobre-seguran%C3%A7a-p%C3%BAblica.htm

[2] https://www.sensacionalista.com.br/2017/07/20/especialista-em-bandidolatria-kim-kataguiri-fara-palestra-no-mp-do-rio/

[3] http://justificando.cartacapital.com.br/2017/07/19/garantismo-integral-teoria-que-so-existe-no-brasil/

[4] https://awebic.com/democracia/ninguem-e-a-favor-de-bandidos-e-voce-que-nao-entendeu-nada/

[5]   WOLKMER, Antonio Carlos. Introdução ao pensamento jurídico crítico. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 244.

[6]   WOLKMER, Antonio Carlos. Introdução ao pensamento jurídico crítico. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 251.

[7] http://emporiododireito.com.br/hate-speech-nas-redes-sociais-e-contaminacao-processual-voce-sabe-o-que-e-por-fernanda-mambrini/

[8] http://emporiododireito.com.br/hate-speech-nas-redes-sociais-e-contaminacao-processual-voce-sabe-o-que-e-por-fernanda-mambrini/

[9] Artigo 127 da Constituição da República Federativa do Brasil.


 

Imagem Ilustrativa do Post: Manifestação pelo impeachment da presidente Dilma Rousseff // Foto de: Editorial J // Sem alterações

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