Compreende-se a garantia ao esquecimento como direito subjetivo do indivíduo ou da coletividade em ter certas informações, acontecimentos e eventos retirados do domínio público. Nesses casos, constata-se que tal exposição é prejudicial ao indivíduo ou à coletividade, dado que a publicização desse fato lesa a imagem, a honra, a privacidade e a intimidade do indivíduo envolvido, atentando, assim, contra os direitos da personalidade previstos no artigo 5º, X, da Constituição da República.
Verifica-se que o direito ao esquecimento não está previsto expressamente no ordenamento jurídico pátrio. Trata-se de uma construção doutrinária e jurisprudencial com base na interpretação sistemática do ordenamento jurídico e no diálogo de fontes, a qual visa assegurar os direitos de personalidade e da dignidade humana, garantindo, desse modo, que dados vexatórios do sujeito, que estejam em circulação no meio público ou privado, sejam removidos.
Na definição empregada pela doutrina:
Em linhas gerais, o direito ao esquecimento não atribui a ninguém o direito de apagar fatos ou de reescrever a história – ainda que seja a própria história. Em verdade, trata-se da possibilidade reconhecida a todas as pessoas de restringir o uso de fatos pretéritos ligados a si, mais especificamente no que tange ao modo e à finalidade com que são lembrados esses fatos passados.
Mais ainda: é o direito de impedir que dados e fatos pessoais de outrora sejam revividos, repristinados, no presente ou no futuro de maneira descontextualizada[1].
A partir da experiência civilista advinda da legislação alienígena, o Conselho da Justiça Federal (CJF) editou o Enunciado nº 531 da VI Jornada de Direito Civil, em 2013, referente à comemoração dos 10 (dez) anos de vigência do Código Civil, em que “A tutela da dignidade da pessoa humana na sociedade da informação inclui o direito ao esquecimento”[2].
Assim, depreende-se que o direito ao esquecimento deriva do princípio constitucional da dignidade da pessoa humana, sustentáculo da Constituição Cidadã, conforme disposição do artigo 1º, III. Logo, a ausência de previsão legal específica não altera a pretensão do indivíduo em compelir determinado segmento da sociedade em olvidar de dadas informações a seu respeito, sejam elas verídicas ou não. Por seu turno, há autores que entendem que o direito ao esquecimento encontra-se tacitamente previsto nos artigos 11 e 12 do Código Civil[3].
Na ocasião da VI Jornada de Direito Civil discutiu-se, ainda, acerca dos impactos que os meios digitais estariam causando na vida das pessoas, de modo que fatos pretéritos, há muito encerrados, estariam sendo revividos e inseridos de forma igual ou diversa do contexto originário, causando desconforto e constrangimento à vítima.
Ademais, observa-se que a proteção ao direito de esquecimento possui gênese na seara criminal, como direito concedido ao ex condenado à ressocialização[4], restringindo que informações relativas ao seu crime e condenação ficassem limitadas ao conhecimento do Juizado Criminal e de personalidades adjacentes. Por conseguinte, tem-se que a prática consagrada na seara cível é oriunda desses reflexos criminais. Nessa premissa, menciona-se a previsão contida no artigo 202 da Lei de Execuções Penais, cujo registro do cumprimento da pena ficará restringido à autoridade policial e ao Poder Judiciário[5].
O conflito existente que enseja ou não a procedência total ou parcial ao direito de esquecimento, quando ajuizada ação de jurisdição contenciosa, dá-se entre dois princípios constitucionais: o direito de personalidade (art. 5º, X) o direito à liberdade de expressão (art. 5º, IV e IX).
O simples reconhecimento da existência efetiva de um direito ao esquecimento não conduz, por si só, ao imperativo dever de abster da informação (ou de indenizar pela informação já publicada). Até mesmo porque existem fatos que estão enraizados na mídia e na história de uma sociedade, prendendo-se, muita vez, ao próprio processo de formação da identidade cultural de um povo. Estes não serão apagados e, tampouco, esquecidos. É preciso, pois, ponderar os interesses em conflito (personalidade, de um lado, liberdade de imprensa, do outro) para que se possa, caso a caso, deliberar a melhor solução[6].
A influência midiática e a disseminação instantânea através dos meios virtuais e sítios eletrônicos revelam dois aspectos de uma mesma problemática: o mesmo veículo de transmissão de informação é apto a ascender ou rebaixar determinada pessoa a depender do conteúdo informativo a ela vinculado, sendo verdadeiro ou não. O compartilhamento deste conjunto de referências tem o condão de ensejar, em alguns casos, o dano presumido – ou dano “in re ipsa” –, visto que a depender do círculo de pessoas que receberam e divulgaram o conteúdo, a abrangência ou restrição desta possibilidade de propagação ensejará a caracterização e consequentemente majoração dos danos morais.
Convém salientar que o CJF também editou o Enunciado nº 576, proveniente da VII Jornada de Direito Civil, cujo teor é de que “O direito ao esquecimento pode ser assegurado por tutela judicial inibitória”[7]. Entretanto, entende-se que o conteúdo da orientação acima possui cunho mormente processual do que material. Forja-se, então, a busca pela tutela jurisdicional que assegure, quando caso for, o resultado útil da pretensão da parte autora relacionada à exclusão de conteúdo passado de sua vida que retornou à voga.
Nesta esteira, o Código de Processo Civil (CPC) dispõe as tutelas provisórias e a tutela definitiva. A primeira compreende o gênero tutela antecipada, o qual se subdivide em tutela de urgência e tutela da evidência. Por sua vez, a tutela de urgência ramifica-se em tutela de urgência antecipada incidental, tutela antecipada em caráter antecedente e tutela cautelar em caráter antecedente.
No mais, a tutela definitiva far-se-á com a publicação da sentença de mérito, oportunidade em que se operarão os efeitos do dispositivo a partir do trânsito em julgado, quando o conteúdo torna-se imutável, pois se encontra revestido pela coisa julgada material, em atenção aos artigos 502, 503, 506 do CPC.
Sob este espectro, a tutela inibitória do ato ilícito prevista no Enunciado nº 576 pode ser requerida antes do provimento jurisdicional terminativo – sentença de mérito –, e neste caso deverá haver a conjugação da probabilidade do direito (“fumus boni iuris”) e o perigo de dano ou risco ao resultado útil do processo (“periculum in mora”), nos termos do artigo 300 do Código de Processo Civil. Além disso, a depender da espécie processual utilizada, outros requisitos serão imprescindíveis, como, por exemplo, o aditamento da inicial.
Por seu turno, a tutela inibitória também estará presente no dispositivo da sentença, de modo que cabe ao magistrado, em havendo a procedência integral ou fracionada dos pedidos contidos na petição inicial, conceder tutela específica com o fito de interromper a ameaça ao direito do requerente.
Assim, caso tenha sido concedida a tutela antecipada requerida inicialmente ou ao longo do processo, o juízo a confirmará, podendo fixar novas astreintes, as quais não se confundirão com a multa fixada anteriormente em sede de tutela antecipada, caso tenha sido deferida, consoante artigo 500 do Código de Processo Civil.
Todavia, não havendo requerimento ou tendo este sido indeferido, pode, de ofício, conceder tutela específica a fim de assegurar o requerimento procedente nas demandas relacionadas às obrigações de fazer ou de não fazer, nos ditames do artigo 497 do CPC.
Não obstante, traz-se à baila o entendimento jurisprudencial a respeito do conflito existente entre os direitos e garantias fundamentais: personalidade e liberdade de expressão, não havendo pacificação nos tribunais, devendo ponderar-se os valores segundo o caso concreto e suas repercussões. Inclusive este é o método interpretativo previsto no Enunciado nº 274 da IV Jornada de Direito Civil:
Enunciado nº 274. Os direitos da personalidade, regulados de maneira não-exaustiva pelo Código Civil, são expressões da cláusula geral de tutela da pessoa humana, contida no art. 1º, inc. III, da Constituição (princípio da dignidade da pessoa humana). Em caso de colisão entre eles, como nenhum pode sobrelevar os demais, deve-se aplicar a técnica da ponderação[8].
A doutrina cita importante caso envolvendo a absolvição de um acusado em uma chacina, o qual foi obrigado a alterar seu registro civil e sua residência, e mesmo assim fora encontrado para reviver a reconstrução do crime que fora inicialmente indiciado:
O REsp 1.334.097/RJ foi de um cidadão indiciado na chacina da candelária e, posteriormente, absolvido pelo júri. O próprio Ministério Público pediu a absolvição dele, por entender que não tinha conexão com aquele caso rumoroso, de muita repercussão, dramático, quando foram assassinados vários garotos em frente à candelária no Rio de Janeiro. Nesse caso, o indivíduo, para recomeçar a vida, precisou mudar de nome e entrar no programa do Poder Executivo para buscar residência em outra cidade e candidatar-se a novo emprego, além de ter sido perseguido em sua comunidade. Quando ele se estabilizou, o programa de uma emissora de televisão, que fazia reconstituições de crimes, procurou-o e pediu para entrevistá-lo. Ele se negou a participar e disse que já havia sido absolvido. Mesmo assim, o programa foi exibido, o que ensejou a ação indenizatória, invocando-se como um dos fundamentos, mas não o único, o direito de ser esquecido, já que houve absolvição. Nesse caso, foi concedida a indenização[9].
Infere-se que o recorrente, mesmo com a absolvição pelo Tribunal do Júri e com a mudança de identidade e moradia, fora perseguindo insistentemente para que seu passado voltasse à tona em forma de reconstrução de fato negativo a respeito de sua pessoa, ante à nítida descaracterização da verdade dos fatos. Assim sendo, houve a devida indenização contra a emissora de televisão que ocasionou danos à sua honra.
Em outro julgado proveniente do TJPR[10], diversos meios jornalísticos reviveram vídeos e informações publicadas por amigos do recorrido, no qual faziam menção aos fatos criminosos quando do cumprimento da pena após decurso razoável de tempo. Como não houve a constatação de interesse público que justificasse a propagação destas informações e, embora a atividade jornalística não tenha perpetrado nenhum ilícito – como a divulgação de fatos falsos –, o direito ao esquecimento foi acolhido e, via de consequência, a condenação solidária das recorrentes em danos morais.
Ademais, colaciona-se o entendimento do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo que acolheu a tese do direito ao esquecimento pela vinculação recente de matérias relacionadas ao crime que o autor cumpriu pena há mais de 10 anos. Com o lapso temporal decenal, entendeu o Tribunal pela manutenção da sentença que determinou a obrigação de fazer consistente na retirada de páginas e termos de busca junto a provedores da “Internet”[11].
Diante do exposto, o direito ao esquecimento alude à proteção constitucionalmente conferida à intimidade, privacidade, honra e imagem do cidadão quando fatos de seu passado, deturpados ou não, retornam ao presente, ocasionando graves lesões à sua índole física, mental e/ou psíquica, sendo necessária a adoção de ações e omissões para coibir a prática nefasta, seja judicialmente ou extrajudicialmente, por força do artigo 12 do Código Civil.
Diante disso, averígua-se que há situações que não devem mais serem revividas, pois o contexto em que foram criadas encontra-se destoante da realidade do indivíduo ou da coletividade. A rememoração de casos provenientes do Direito Penal ou de fatos polêmicos não trazem benefícios, e sim malefícios, mesmo que a pessoa transmissora das informações esteja de boa-fé, devendo ser explorada a potencialidade dos danos causados pela exposição do passado, ao lume dos artigos 186, 187, 927, 944, 950, 953 e 954 do Código Civil e 5º, 322, § 2º e 489, § 3º, do Código de Processo Civil.
Notas e Referências
[1] FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de Direito Civil: vol. 1: parte geral e LINDB. 15. ed. Salvador: Juspodivm, 2017, p. 204.
[2] BRASIL. Conselho da Justiça Federal. VI Jornada de Direito Civil. Enunciado nº 531: A tutela da dignidade da pessoa humana na sociedade da informação inclui o direito ao esquecimento. Brasília, 2013. Disponível em: https://www.cjf.jus.br/enunciados/enunciado/142. Acesso em: 30 set. 2020.
[3] TARTUCE, Flávio. Manual de Direito Civil: volume único. 10. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2020, p. 157.
[4] BRASIL. Conselho da Justiça Federal, op. cit.
[5] BRASIL. Lei nº 7.210, de 11 de julho de 1984. Institui a Lei de Execução Penal. Brasília: DF, Presidência da República. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l7210.htm. Acesos em 30 set. 2020.
[6] FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson, op. cit., p. 205.
[7] BRASIL. Conselho da Justiça Federal. VII Jornada de Direito Civil. Enunciado nº 576: O direito ao esquecimento pode ser assegurado por tutela judicial inibitória. Brasília, 2015. Disponível em: https://www.cjf.jus.br/enunciados/enunciado/821. Acesso em: 30 set. 2020.
[8] BRASIL. Conselho da Justiça Federal. IV Jornada de Direito Civil. Enunciado nº 274: Os direitos da personalidade, regulados de maneira não-exaustiva pelo Código Civil, são expressões da cláusula geral de tutela da pessoa humana, contida no art. 1º, inc. III, da Constituição (princípio da dignidade da pessoa humana). Em caso de colisão entre eles, como nenhum pode sobrelevar os demais, deve-se aplicar a técnica da ponderação. Brasília, 2007. Disponível em: https://www.cjf.jus.br/enunciados/enunciado/821. Acesso em: 30 set. 2020.
[9] GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo Curso de Direito Civil: vol.1: parte geral. 21. ed. São Paulo: Saraiva, 2019, pp. 291-292.
[10] PARANÁ. Tribunal de Justiça do Estado do Paraná. Recurso Inominado nº 0003159-14.2016.8.16.0019. Relatora: Juíza Giani Maria Moreshi, 7 de julho de 2017. Recorrentes: Gazeta do Povo, Globo Comunicação e Participações S/A, Google Brasil Internet Ltda., Paraná Online e RPC. Recorridos: Leandro Ferreira do Amaral, FM Studio 96 Ltda. – EPP, Jusbrasil e LK Radiofusão Ltda. (Rádio Banda B), Jusbrasil. Disponível em: https://tj-pr.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/923284832/processo-civel-e-do-trabalho-recursos-recurso-inominado-ri-31591420168160019-pr-0003159-1420168160019-acordao/inteiro-teor-923284839?ref=juris-tabs. Acesso em: 30 set. 2020.
[11] SÃO PAULO. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Apelação Cível nº 10711266020188260100 SP 1071126-60.2018.8.26.0100. Relator: Desembargador Estadual Carlos Alberto de Salles, 11 de maio de 2020, Jusbrasil. Disponível em: https://tj-sp.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/890715644/apelacao-civel-ac-10711266020188260100-sp-1071126-6020188260100/inteiro-teor-890716295?ref=juris-tabs. Acesso em 30 set. 2020.
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