Auto - Autorizações: Quem avalia Avaliações Psicológicas em Processos Seletivos

26/10/2015

Por Maíra Marchi Gomes - 26/10/2015

Um homem com uma dor É muito mais elegante Caminha assim de lado Como se chegando atrasado Chegasse mais adiante . Carrega o peso da dor Como se portasse medalhas Uma coroa, um milhão de dólares Ou coisa que os valha . Ópios, édens, analgésicos Não me toquem nessa dor Ela é tudo o que me sobra Sofrer vai ser a minha última obra

Paulo Leminski

O presente escrito pretende apresentar possíveis questionamentos mobilizados a partir de alguns recursos de candidatos reprovados em avaliações psicológicas realizadas em processos seletivos. Inicialmente cabe dizer que freqüentemente o candidato sequer questiona a avaliação psicológica a qual foi submetido; tanto o é que não formula qualquer argumento relacionado aos seus resultados. Assim sendo, não requer uma revisão dos instrumentos aplicados e/ou da maneira com que foram utilizados, mas simplesmente a desconsideração da atividade de avaliação psicológica e a imediata mudança de sua condição de “inapto” para “apto”.

Nesta direção é que se abordará a legitimidade da avaliação psicológica em processos seletivos, não sendo necessárias e nem pertinentes considerações a propósito das condições de aplicação (climatização, quantidade de candidatos por sala, sons/ruídos externos, adequação de instrumentos e análise dos resultados), ainda que de fato haja avaliações psicológicas mal realizadas.

Para que o candidato questionasse a avaliação psicológica a qual foi submetido, ele precisaria recorrer a conhecimentos da psicologia. E, ainda mais tecnicamente indicado, ao trabalho de um assistente técnico. Porém, como já se disse, o teor de alguns recursos resume-se a uma desqualificação da avaliação psicológica, para o que se fundamenta em conhecimentos de outras áreas. Por exemplo, do direito.

Portanto, partir-se-á neste escrito de alguns argumentos leigos apresentados pelos candidatos para questionar a avaliação psicológica, incluindo-se alguns entendimentos jurisprudenciais a respeito, sugerindo-se desde já, em relação aos últimos, que o leitor consulte as jurisprudências em sua integralidade para melhor acompanhamento da discussão aqui proposta. Pode-se elencá-los e debatê-los da seguinte forma:

1) Certos candidatos comparam o processo seletivo com outros anteriores dos quais participou, alegando que, como foi aprovado em suas respectivas avaliações psicológicas, deveria ter sido aprovado na presente. A este respeito, tem-se a dizer:

1.1) Toda avaliação psicológica avalia o momento em que o candidato se encontra, não podendo detectar o estado mental futuro (Cruz; Alchieri; Sarda Jr, 2002; Cunha et col., 1993). Portanto, é plausível que um sujeito possa ter resultados diferentes quando submetido a avaliações psicológicas em diferentes momentos (quaisquer que sejam, porque alterações psicológicas podem se dar em várias intensidades e características, em diferentes períodos de tempo, dependendo de diversos fatores);

1.2) Quando os instrumentos utilizados nas avaliações psicológicas foi submetido anteriormente foram diferentes, encontra-se mais uma justificativa para o fato de poder haver sido aprovado nas duas anteriores, e não na presente;

1.3) Toda avaliação psicológica é realizada considerando seu objetivo (Cruz; Alchieri; Sarda Jr, 2002; Cunha et col., 1993), que determina não apenas a escolha dos instrumentos, a metodologia de aplicação mas mesmo a análise dos resultados. Então, mesmo que fossem aplicadas no mesmo momento, e utilizando os mesmos instrumentos, o mesmo sujeito pode ser considerado apto em uma avaliação, e inapto em outra.

2) Quando se trata de processo seletivo para ingresso em cargo na mesma instituição onde o candidato já ocupa outro cargo, determinados candidatos alegam, a partir da inexistência de “qualquer desvio comportamental” em sua atividade profissional, que se encontra em “pleno gozo da saúde mental, corporal e intelectual”. Sobre este tipo de argumento, tem-se a dizer:

2.1) Não é porque alguém foi aprovado em uma avaliação psicológica em concurso público que será considerado apto em avaliações psicológicas outras, conforme já explicado. Isto se dá porque a mente humana não é estática, inclusive porque as condições externas pelas quais se é influenciado (por exemplo, aspectos institucionais [1]) constantemente modificam.

Logo, alguém pode ter sido aprovado para assumir um cargo, e, por mais paradoxal que pareça, o exercício deste cargo pode lhe tornar incapaz de exercer este cargo (ou um outro) na mesma instituição. Sabe-se que muitas vezes as próprias instituições não reconhecem isto, porque há falhos mecanismos de avaliação psicológica após o ingresso no cargo. Ou, em outros termos, há precariedade no acompanhamento das condições psicológicas do servidor. Talvez porque isto evidenciaria a responsabilidade que transcende o sujeito em seu estado mental;

2.2) Manifestações de alterações mentais não necessariamente aparecem no contexto do trabalho;

2.3) Nem sempre as manifestações de alterações mentais são percebidas pelos gestores, a ponto de serem notificadas. Talvez porque, em parte, os gestores também sejam servidores e, então, também podem, devido ao seu estado mental, não reconhecerem indícios de sofrimento por parte daqueles a ele subordinados;

2.4) O fato de não apresentar alterações mentais não implica que possua as condições psicológicas (aptidões, características, interesses) necessárias ao exercício de determinada função;

2.5) O fato de um sujeito considerar que está em plena saúde mental, corporal e intelectual não implica que profissionais, incluindo psicólogos, pensem o mesmo.

3) Alguns candidatos alegam que lhe foi comunicada sua inaptidão sem qualquer fundamentação, o que, em sua compreensão, torna passível de nulidade o ato administrativo, haja vista o não atendimento dos princípios constitucionais do contraditório e ampla defesa.

Ainda que seja disponibilizada a entrevista devolutiva no próprio edital do processo seletivo, onde lhes seriam apresentados o relatório/laudo psicológico e protocolos de desempenho/respostas no caso de haverem sido aplicados testes, alguns candidatos recusam-se a comparecer porque para isto precisariam estar acompanhados por um assistente técnico (um psicólogo).

3.1) A compreensão psicológica dos resultados obtidos nos instrumentos não pode ser compartilhada, porque se trata de conhecimento adquirido na formação do psicólogo. No caso da interpretação e aplicação de testes, há inclusive explícita proibição pelo Conselho Federal de Psicologia, em sua Resolução 002/2003, que define e regulamenta o uso, elaboração e comercialização de testes psicológicos. Em seu Art.1º, é dito que: “Os testes Psicológicos são instrumentos de avaliação ou mensuração de características psicológicas, constituindo-se um método ou uma técnica de uso privativo do psicólogo, em decorrência do que dispõe o §1º do Art.13 da Lei 4.119/62”.

É impossível alguém que não seja psicólogo analisar os resultados de uma avaliação psicológica, assim como é impossível que alguém aprenda a pilotar apenas lendo manuais, assistindo filmagens de erros de pilotagem, etc.

4) Quanto à jurisprudência do TRF1 (AG 200701000340107/DF, Rel Ministra Maria Isabel Gallotti Rodrigues, Sexta turma, DJ de 01/09/2008), referenciada por alguns candidatos, tem-se a pronunciar exclusivamente quanto ao item 2, que:

4.1) O psiquismo é mais amplo que o que se define como personalidade. Daí, por exemplo, os manuais de classificação compreenderem as alterações de personalidade como um dos grupos de transtornos (American PsychiatricAssociation, 2013; Caballo, 2012).

Daí também, como outro exemplo, as avaliações psicológicas não se restringirem à avaliação de personalidade. Vide, neste sentido, o Art.2º da Resolução 01/2002 do CFP, que propõe, em seu inciso  II, que o psicólogo deverá "incluir, nos instrumentos de avaliação, técnicas capazes, minimamente, de aferir características tais como inteligência, funções cognitivas, habilidades específicas e personalidade". Ou seja, o Conselho de classe entende que a personalidade é apenas uma das funções a serem avaliadas em concurso públicos e processos seletivos semelhantes, o que nos leva a pensar que a situação de avaliação psicológica nesta situação também compreende que o psiquismo não se reduz à personalidade.

O Conselho Federal de Psicologia, que é o órgão de classe da categoria profissional que parece ser a maior entendedora de avaliação psicológica (os psicólogos), diz ainda, na mesma normativa, em seu Art.2º, que “Para alcançar os objetivos referidos no artigo anterior [2], o psicólogo deverá: I – utilizar testes[3] definidos com base no perfil profissiográfico do cargo pretendido”. Logo, não se avalia o psiquismo do sujeito (por exemplo, sua personalidade), mas sua compatibilidade (momentânea, aliás) com o que a instituição espera para o exercício de determinada função.

4.2) A existência ou não de traço de personalidade que prejudique o exercício profissional não pode ser critério para indicação ou não para investidura em um cargo ou função. Todos os sujeitos possuem as características avaliadas pelos testes de personalidade semelhantes, variando sua intensidade, formas de manifestação e desencadeadores.

5) Já sobre a afirmação de alguns candidatos de que é questionável a legalidade do CFP em editar normas referentes a exames psicotécnicos que disciplinam o processo de validação dos mesmos, cabe inicialmente apontar que na Lei referida pelo próprio candidato (nº5.766 de 20 de dezembro de 1971), está literalmente expresso que este é o órgão cuja finalidade é a de fiscalizar (além de orientar) o exercício da profissão.

E, por fim, perguntar quem melhor poderia disciplinar o uso de anestésico, bisturi, laser e analgésico em uma cirurgia oftalmológica: o Conselho Federal de Medicina ou um Tribunal Regional Federal?

6) A propósito da jurisprudência cuja ementa é “Concurso público. Cargo de oficial de inteligência da ABIN. Reprovação em teste psicotécnico. Motivos e motivação insuficientes. Perfil profissiográfico. Ausência de previsão legal. Fragilidade do método e dos critérios de avaliação. Negação do direito à diferença. Personalidade humana. Complexidade e pluralismo. Paradigma sistêmico. Princípio da complementaridade”, a que também se reportam alguns candidatos:

6.1) As características de personalidade (conceito, aliás, que erroneamente o magistrado denomina de “traço de personalidade” em outro momento, como se fosse sinônimo e como se a última terminologia fosse utilizada) não são avaliadas como indesejadas, restritivas ou prejudiciais em si.  Logo, não são entendidas como positivas ou negativas em si. São considerados outros aspectos, como suas intensidades, suas manifestações e seus desencadeadores e o objetivo da avaliação (no caso, o perfil profissiográfico).

6.2) A combinação de “traços” em testes psicológicos de personalidade não é puramente quantitativa. Há que se diferenciar “matemática” de “estatística”.

6.3) Testes psicológicos, até pela própria matéria de que tratam, fundamentam-se em amostragem do que é avaliado. A amostragem “é um fator determinante da qualidade de um teste” (Campos, 2008, p.89), bem como inevitável, posto que seria inviável ou impossível avaliar toda a amplitude e variabilidade dos comportamentos;

6.4) O pensamento sistêmico é um, mas não o único, referencial teórico possivelmente utilizado por psicólogos em sua prática profissional (aqui se está considerando que o magistrado tenha utilizado a expressão "sistêmico" conforme compreensão da psicologia, haja vista estar questionando uma avaliação psicológica);

6.5) Agestalt é um referencial teórico, mas não único, possivelmente utilizado por psicólogos em sua atuação;

6.6) No manual de qualquer teste psicológico validado [4], constata-se como ilegítima a afirmação de que conceitos psicológicos são altamente indeterminados. Evidentemente, para compreendê-lo, o bacharel em Direito precisaria conhecer metodologias de pesquisa de Psicologia;

6.7) A afirmação do magistrado de que uma determinação nunca é “válida para uma pessoa no decorrer de toda sua vida e em todas as circunstâncias” apenas corrobora os argumentos já apresentados de que uma avaliação psicológica não prevê futuro e não revela o passado, e que a avaliação de resultados de uma avaliação psicológica depende de seu objetivo (circunstâncias como as atividades relativas ao cargo pretendido, no caso da seleção de candidatos). É por tais razões, lembrando mais uma vez, que se pode ser apto em uma avaliação e não apto em outra.

6.8) A psicologia não utiliza a expressão “desvios de personalidade”.

6.9) Democracia é tratar igualmente os iguais, e desigualmente os desiguais.

6.10) Psicólogo não “cadastra” pessoas;

6.11) Personalidade é diferente de temperamento, e o psiquismo humano não se reduz nem à personalidade e nem ao temperamento;

6.12) No que tange à concepção de “compensação”, pode-se perguntar se um magistrado, conhecendo Direito, compensa seu desconhecimento de Psicologia. Ou, de outra forma, se um sujeito habilitado para conduzir barco é habilitado para conduzir avião, já que uma habilidade que ele demonstrou ter compensaria outra.

Considerando que as demandas dos recursos via de regra apresentados a propósito da avaliação psicológica em concursos públicos e processos seletivos em questão baseiam-se em concepções leigas ou provindas de outras áreas que não a psicologia (por exemplo, o direito), conclui-se que os candidatos que assim procedem não apresentam nenhum argumento que comprove sua invalidade.

Talvez não apenas por acreditarem que psiquismo é assunto para qualquer um ou para bacharéis em direito, mas porque os argumentos redigidos por bacharéis em Direito a que se reportam referenciam-se em momento algum a entendimentos de profissionais da psicologia. Referenciam seus entendimentos em suas próprias (de bacharéis em Direito) concepções.

Para se questionar a validade de uma disciplina, não se pode recorrer a outra. Precisa-se utilizar do discurso da mesma disciplina a que se pretende questionar. A função da outra disciplina pode ser, no máximo, auxiliar nesta suspensão das categorias da disciplina em questão. Caso contrário, age-se como os visitantes de nossa casa que se autorizam a dar pitacos na decoração, sem considerar nosso estilo. Há, aqui, um pressuposto por parte do visitante: o de que o seu estilo é melhor que o do visitado.

Não se pode desconsiderar também o fato de que os candidatos só questionam a avaliação psicológica após serem considerados inaptos. Não se recusam, por exemplo, a participar do processo seletivo por considerarem inadequados seus critérios. Quem sabe se fossem aprovados não seriam grandes elogiadores desta atividade da psicologia?

Enfim.... cada vez mais a avaliação do grau de egocentrismo mostra-se importante.


Notas e Referências: 

[1] Com os quais um trabalhador só se depara quando começa a atuar na instituição, é importante lembrar!

[2] Art.1º - A avaliação psicológica para fins de seleção de candidatos é um processo, realizado mediante o emprego de um conjunto de procedimentos objetivos e científicos, que permite identificar aspectos psicológicos do candidato para fins de prognóstico do desempenho das atividades relativas ao cargo pretendido.

[3] Os testes não são instrumentos obrigatoriamente utilizados, como diz o Art.1º, §2º: “Optando pelo uso de testes psicológicos, o psicólogo deverá utilizar testes validados em nível nacional, aprovados pelo CFP de acordo com a Resolução CFP nº25/2001, que garantam a precisão dos diagnósticos individuais obtidos pelos candidatos” (grifo meu).

[4] Únicos que, conforme resolução 01/2002 do CFP, em seu Art.1º, §2º, podem ser utilizados por psicólogos.

AMERICAN PSYCHIATRIC ASSOCIATION.Diagnostic and statical manual of mental disorders.Fifthedition. 2013.

CABALLO, Vicente E. Manual para a Avaliação Clínica dos Transtornos Psicológicos: transtornos da idade adulta e relatórios psicológicos. Santos: Santos, 2012. 608 p.

CAMPOS, Helton Rocha. Noções de psicometria. In: FUENTES, Daniel; MALLOY-DINIZ, Leandro F.; CAMARGO, Cândida H. Pires; COSENZA, Ramon Moreira et al. Neuropsicologia: teoria e prática. Porto Alegre: Artmed, 2008. p.89-102.

CRUZ, Roberto Moraes; ALCHIERI, João Carlos; SARDA JR, Jamir J.  Avaliação e medidas psicológicas: produção do conhecimento e da intervenção profissional. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2002. 277 p.

CUNHA, Jurema Alcides, et col. Psicodiagnóstico-R. 4 ed. revisada. Porto Alegre: Artes Médicas, 1993. 533 p.


Maíra Marchi Gomes é doutoranda em Psicologia, mestre em Antropologia pela Universidade Federal de Santa Catarina e Psicóloga da Polícia Civil de SC.  

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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


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