AUTODEFESA CONSTITUCIONAL. PORQUE ASSIM NÃO CAMINHA A HUMANIDADE

12/11/2022

Coluna Por Supuesto

Recentemente Renata Uitz, a coordenadora do programa de Direito Constitucional da Universidade Centro-Europeia, respondia uma pergunta direta: a democracia morreu na Hungria? E dizia a professora: “depende da sua crença na democracia constitucional. Uma democracia morre quando se torna impossível que a oposição ganhe uma eleição (...)”. A resposta não poderia ser mais impactante quando visualizada à luz dos acontecimentos no Brasil, especialmente tendo em vista o tecido de opacidade que começou a ser elaborado para instalar, na compreensão, subjetividade e pensamento da coletividade nacional e internacional, que o processo eleitoral carecia de transparência.

Outra questão especialmente importante foi sua referência a como o primeiro-ministro Viktor Orban saiu vitorioso com a sua proposta de que o presidente do Tribunal Constitucional fosse eleito pelo Parlamento, no qual ele e seu partido ostentam a maioria. A Constituição foi utilizada para esse fim, diz a professora. Estes mecanismos, alerta, são muito difíceis de contestar e, de fato, “Não importa que tipo de instrumento constitucional se tem contra a tirania (...) a autodefesa constitucional só funciona se a elite política estiver disposta a aderir às regras do jogo”. [1]

As afirmações continuam a trazer elementos importantes, dentro do descarrilhamento que sofreram no Brasil princípios básicos como o republicano ou o democrático. Pode ser republicano o orçamento secreto? Ou, pode-se compatibilizar o sigilo de atos presidenciais com a necessidade de prestar contas, elemento que se encontra no cerne de qualquer república? Esse parêntesis violento, agressivo, (digo, parêntesis porque tem que acabar logo) contrário à não aceitação dos resultados eleitorais, pode ser considerado fundado na livre expressão? Pode ser, por acaso assumido em são consciência jurídica e política, um aprofundamento da democracia? A reposta é não e mil vezes não!

No Brasil a questão da Constituição, das opções constitucionais, sempre esteve e está em jogo. O propósito de atentar contra ela, iniciado de maneira franca e aberta no 2016, impactou não somente no político, senão também na esteira social, através de sucessivas restrições orçamentárias, da redução da capacidade de investimento do Estado, do descaso com o sistema orçamentário em sintonia com o federalismo cooperativo em plena pandemia. Desconhecer as opções constitucionais, subvertendo, sem importar cláusulas pétreas, a lógica valorativa que repousa na intimidade do texto normativo, tornou-se um esporte, na qual ainda se joga com PECs dificilmente defensáveis em termos jurídicos, mas lançadas para causar impacto e promover na arena pública os impropérios na contramão da efetividade dos direitos fundamentais. A tática segue com propostas como a redução da maioridade penal, tristemente encampada pelo governador eleito em SP. 

Em essa toada não somente se afirmou um neoliberalismo selvagem cuja consequência mais tremenda são os níveis de insegurança alimentar grave de mais de 30 milhões de brasileiros, conforme o 2º Inquérito Nacional sobre Segurança Alimentar no Contexto da Pandemia da COVID19 no Brasil 20021-2022, senão que outras questões apareceram. Em particular duas que interessavam muito a esse projeto: por um lado, a negação da ciência como conjunto de conhecimentos capazes de articular a racionalidade humana, que se impõe argumentativamente através do resultado da aplicação de métodos sólidos de pesquisa e que se projeta no plano jurídico para construir um dever-ser contrário ao pensamento discriminatório, contrário à desigualdade homem-mulher, ao racismo e à homofobia e, de outro lado, a necessidade de desmontar o potencial transformador e crítico das universidades. O projeto de formar uma nova elite não apenas tecnocrática, senão comprometida com sustentar uma visão afastada da natural capacidade transformadora do ser humano, promoveu uma estupidez como a tal “Escola sem partido”, que ganhou adeptos nos mais contrários a um educação conforme as diretrizes constitucionais dos artigos 205 e 206 da CF.

Um projeto desta natureza precisa de apoios de segmentos atrasados, porém poderosos financeiramente. Não se atentou em outra época contra Weimar, contra o Estado Social e contra a democracia como regime político sem um mínimo de base populacional que sustentara o exercício de construir um leviatã ameaçador e centrado na figura do mito. Para a extrema direita que desconhece o vigor das Constituições e às quais não mais lhe serve, no meio da crise estrutural, o pensamento clássico liberal, é uma necessidade ingressar na psique social a partir de métodos conhecidos, que sugerem o uso de símbolos como a mão levantada, a foto de alguém representativo atrás de quem fala, ou a retórica que cita as frases já expostas em outro tempo pelos arautos da desigualdade étnica, racial e social. No Brasil a alusão ao nazismo e ao fascismo, no estilo copiado da Europa, desde a motociata ao melhor estilo Mussolini, mereceu um destaque preocupante e ao mesmo tempo repulsivo. Mas, também, foi preciso apostar no medo e este, criteriosa e permanentemente incutido em segmentos da população, vingou na forma de ameaça originada por um inimigo invisível para alguns, desconhecido para outros, difuso para a maioria, mas que precisou ser facilmente identificado e concretizado numa cor, numa ideia, numa visão, numa instituição.  Nada mais propício que atentar contra o Supremo Tribunal Federal, que foi convertido em alvo no ecossistema disposto de fake News que também alimentava o mito sob a bandeira de Deus, a família e a propriedade.  

Mas, contradizendo o filme: assim NÂO caminha a Humanidade.

No Brasil de hoje não há muito lugar para vacilações. A pergunta a ser respondida é de que lado estamos. Ou mantemos as opções constitucionais fundamentais, as regras do jogo democrático e se aposta num programa civilizatório ancorado no combate à ausência de cristalização dos direitos sociais, à fome, ao racismo, à desigualdade de género ou como pretende uma proposta vencida eleitoralmente no último 30 de outubro, se aposta no atraso, no golpismo e na violência. Posicionar-se é fundamental, e supera o eleitoral.

Por isso, por supuesto, os atos realizados por pequenos grupos de pessoas com motivações contrárias ao resultado nas urnas, e que expressam chamados à intervenção militar ou a uma situação formal de exceção, merecem toda a rejeição, o repúdio e a ação concreta, com fundamento na Constituição e na lei, para sua contenção, com a devida responsabilização civil e criminal dos seus protagonistas. A autodefesa constitucional tem mecanismos para funcionar, mas isso implica, importante dizer, uma frente política, social, jurídica, para restabelecer quanto antes os princípios e regras democráticos arranhados. Nesse processo há que avançar.   

 

Notas e Referências

[1] Folha de São Paulo, 17.10.2022. A14.

 

 

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