Autocuidado na saúde – Por Clenio Jair Schulze

17/04/2017

O Estado pode exigir que as pessoas pratiquem o autocuidado?

Trata-se que questão muito importante na área da saúde, pois a falta de um estilo de vida adequado, com hábitos não saudáveis, relacionados à alimentação e à ausência de atividade física podem exigir gastos desnecessários. A questão se agrava quando a pessoa não pratica o autocuidado e ainda postula judicialmente a condenação dos entes públicos ou do plano de saúde ao fornecimento de tratamento que não está padronizado.

Segundo pesquisa[1], a ausência de autocuidado já trouxe os seguintes danos à sociedade:

1) Contados os gastos dos sistemas de saúde e os anos perdidos de trabalho por morte precoce, a inatividade física custou para o mundo US$ 67,5 bilhões (cerca de R$ 217,5 bi). O número é igual ao PIB da Costa Rica e maior do que o PIB de 80 dos 142 países estudados.

2) O mundo perdeu 13,4 milhões de anos de trabalho com as mortes prematuras.

3) Quanto mais pobre o país, menor o suporte financeiro governamental e maior a despesa das famílias com o tratamento das doenças estudadas.

4) A inatividade física é uma pandemia que provoca não apenas morbidade e mortalidade, mas grandes perdas econômicas. Os problemas gerados por ela são mais graves nos países em desenvolvimento.

No plano jurídico, a Constituição tutela a dignidade da pessoa humana[2], que contempla a autonomia da vontade, razão pela qual as pessoas possuem liberdade de autodeterminação, para definir os rumos da sua vida, sem nenhuma intervenção externa. Por isso é possível fumar vários maços de cigarro por dia, ficar obeso voluntariamente e não se exercitar física e mentalmente.

De outro lado, a dignidade da pessoa humana também possui um valor comunitário, de modo que os “contornos da dignidade humana são moldados pelas relações do indivíduo com os outros, assim como com o mundo ao seu redor.”[3]

Segundo esta posição, que consagra a heteronomia e que reconhece que as pessoas não vivem isoladas, seria possível estabelecer algum tipo de restrição à autonomia da vontade. Para tanto, devem ser preenchidos os seguintes requisitos: “a) existência ou não de um direito fundamental sendo atingido; b) o dano potencial para os outros e para a própria pessoa; e c) o grau de consenso social sobre a matéria.”[4]

Assim, para Barroso, o valor comunitário “como uma restrição sobre a autonomia pessoal, busca sua legitimidade na realização da três objetivos: 1. A proteção dos direitos e da dignidade de terceiros; 2. A proteção dos direitos e da dignidade do próprio indivíduo; e 3. A proteção dos valores sociais compartilhados.”[5]

Segundo esta perspectiva, não seria abusiva a possibilidade de restrição da autonomia da vontade daqueles indivíduos que são pródigos em maltratar sua saúde. E tal posição seria adotada em prol de toda a comunidade!

Por outras palavras, inexistiria ilicitude na restrição de determinados benefícios. O Ministro Marco Aurélio, por exemplo, no julgamento conjunto dos Recursos Extraordinários 566471 e 657718 afirmou que o cidadão deve comprovar a hipossuficiência financeira para obter medicamento ainda não incorporado no SUS[6]. Idêntica posição foi fixada pelo Tribunal de Justiça de Santa Catarina – TJSC, no julgamento de Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas[7].

Como se observa, o tema é polêmico e merece reflexão da sociedade, principalmente para avaliar se é papel do Estado tutelar aquele que não adota o autocuidado.

Este texto, portanto, fomenta o debate sobre o papel do Estado e a sua relação com os indivíduos.

A restrição da autonomia da vontade e de direitos sociais somente seria viável, obviamente, se existisse incentivo estatal à prática do autocuidado, diante da necessária aplicação do princípio da proteção de confiança, da segurança jurídica e da máxima proteção dos direitos fundamentais.


Notas e Referências:

[1] VARELLA, Dráuzio. A inatividade física custou para o mundo US$ 67,5 bilhões. In Folha de São Paulo, 01 de Outubro de 2016, Caderno Ilustrada, C6.

[2] Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:

[...]

III - a dignidade da pessoa humana;

[3] BARROSO, Luís Roberto. A dignidade da pessoa humana no direito constitucional contemporâneo: a construção de um conceito jurídico à luz da jurisprudência mundial. Belo Horizonte: Fórum, 2016, p. 87.

[4] BARROSO, Luís Roberto. A dignidade da pessoa humana no direito constitucional contemporâneo: a construção de um conceito jurídico à luz da jurisprudência mundial. Belo Horizonte: Fórum, 2016, p. 95/96.

[5] BARROSO, Luís Roberto. A dignidade da pessoa humana no direito constitucional contemporâneo: a construção de um conceito jurídico à luz da jurisprudência mundial. Belo Horizonte: Fórum, 2016, p. 88.

[6] Brasil. Supremo Tribunal Federal. Pedido de vista adia julgamento sobre acesso a medicamentos de alto custo por via judicial. Acesso em 29 de janeiro de 2017. Disponível em http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=326275

[7] SANTA CATARINA. TJSC. IRDR nº 0302355-11.2014.8.24.0054, rel. Des. Ronei Danielli, Grupo de Câmaras de Direito Público, julgado em 09/11/2016.


 

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