O advogado público pode interpor ou deixar de interpor recurso em contrariedade à orientação vinculante do órgão pelo qual atua?
A carreira se divide.
Uma posição afirma que o advogado público, como profissional regido pelo Estatuto da Ordem dos Advogados do Brasil, tem autonomia e independência para decidir sobre a interposição de recursos, a teor, por exemplo, dos arts. 2º, § 3º[1] e 7º, I[2].
Posição diversa é a que entende que a atuação advocatícia dos entes públicos deve ser uniforme e coerente, de modo que assentada uma estratégia e normatizada vinculativamente no interno da Instituição, há obrigatoriedade de a seguir, mormente pela possibilidade trazida pelo Código de Processo Civil de 2015 de se majorar os honorários e do número sempre elevado de processos que envolvem a Administração Pública.
Geralmente, na seara da advocacia pública, para não se interpor recurso é necessário, conforme disciplinamento legal em leis orgânicas das Procuradorias ou em seus Regimentos Internos, que se apresente um Pedido de Dispensa de Recurso, expondo os fundamentos pelos quais se entende que a decisão não deve ser impugnada.
A análise é feita pelo chefe ou coordenador da área respectiva a qual está vinculado o advogado público que, concluindo pela interposição de recurso, indefere o pedido de dispensa e, por conseguinte, resta impositivo mais uma atuação em grau recursal, notadamente em Tribunais Superiores.
Recente norma, a propósito dessa questão, foi editada pela Procuradoria Geral do Estado do Rio de Janeiro, tendo entre os seus considerandos, justificadores da edição do texto normativo, o seguinte: “o aumento substancial do volume de ações acompanhadas pela Procuradoria Geral do Estado; - a necessidade de sistematizar as hipóteses de descabimento e dispensa de recursos judiciais, desestimulando a multiplicação de recursos e incentivando o respeito aos precedentes judiciais; - a necessidade de imprimir maior agilidade e eficiência na análise de pedidos de dispensa; - o disposto no art. 85 da Lei nº 13.015, de 16 de março de 2015 (Código de Processo Civil), que prevê a majoração dos honorários de sucumbência em grau recursal”.
A Resolução n. 4.099/2017[3] da PGE-RJ delimitou algumas situações em que se faz necessária o pedido de dispensa de recurso, como situações em que o próprio Procurador do Estado pode deixar de interpor o recurso, sendo essas circunscritas ao disposto nos arts. 6º e 7º[4]. As primeiras como hipóteses facultativas; as segundas, contidas no art. 7º, de não interposição obrigatória.
Verifica-se que, em ações que se denominam de estratégicas e prioritárias, há uma sistemática de atuação que envolve a autorização, seja genérica ou específica, de Procuradores-Chefes, Assessores ou o Procurador-Geral.
Essa é a melhor alternativa?
Não há, ainda, falta de autonomia e independência do Procurador do Estado, na decisão de interpor ou não recurso cabível?
Certo é, contudo, que é um importante passo que objetiva uniformizar a atuação daquela PGE e, igualmente, dispõe sobre casos que se dá autonomia quando se está diante de alguns precedentes que vinculam a jurisdição.
Ora, como já ressaltado em outro trabalho[5], se vincula uma função pública, a jurisdicional, por que não vincularia outra função estatal, a administrativa?
Note-se que há dispensa de remessa necessária quando a sentença estiver fundada em “entendimento coincidente com orientação vinculante firmada no âmbito administrativo do próprio ente público, consolidada em manifestação, parecer ou súmula administrativa”, de acordo com a redação do art. 496, § 4ª, IV, do CPC/2015.
Nesse sentido, uma variável importante a ser aferida na delimitação normativa pelas Procuradorias das hipóteses de não recorribilidade é se essas serão vinculantes para os advogados públicos, porquanto, se assim o forem, há reflexo na dispensa da remessa necessária. São diálogos institucionais entre a administração e a jurisdição.
Entende-se que a autonomia e independência do advogado público em matéria recursal deve se dar quando já houver precedente jurisdicional vinculante estabelecido, desde que se se entenda que não restam outros fundamentos a serem trazidos ao conhecimento do tribunal que possam, quiçá, alterar o entendimento então sedimentado.
Nesse sentido, claro que, diante de uma orientação vinculante, tendo ainda o advogado público convicção de que seu entendimento ou sua tese jurídica a ser esgrimida no recurso é plausível, deve haver a possibilidade de levar ao conhecimento do Coordenador da área para o desiderato de analisarem conjuntamente a conduta a ser realizada. Destacada situação restou, igualmente, delimitada na Resolução n. 4.099/2017, da PGE-RJ[6].
A regulamentação das matérias recorríveis tem como principal escopo que a atuação advocatícia do ente público se paute pelo tratamento isonômico das questões jurídicas. A liberdade, autonomia ou independência total do advogado público de escolher o que deve ou não recorrer parece que não concretizará destacado princípio constitucional de direito fundamental.
A igualdade das pessoas perante a atuação advocatícia também será realizada se as suas controvérsias com a Administração Pública forem tratadas de igual forma, estando aqui inseridos, por evidente, a decisão de recorrer sobre determinada questão jurídica.
Essa decisão de recorribilidade deve buscar uniformizar a conduta dos seus advogados públicos e, tal uniformização, ao contrário de inibir ou impedir a sua autonomia, condensa princípios maiores de prestigiamento da jurisdição, do tratamento igualitário das pessoas e questões jurídicas, dos princípios da impessoalidade e eficiência que regem, de igual modo, os advogados públicos, pois pertencente à estrutura estatal.
Passos que são dados para a melhora do serviço público advocatício, como pontuado pelo Ministro Luís Roberto Barroso, na notícia veiculada sobre a edição da Resolução já mencionada, no sentido de ser “capaz de aumentar a eficiência da advocacia pública e de contribuir para o descongestionamento e celeridade da justiça. A decisão de não mais se interporem recursos fúteis e já de antemão condenados ao desprovimento supera uma cultura que precisa ficar para trás, em que processos eram empurrados indefinidamente, em injustificável procrastinação. O novo ato normativo do Procurador-Geral ajudará a economizar recursos financeiros, materiais e humanos do Estado, bem como poupará os tribunais superiores de uma sobrecarga evitável”[7].
Que esses atos sejam seguidos, conforme as peculiaridades e interesses de cada Instituição, pela advocacia pública brasileira de forma geral, diminuindo a litigiosidade e os custos a ela inerentes, custos, é cediço, não só financeiro, mas, principalmente, das vidas das pessoas que terão, enfim e mais brevemente, solução aos processos em que são partes os entes federativos.
Notas e Referências:
[1] “No exercício da profissão, o advogado é inviolável por seus atos e manifestações, nos limites desta lei”.
[2] “São direitos do advogado: exercer, com liberdade, a profissão em todo o território nacional;”
[3] Disponível em: http://www.ioerj.com.br/portal/modules/conteudoonline/mostra_edicao.php?session=VFZSVmVVMTZaRUpPUkZGMFVsUlNRMDVUTURCT2VrMDBURlZHUTFGNlNYUk5SVmt6VDBWV1JsRnFVa0pPYW1Nd1RWUlZkMDFFVlRWUFJHc3dUbmM5UFE9PQ==. Acesso em 20.07.2017.
[4] “Art. 6º - O Procurador do Estado responsável pelo processo fica autorizado, mediante cota fundamentada nos autos do processo administrativo respectivo, a não interpor Recursos Especial, Extraordinário ou de Revista, e subsequentes Agravos, nas seguintes hipóteses: I- o Recurso Extraordinário versar sobre tema cuja repercussão geral já foi negada pelo Supremo Tribunal Federal; II - o recurso contrariar Enunciado de Súmula Vinculante; III - o recurso se fundamentar em tese contrária a uma tese já fixada em sede de Recurso Repetitivo, salvo se envolver questão constitucional pendente ou passível de exame pelo Supremo Tribunal Federal, ou de Repercussão Geral ou, ainda, contrária a um Enunciado de Súmula Vinculante; IV - o recurso se fundamentar em tese contrária a uma tese já fixada em sede de incidentes de resolução de demandas repetitivas ou de assunção de competência; V- na fase de execução das sentenças trabalhistas, não houver violação direta e literal à Constituição da República, nos termos do § 2º do art. 896 da CLT; VI - Recurso Especial, Extraordinário ou de Revista, e subsequentes Agravos, que demandem reexame de fatos e provas, conforme Enunciados das Súmulas nº 279 do STF, nº 7 do STJ e nº 126 do TST; VII - Recurso Especial, Extraordinário ou de Revista, e subsequentes Agravos, fundados em violação à legislação federal ou à Constituição da República meramente reflexa, na forma dos enunciados das Súmulas nº 280, nº 399 e nº 636 do STF; VIII - Recurso Especial ou Extraordinário, e subsequentes Agravos, que tenham por intuito a simples interpretação de cláusulas contratuais, na forma dos Enunciados das Súmulas nº 5 do STJ e nº 454 do STF. §1º - Nos casos dos incisos I, II, III e IV é dever do Procurador do Estado responsável pelo processo indicar, em sua cota fundamentada, o recurso paradigma do Tribunal Superior, o incidente correspondente, ou o Enunciado de Súmula Vinculante que justificam a não interpo sição do respectivo recurso. §2º- Em todas as hipóteses previstas no caput, o Procurador do Estado responsável pelo processo deverá dar ciência ao Procurador-Chefe quando os processos forem classificados como estratégicos ou prioritários, inda no primeiro terço do prazo recursal. §3º- Os processos classificados como prioritários singulares ou estratégicos, após a ciência do Procurador-Chefe, deverão ser encaminhados ao Gabinete do Procurador-Geral. §4º- Na hipótese do parágrafo 2º, caso haja divergência de entendimento entre o Procurador do Estado responsável pelo processo e o Procurador-Chefe, este submeterá o processo administrativo ao Gabinete do Procurador-Geral na metade do prazo recursal. §5º- Fica facultado ao Procurador-Chefe avocar a análise quanto à não interposição dos recursos elencados no caput quando considerar a matéria relevante por questões de estratégia processual, ou em virtude de seu potencial multiplicador, hipótese em que os Procuradores do Estado responsáveis pelo processo deverão observar a orientação da Chefia. Art. 7º - O Procurador do Estado responsável pelo processo não interporá Recurso Especial, Extraordinário ou de Revista, e os Agravos subsequentes, nos processos comuns padrão. §1º- Se pelas circunstâncias do caso o Procurador do Estado responsável pelo processo entender que o recurso deve ser interposto, deverá ser encaminhado no primeiro terço do prazo recursal pedido de autorização para o Procurador-Chefe. §2º- Na hipótese prevista no parágrafo anterior, caso haja divergência de entendimento entre o Procurador do Estado responsável pelo processo e o Procurador-Chefe, este submeterá o processo administrativo ao Gabinete do Procurador-Geral na metade do prazo recursal. §3º- O disposto no caput não se aplicará quando, apesar de classificado como comum padrão, o processo envolver tema para o qual haja orientação geral formal do Procurador-Geral, após solicitação do Procurador-Chefe, para a interposição do recurso”.
[5] OLIVEIRA, Weber Luiz de. Precedentes judiciais na Administração Pública: limites e possibilidade de aplicação, Salvador: Editora Juspodivm, 2016.
[6] “Art. 7º. §1º- Se pelas circunstâncias do caso o Procurador do Estado responsável pelo processo entender que o recurso deve ser interposto, deverá ser encaminhado no primeiro terço do prazo recursal pedido de autorização para o Procurador-Chefe. §2º- Na hipótese prevista no parágrafo anterior, caso haja divergência de entendimento entre o Procurador do Estado responsável pelo processo e o Procurador-Chefe, este submeterá o processo administrativo ao Gabinete do Procurador-Geral na metade do prazo recursal”.
[7] Disponível em: http://www.pge.rj.gov.br/imprensa/noticias/2017/07/pge-rj-muda-procedimentos-para-desafogar-tribunais-superiores. Acesso em 20.07.2017.
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