Autoridade e autoritarismo do Poder Legislativo    

12/03/2021

Coluna O Direito e a Sociedade de Consumio / Coordenador Marcos Catalan

O tema, envolvendo as noções de Autoridade e Autoritarismo perpassam por todas as relações sociais, desde os sistemas familiares e parentais, tribais, educacionais, culturais, linguísticos, religiosos, econômico, empresariais, políticos, etc. Não é pequena a complexidade das diversas posições teórico-metodológicas no tratamento da questão, dado a amplidão e diversidade das formas concretas assumidas pelas referidas relações inter-humanas.

No entanto, na moderna e contemporânea sociologia política a ênfase dos estudos do tema reside na consideração das relações entre o Estado, a autoridade política e a sociedade.

Em relação ao Brasil, temos a definição do modelo jurídico-político institucional definido pela Constituição de 1988. Trata-se de uma República, formada por uma federação de estados-membros subdivididos em municípios em que o poder político é distribuído em diferentes graus de autonomia, mas unidos indissoluvelmente sob um poder titular da soberania.

Tanto ao nível da união soberana, como ao nível dos estados-membros autônomos, tal poder político desdobra-se em três funções, segundo as suas respectivas naturezas legislativa, executiva e judiciária. Quanto aos municípios, conservam os mesmos, o exercício das funções legislativa e executiva.

Ressalte-se que, ao definir-se como uma república democrática de direito, o poder soberano, radica, originalmente, na vontade do conjunto do povo que concretiza o seu exercício, por meio de representantes eleitos, ou diretamente, mediante mecanismos jurídico-normativos. 

Nesse passo, a concretização da fonte desse poder soberano, emanado do povo e por isso mesmo, republicano e democrático, não se pode fazer sobre nenhuma pessoa de governante, tampouco sobre nenhuma outra instituição de caráter coletivo. O poder soberano, assim como o seu desdobramento em poderes autônomos plenos e parciais concretiza-se e expressa-se na lei, aqui tomada genericamente no seu sentido de ordenamento jurídico.

Trata-se, pois, de um conjunto hierarquizado de normas incluindo em seu topo a Constituição Federal, as constituições estaduais, as leis orgânicas municipais, as leis, decretos, regulamentos de toda ordem, emanados organicamente e sustentados pela crença e respeito na vontade geral do povo.

Tal conjunto normativo a todos obriga, governantes e governados, representantes e representados, administradores e administrados, acusadores e acusados, julgadores e julgados. Pode-se acrescentar que num estado democrático de direito, a autoridade concreta maior é a lei e este é o modelo adotado pelo estado brasileiro.

Cabe aqui estabelecer uma distinção entre mando e obediência, legitimidade e poder coercitivo e legitimação na perspectiva da ciência política. As duas primeiras ideias exprimem relações presentes no Estado, assim como em outras formações sociais e organizações e acabam por estruturar a dinâmica do seu funcionamento. No estado sempre ocorrem tais relações de mando e obediência. Isto é, de um lado alguém ordena e de outro alguém obedece.

Impõe-se responder à questão: por que alguém, no caso, os governados tendem a obedecer a ordens influindo sobre suas condutas?

Há duas respostas.

A primeira é pelo grau de legitimidade. Tal conceito exprime um aspecto subjetivo, em relação ao grau de aquiescência de um certo sentimento de credibilidade na aceitação que governados e coletividades guardam em relação às normas, aos governantes, às instituições, aos sistemas ou às próprias comunidades políticas. A legitimidade independe das formas e modelos democráticos de estado. A aceitação, por exemplo, de um déspota, com poderes absolutos, por parte de uma comunidade que lhe presta obediência em alto grau e número em razão de uma admiração quase sem limites, constitui-se em fator de altíssima legitimidade desse personagem. À ideia de legitimidade na perspectiva científico-política não interessam a conformidade ao direito, à exação ou à própria ética individual ou moral, seja do governante, seja de uma instituição, seja da própria lei. A ideia de legitimidade está ligada à de liderança, embora ela possa conter ou dispor de recursos de coerção para fazer valer a obediência ao conteúdo de suas ordens. Dessa maneira, no estado, enquanto sistema, a legitimidade, seja dos líderes, das leis, dos regulamentos, das ordens, das configurações do próprio sistema e mesmo da existência da comunidade política liga-se sempre a um determinado grau de aquiescência por parte do conjunto daqueles que constituem o meio ambiente desse sistema.

A segunda resposta é pela coercitividade ou poder coercitivo. Outro recurso para quem exerce o poder de mando consiste na tendência de em maior ou menor grau dispor de meios coercitivos, a fim de obter a obediência às suas ordens.  Tratando-se do estado soberano, no caso, é emblemática a definição de Max Weber em face do poder coercitivo, ao defini-lo como uma associação que tem a possibilidade de reivindicar para si, com exclusividade, da disposição, com legitimidade, do uso da força física para fazer valer as suas ordens. Significativas as características da exclusividade do uso da força física e da legitimidade deste uso, ou seja, de um consenso de aceitação por parte dos governados.

Finalmente, temos o conceito de legitimação. A legitimação seria o objeto que desencadeia a legitimidade, o próprio conteúdo da legitimidade. Ainda que na vida real, em verdade, não existem formas puras de legitimação do poder soberano do estado, o modelo desenvolvido por Max Weber ainda se mostra dos mais adequados para explicá-la. Ele distingue três formas puras de legitimação, a saber: a tradicional, a carismática e a racional legal.

A primeira tem como fundamento o apego aos velhos costumes arraigados e imemoriais, a conformarem tal forma de legitimidade, seja de um rei, seja de uma constelação de senhores da guerra; a segunda radica num crédito de admiração que leva à obediência ao líder pelas suas qualidades excepcionais, mitificadas na imaginação dos governados e; a terceira forma apoia-se na convicção da força de um ordenamento jurídico como expressão racional e ordenada do modo de ser e da vontade de um povo.

No caso do Brasil, principalmente a partir da edição da Constituição Federal de 1988, acentuou-se a terceira forma de legitimação. O que move, portanto, a obediência de pelo menos a maioria dos brasileiros a seguir e respeitar os ditames do Estado republicano e não a vontade de qualquer governante, representante ou qualquer juiz. O critério para a legitimação está na convicção da racionalidade da lei e da sua incidência. A suprema autoridade, assim, reside na lei.

É evidente, que, no Estado Democrático de Direito, toda hipótese de uso da força, quando necessária, far-se-á, sempre, dentro dos limites da lei, respeitados os chamados direitos individuais e coletivos que integram como princípios fundamentais, as pessoas que formam o povo, e justamente, porque tais direitos emanam diretamente desse mesmo povo.

Até agora, vimos que o conceito de Estado Democrático de Direito, deve ser entendido, no seu fundamento abstrato, que se concretiza na lei. Mas como que se realiza a lei na concretude da vida? Como passa a existir o Estado na realidade do cotidiano? Como age o Estado? Tais ações são concretizadas por pessoas reais, de carne e osso que movem o Estado. Tais pessoas funcionam como peças de um sistema, cuja energia emana de lei, por sua vez gerada pela vontade geral.

Estamos diante dos agentes servidores do estado, que assumem individual (autoridades individuais) e coletivamente (instituições) as ações da Autoridade que se deriva da lei.

Tais possibilidades de ações distribuem-se hierarquicamente, organizadas segundo funções específicas, definidas pela Constituição e leis.  Por sua vez, tais hierarquias caracterizam-se por diferentes níveis que são definidos segundo o grau de responsabilidade e de atribuições com carga de poder de decisão, desses mesmos níveis, entendidos como cargos.

No exercício das três funções do Estado brasileiro, os servidores ocupantes dos cargos de maior hierarquia, são tratados como “autoridades”. Gize-se, não segundo a sua situação particular, pessoal, mas segundo a sua situação enquanto ocupante do cargo ou exercício de função de servidor. Por sua vez, a escolha dos ocupantes de cargos no Estado, é sempre definida, seja pela Constituição, seja pelas leis. A posse e o consequente exercício de um cargo, seja ele de uma alta autoridade, seja de um simples servidor, é considerado uma investidura. Ressalta-se que as obrigações, os direitos e as prerrogativas do investido, também são sempre definidas pela Lei. 

O conjunto de atribuições a cada cargo de autoridade, como de resto a qualquer cargo público, constitui uma “competência” a qual pressupõe não uma liberdade do agente de autoridade de agir e fazer o que quiser, segundo a sua vontade, mas de uma liberdade limitada pela lei que define a atribuição do cargo ocupado, isto é, uma discricionariedade. A lei sempre define os limites da discricionariedade de uma autoridade, ou de um simples funcionário. O exercício do cargo implica na obrigação de decisão e de ação, impostas pelos limites da tal competência. Qualquer excesso ou omissão de decisão ou de ação, constitui uma violação por parte do agente.

As decisões e ações de uma Autoridade são sempre consideradas legitimas, desde que em conformidade com a lei.

É do domínio do senso comum a ocorrência do chamado autoritarismo, como distorção do modelo de Estado legitimado pela forma racional constitucional legal. O autoritarismo é a negação do Estado de Direito, pois o governante autoritário tende a ignorar a lei. É a negação da República, pois o autoritário ignora os limites de suas atribuições, seja no âmbito do Executivo, do Legislativo ou do Judiciário, ignora as instituições e suas prerrogativas. É a negação da Democracia, pois ignora a vontade do povo, expressada pelo ordenamento jurídico. 

Ao considerar o modelo brasileiro de governo que consagra o chamado regime presidencialista, em que o papel de chefe do Poder Executivo e de chefe de Estado, confunde-se no exercício do cargo de Presidente da República, a tendência a buscar as ocorrências de autoritarismo é sempre maior no âmbito desta forma de Poder.

Contudo, poderia haver algum traço de autoritarismo no Poder legislativo? Ou, pelo menos haveria a possibilidade de se descobrirem traços de autoritarismo em projetos de lei ou de Emenda à Constituição oriundos de um parlamento?  Entendemos que sim.

Consideremos, por exemplo, uma das essências finalísticas dos dois órgãos do Congresso Nacional: Senado Federal e Câmara dos Deputados. Tal essencialidade ora referida reside no caráter representativo dos parlamentares, expressa nos votos que resultaram na sua eleição e na sua investidura. Tais elementos estão evidentes na Constituição. Em relação ao interesse público, a Constituição estabeleceu mecanismos de imunidade,com o intuito de proteger a liberdade dos parlamentares representantes do Povo, no que refere às suas ações, votos e pronunciamentos, em benefício da representação dos interesses da parcela do povo constituída por seus eleitores.

Nesse sentido, é livre o direito de crítica, o levantamento de dúvidas quanto ao procedimento de autoridades de outros poderes e a iniciativa de procedimentos, seja de apuração de transgressões, seja de propostas de punição, que estejam no escopo do pressuposto de honra ao interesse público. Porém, não se compreende no horizonte das imunidades a facilitação da impunidade pelo cometimento de transgressões e crimes que transcendam o exercício parlamentar. 

Em relação a proposta de Emenda Constitucional nº 3/2021, verifica-se um alargamento do conteúdo das imunidades ali elencadas e das formas de processamento dos possíveis implicados, levando possivelmente à impossibilidade de punição ou mesmo do abrandamento das penas. A razão de existir da imunidade parlamentar é a garantia de defesa da democracia e da liberdade, mais um motivo pelo qual a PEC 3/21 não pode ser aprovada, pois ameaça a democracia na medida em que apresenta indícios de uma política autoritária. A própria proposta pela sua atual redação não acresce nada ao interesse público, o qual deve ser a preocupação perene das representações políticas. Na contramão do interesse público, tal proposta visa atender a interesses pessoais, em tese, de parlamentares, a fim de protegê-los de acusações e processos o que pode, de certa forma, promover um processo de hierarquização da cidadania ao blindar um restrito grupo, que já se encontra no poder.

A referida proposta trata-se de um claro traço de autoritarismo, por parte das ditas autoridades que firmaram o pedido de encaminhamento da PEC nº3/2021. Ainda, pode-se dizer que o autoritarismo é incrementado na medida em que há pedido de urgência para aprovação da citada proposta, com dispensa de discussão aprofundada, nas comissões atinentes da Câmara Federal.

Outro exemplo, de traço de autoritarismo legislativo é o que contém o projeto de lei estadual nº 293/2020, apresentado no âmbito da Assembleia Legislativa do Estado do Rio Grande do Sul, por um deputado que pretende, claramente, interferir na função executiva do Governo do Estado, autoridade, portanto, de outro poder, prescrevendo procedimentos detalhados a serem tomados no combate à Pandemia de COVID 19 e com relação à retomada das atividades econômicas, no âmbito estadual.

Embora o referido projeto não afronte as constituições federal e estadual, a proposição legislativa acarretará em uma desaceleração da resposta do Estado no combate efetivo à pandemia, visto que as propostas restritivas apresentadas não estão fundadas em evidências científicas.

Pode-se dizer que o PLE se trata de medida autoritária na medida em que “em favor das atividades econômicas” busca limitar o poder do Estado, colocando os interesses de uma parcela do povo acima do interesse coletivo, qual seja a proteção sanitária. Diz-se que se trata de autoritarismo, pois as raízes estão implantadas em soluções populistas que reduzem a complexidade de um problema grave como a pandemia negando evidências e contrariando à ciência.

Sendo assim, deve-se atentar para que a autoridade não subverta as prerrogativas de sua função visando interesses pessoais ou de um determinado grupo em prejuízo da coletividade sob pena de a democracia sucumbir ao autoritarismo.

 

Imagem Ilustrativa do Post: quarentena // Foto de: congerdesign // Sem alterações

Disponível em: https://www.flickr.com/photos/duncanh1/23620669668/

Licença de uso: https://creativecommons.org/publicdomain/mark/2.0/

O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.

Sugestões de leitura