Coluna Direito Negocial em Debate / Coordenador Rennan Mustafá
A autonomia privada é o cerne da celebração dos negócios jurídicos. Historicamente previa que a vontade livre manifesta no contrato deve ser cumprida, não cabendo interferência externa a avença. Entretanto, na atualidade, não se constitui ilimitada e absoluta. A partir da centralização da pessoa humana no ordenamento jurídico, o direito aplicado à esfera privada nas relações entre indivíduos passa a ser delimitado pelos princípios oriundos do texto constitucional, norma suprema e centralizadora do sistema normativo. Desta forma, questiona-se: a autonomia privada histórica e tradicional é condizente com a legalidade constitucional e a realização da pessoa humana?
Aprioristicamente cumpre ressaltar a distinção entre autonomia da vontade e autonomia da privada. Conforme Luigi Ferri “as duas expressões podem parecer sinônimos à primeira vista, mas não são”[1]. A primeira está relacionada ao fenômeno psicológico capaz de gerar a ação finalística na seara da autonomia privada[2]. Representa a liberdade do indivíduo, constituindo a faculdade que a pessoa possui de agir ou não de acordo com a sua própria vontade[3].
Por sua vez, a autonomia privada consiste no poder das partes de estipular, dentro dos limites legais e principiológicos, a norma aplicada à situação concreta avençada. Trata-se do “poder que o particular tem de estabelecer as regras jurídicas de seu próprio comportamento”[4], criando, modificando ou extinguindo relações jurídicas, atribuindo-lhes conteúdo e efeitos determinados, sob a tutela do direito[5], sendo manifestada, essencialmente, mediante negócios jurídicos. Assim, a autonomia privada só é possível em ordenamentos econômicos-sociais que reconhecem uma esfera de autonomia individual.
Em face da constitucionalização do direito privado, notadamente contemplado a partir da promulgação da Constituição Federal de 1988,de modo que as relações jurídicas privadas passam a ser norteadas, também, pelo texto constitucional, e do fenômeno da despublicização, tem-se uma derrocada da concepção ilimitada da autonomia da vontade e a sua substituição pelo princípio da autonomia privada.
A necessária evolução da contratualização, anteriormente alicerçada na concepção de que a vontade livremente manifestada deveria ser cumprida, hodiernamente adquire novos contornos, de forma a conceber o poder de contratar como não absoluto, mas limitado pelos princípios constitucionais e civilísticos, haja vista estar fundada na ordem, na justiça e na liberdade. Sendo assim, a evolução do conceito de autonomia da vontade para o princípio da autonomia privada modifica consideravelmente a compreensão de negócio jurídico, que se acha atrelado aos valores constitucionais, sobretudo, à realização da dignidade da pessoa humana e da solidariedade social[6].
Neste sentido, tem-se que os negócios jurídicos contemporâneos são alicerçados sobre a autonomia privada e não sobre a autonomia da vontade. Segundo Antônio Junqueira de Azevedo, “negócio jurídico é todo fato jurídico consistente em declaração de vontade, a que o ordenamento jurídico atribui efeitos designados como queridos, respeitados os pressupostos de existência, validade e eficácia impostos pela norma jurídica que sobre ele incide”[7].
Desta forma, todo pacto isento de vício e causa de invalidade faz lei entre as partes, conforme o clássico princípio do pacta sunt servanda. Afastá-lo das relações contratuais poderia gerar uma crise de confiança, fragilizando a autonomia privada. Ainda “descaracterizaria o significado dos próprios direitos da personalidade envolvidos nas negociações”[8].
Dada a centralização da pessoa humana, hodiernamente torna-se possível contratar para além das questões meramente patrimoniais, mas a possibilidade de contratualizar questões existenciais. Haja vista que os atos de autonomia privada deixaram de ter fundamento exclusivo na livre iniciativa econômica, consubstanciada no artigo 170 da Constituição Federal.
Sendo assim, “quando os atos de autonomia disserem respeito às situações existenciais, se relacionam diretamente à cláusula geral de tutela e promoção da pessoa humana”[9], prevista no artigo 1°, inciso III da Carta Fundamental. “Aliás, é a autonomia – a liberdade -, que renasce com a consagração da dignidade da pessoa humana, realocando o homem no centro do ordenamento, mas, agora, em razão de sua existência e não de seu patrimônio[10](LÊDO; SABO; AMARAL, 2017, p. 9).
Neste contexto, contempla-se que grande parte das situações existenciais carece de legislação específica, haja vista a dinamicidade das relações na sociedade do consumo, o acelerado processo de mudança, transformação e comunicação e o avanço significativo e constante da ciência e da tecnologia que impactam as estruturas da sociedade e implicam, necessariamente, na interpretação do direito positivo e na construção da norma.
A fim de contribuir para a interpretação do fenômeno jurídico contemporâneo e a celebração de negócios jurídicos na pós-modernidade (ou modernidade líquida, conforme Zygmunt Bauman[11]) tem-se a metodologia civil constitucional. Tal perspectiva sustenta a necessidade de revisitar os clássicos institutos e categorias do direito civil à luz da legalidade constitucional. “Isto significa reler todo o ordenamento jurídico à luz da Constituição e dos valores fundamentais nos quais ele se baseia”[12]. Assim, a perspectiva visa “superar as excessivas mesclas entre interesses patrimoniais e valores existenciais, que ainda hoje caracterizam numerosos institutos civilísticos”[13], sustentando uma primazia do segundo interesse sobre o primeiro.
Precursor dos estudos relacionados à denominada metodologia civil constitucional, Pietro Perlingieri é bacharel em direito pela Universidade de Nápoles em 1959. Livre-docente em 1964. Professor titular da Universidade de Camerino em 1968. Foi professor na Universidade de Turim, Bari, Salerno, Nápoles, Roma (La Sapienza) e Benevento. Aos 28 anos, é o reitor mais jovem da Itália, liderando a Universidade de Camerino (1969-1973). Fundador da Scuola di specializzazione in diritto civile da Universidade de Camerino. Senador da república italiana (1994-1996). Doutor Honoris Causa pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (1998). Advogado.
O vasto currículo demonstra a trajetória de Pietro Perlingieri, que propõe uma reformulação do estudo do direito, ao sustentar que o direito é uma ciência social que não pode ser compreendida dissociada da filosofia, da história e da sociologia[14]. De acordo com Maria Cristina de Cicco,o professor contribuiu para “a consolidação de uma metodologia que vem se revelando um importante instrumento para a concretização dos valores existenciais privilegiados pela Lei Maior e para a consequente constitucionalização do Direito Civil”[15].
Sustentado que a norma, sendo clara ou não, deve ser interpretada conforme os valores e princípios “do ordenamento e deve resultar em um processo argumentativo não somente lógico, mas axiologicamente conforme as escolhas de fundo do ordenamento”[16]. Não se trata de apenas recorrer a Constituição para interpretar as lacunas legais e as normas ordinárias do diploma civil, mas reconhecer que as normas constitucionais devem ser aplicadas diretamente na relação jurídica privada entre os particulares, objetivando a máxima realização dos valores constitucionais[17].
Cumpre destacar, dentre a vasta produção intelectual e bibliográfica, as duas obras traduzidas para o português por Maria Cristina de Cicco: Perfis de Direito Civil: introdução ao Direito Civil Constitucional (primeira edição em 1975, a segunda em 1979 e a terceira em 1994) e Direito Civil na legalidade constitucional (lançada a primeira edição em 1984, a segunda completamente renovada em 1991 e a terceira edição em 2006, fortemente renovada e ampliada), considerada a obra-prima de Perlingieri pela tradutora, marca do pensamento jurídico na abertura do século XXI pelo Ministro Eros Grau e uma reflexão mais exigente em relação à “Perfins” pelo próprio autor.
O direito civil constitucional constitui-se em uma metodologia de interpretação do fenômeno jurídico, afasta-se do pragmatismo jurídico e do jusnaturalismo. Doutrina que o direito civil não pode ser compreendido como um conjunto de valores isolados da realidade em que está e fechado em si, uma vez que este compõe o “sistema solar” em que o “sol” é a Constituição Federal, devendo ser compreendido no contexto sistemático do ordenamento jurídico[18]. Uma vez que a manutenção da unidade do ordenamento somente poderá ser assegurada a partir da centralidade entorno do texto constitucional, detentora da tábua de valores da sociedade[19].
Para Pietro Perlingieri[20], autonomia privada pode ser conceituada como “o poder, reconhecido ou concedido pelo ordenamento estatal a um indivíduo ou a um grupo, de determinar vicissitudes jurídicas”. A autonomia privada, que outrora norteava a práxis do direito civil, não deixa de existir e atuar, mas a sua funcionalidade é redirecionada para a concretização dos valores constitucionais[21].
Desta forma, torna-se necessário a releitura da autonomia privada à luz da legalidade constitucional, uma vez que as escolhas políticas e éticas da sociedade em determinada quadra histórica consubstanciada na Constituição Federal de 1988 constitui o epicentro axiológico que deverá nortear a celebração dos negócios jurídicos, sejam eles patrimoniais ou existenciais.
Notas e Referências
[1] FERRI, Luigi. La autonomía privada. Luis Sancho Mendizábal (Trad.). Granada: Editorial Comares, 2001, p. 5.
[2] CABRAL, Eurico de Pina. A “autonomia” no direito privado. Revista de Direito Privado. a.5, n. 19, jul./set., 2004, p. 87.
[3] AMARAL, Francisco. Direito Civil: introdução. 8. ed. rev. atual. e aum. Rio de Janeiro: Renovar, 2014.
[4] BETTI, Emílio. Teoria Geral do Negócio Jurídico. Tomo I. Fernando de Miranda (Trad.) Coimbra: Coimbra, 169, p. 87.
[5] AMARAL, Francisco. Op. Cit.
[6] BORGES, Roxana Cardoso Brasileiro. Disponibilidade dos direitos de personalidade e autonomia privada. São Paulo: Saraiva, 2005.
[7] AZEVEDO, Antônio Junqueira de. Negócio jurídico: existência, validade e eficácia. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 15.
[8] CARVALHO, Dimitre Braga Soares de. Contratos familiares: cada família pode criar seu próprio Direito de Família. Instituto Brasileiro de Direito de Família. 01 jul. 2020, p. 6. Disponível em: https://ibdfam.org.br/artigos/1498/Contratos+familiares:+cada+fam%c3%adlia+pode+criar+seu+pr%c3%b3prio+Direito+de+Fam%c3%adlia#_ftn1
[9] MEIRELES, Rose Melo Vencelau. Autonomia privada e dignidade humana. Rio de Janeiro: Renovar, 2009, p. 98.
[10] LÊDO, Ana Paula Ruiz Silveira; SABO, Isabela Cristina; AMARAL, Ana Cláudia Corrêa Zuin Mattos do. Existencialidade humana: o negócio jurídico na visão pós-moderna. Civilística.com. a. 6. n. 1. 2017. Disponível em: https://civilistica.emnuvens.com.br/redc/article/view/285. Acesso em: 07 set. 2020.
[11]BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.
[12] PERLINGIERI, Pietro. Normas constitucionais nas relações privadas. Civilistica.com. Rio de Janeiro, a. 8, n. 1, 2019, p. 7. Disponível em: http://civilistica.com/normas-constitucionais-nas-relacoes-privadas/
[13] PERLINGIERI, Pietro. O direito civil na legalidade constitucional. Trad. Maria Cristina de Cicco. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 584.
[14] NOGUEIRA, Marco Aurélio. Estudos em homenagem a Pietro Perlingieri análise da obra: o direito civil na legalidade constitucional. Revista da Faculdade de Direito de Uberlândia. v. 38. n. 02: 581-604, 2010.
[15]CICCO, Maria Cristina de. In: PERLINGIERI, Pietro. Op. Cit.
[16] Ibidem, p. 597.
[17] SCHREIBER, Anderson. Manual de direito civil contemporâneo. São Paulo: Saraiva, 2019, p. 53.
[18] LORENZETTI, Ricardo Luís. Fundamentos de direito privado. São Paulo: RT, 1998.
[19] MORAES, Maria Celina Bodin de Moraes. O conceito de dignidade humana: substrato axiológico e conteúdo normativo. In: Sarlet, Ingo Wolgang (Org.). Constituição, direitos fundamentais e direito privado. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003, p. 107.
[20] PERLINGIERI, Pietro. Perfis do direito civil: introdução ao direito civil constitucional. 3. ed. Renovar: Rio de Janeiro, 2002, p. 17.
[21] TEPEDINO, Gustavo. Direito civil e ordem pública na legalidade constitucional. Boletim Científico. ESMPU, Brasília, a. 4 - n.17, p. 223-235 – out/dez., 2015.
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