Nesta oportunidade, publico em nossa coluna do site Empório do Direito um oportuno e bem elaborado texto sobre a polêmica Audiência de Custódia. O Estudo é da lavra do jurista Eduardo Newton.
“Como superar as barreiras da implementação da audiência de custódia
Ainda que tenha sido um processo lento e com resistência de determinados setores da comunidade jurídica, não resta dúvida de que a audiência de custódia constitui uma realidade no processo penal brasileiro. A luta pela sua efetivação necessitou enfrentar a histórica crise de efetividade das normas convencionais. Além disso, não se pode perder de vista a persistência da mentalidade autoritária que impede que conquistas civilizatórias possam ser, enfim, aplicadas no processo penal brasileiro. O presente texto tem como objetivo apresentar essas questões, pois somente com a compreensão dessas dificuldades será possível superar os obstáculos ainda existentes para a plena efetivação da audiência de custódia no Brasil.
A resistência no cumprimento de tratados internacionais marca o Brasil praticamente desde o seu nascedouro como nação independente. Muito embora a escravidão somente tenha sido abolida no ano de 1888, é sabido que desde o ano de 1831 no cenário internacional já havia se comprometido com o fim do tráfico de africanos. Eis a origem do ditado "para inglês ver". As normas convencionais que versam sobre a audiência de custódia — artigo 7.5, Convenção Americana sobre Direitos Humanos, e artigo 9.3, Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos — não tiveram destino diverso desse histórico de falta de efetividade de normas subscritas pelo Estado brasileiro na comunidade internacional. Esse fenômeno, aliás, em fins do século 20 permitiu o desenvolvimento de toda uma teoria voltada para a efetividade das normas, que teve, no plano constitucional, Luís Roberto Barroso como um de seus expoentes. Essa questão, caso examinada por prismas diversos do jurídico, permite ser trabalhada pela categoria, tão cara e incompreendida, do "homem cordial", no pensamento de Sérgio Buarque de Holanda [1].
No caso específico das normas convencionais, a crise de efetividade deve ser ainda compreendida por dois outros fatores. O desconhecimento da matéria direitos humanos na formação do profissional do Direito é uma realidade que não pode ser desprezada, o que é atestado por José Ricardo Cunha e Mariana Almeida Picanço Miranda em pesquisa realizada com magistrados fluminenses:
"Foi realizada uma pesquisa para saber se os juízes já tinham estudado direitos humanos, constatando-se que 42 magistrados (ou seja, cerca de 40% dos 109 juízes entrevistados) nunca estudaram os direitos humanos, ou, em outras palavras, quatro entre dez juízes não tiveram espaço formal para um aprofundamento das questões fundamentais relativas aos direitos humanos" [2].
Ainda que essa realidade venha se alterando, não se pode ignorar o fato de que os julgados oriundos da Corte Interamericana de Direitos Humanos, a despeito da adesão voluntária ocorrida em 1998, constituem um acervo ignorado pela maioria dos profissionais que atuam no ambiente forense. A tímida atuação do controle de convencionalidade é uma outra prova de que essa matéria não é plenamente dominada pela comunidade jurídica brasileira. A segunda razão para a crise de efetividade das normas convencionais se relaciona com o verdadeiro eclipse que a gramática dos direitos humanos alcançou com o processo de redemocratização. No curso do regime militar instaurado em 1º de abril de 1964, ao contrário do que se sucedeu durante todo processo histórico brasileiro, os alvos das atrocidades estatais não eram pertencentes aos grupos já marginalizados. Ao atingir a juventude dos extratos sociais mais elevados, a temática dos direitos humanos sensibilizou a opinião pública. Com a redemocratização, ocorreu um retorno ao status quo ante e, como consequência, a luta pelos direitos humanos acabou sendo estigmatizada por não ser uma temática que atingia os setores que já usufruíam a cidadania. Em suma, pós-1985 esse tema acabou sendo associado a direito de bandido.
Se não bastasse isso, o que, por si só, já constitui um empecilho enorme à efetivação dos direitos humanos e, dessa forma, às normas convencionais que positivam a audiência de custódia, não se pode fechar os olhares para a mentalidade autoritária que persiste na sociedade brasileira. As raízes, tal como apontado por Lilia Moritz Schwarcz [3], desse autoritarismo são múltiplas e denotam uma concepção frágil de cidadania, pois não se mostra capaz de incluir todos os integrantes da sociedade. Esse cenário é agravado em um momento de avanço da racionalidade neoliberal, pois direitos e garantias fundamentais, até então considerados como trunfos inegociáveis, passam a ser colonizados por uma lógica própria do mercado, conforme destacado por Rubens Casara:
"Na pós-democracia não existem obstáculos ao exercício do poder: os direitos e as garantias fundamentais também são vistos como mercadorias que alguns consumidores estão autorizados a usar. Da mesma maneira que judeus se converteram ao cristianismo para escapar da Inquisição (os 'cristãos-novos'), direitos, garantias e tudo aquilo que antes era considerado inegociável foram transformados em mercadorias ('mercadorias-novas') em nome do neoliberalismo (...)" [4].
Com o intuito de demonstrar que a resistência à efetivação das normas convencionais que versam sobre a audiência de custódia não é meramente retórica, é possível destacar dois exemplos.
De um primeiro lado, há de se apontar para a postura assumida pela Associação dos Delegados de Polícia (Adepol), que, por meio da ADI nº 5240, questionou normas oriundas do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo e da Corregedoria-Geral de Justiça daquele estado e que versavam sobre a apresentação de pessoas presas em flagrante. Por meio de uma míope leitura das normas convencionais, alegava-se inconstitucionalidade formal dos preceitos normativos paulistas. Por maioria, o Supremo Tribunal repudiou esse verdadeiro intento de sabotagem da efetividade das normas convencionais que eram então objeto de projeto-piloto bandeirante. Com a prolação da MC na ADPF nº 347, frustrada restou toda recalcitrância em realizar a audiência de custódia para os presos em flagrante.
O segundo caso é mais recente é se relaciona com a tentativa de implementação da audiência de custódia por meio de videoconferência. Sobre esse aspecto, é de suma relevância destacar que o veto presidencial ao artigo 3º-B, Código de Processo Penal (CPP), foi derrubado pelo Congresso Nacional. Todavia, por meio de uma pauta exclusivamente corporativista, a Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) provocou o STF por meio de controle abstrato de constitucionalidade, ADI 6841, que visa a restabelecer a possibilidade do contato entre magistrado e apresentado por meio de uma tela de computador. Ora, se um dos objetivos da audiência de custódia é a prevenção e a repressão à tortura, a utilização da tecnologia enfraquece essa função. Nesse momento, é oportuno lançar mão do slogan utilizado na campanha contra a virtualização das audiências de custódia: tortura, a gente não vê pela TV!
A presente problematização não tem a ambição de esgotar a exposição de dificuldades que impedem a plena efetivação da audiência de custódia. Todavia, a partir do que veio a ser esboçado, é possível concluir que o malsinado binômio desconhecimento-preconceito, que é fomentado pela persistência de uma mentalidade autoritária na sociedade brasileira, impede que esse direito subjetivo de toda pessoa privada de liberdade possa ser fruído sem indevidos e incabíveis questionamentos. Em uma quadra histórica marcada pela desvalorização do conhecimento científico, o que se mostra fatal e alimenta uma estatística tétrica já naturalizada, é preciso expor as raízes desse problema de efetividade para, somente assim, poder superá-lo”.
[1] HOLANDA, Sérgio Buarque. Raízes do Brasil. 26. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
[2] CUNHA, José Ricardo & MIRANDA, Mariana Almeida Picanço. Poder Judiciário brasileiro e a proteção dos Direitos Humanos: aplicabilidade e incorporações das decisões da Corte Interamericana de Direitos Humanos. Versão digital disponível em: https://editora.fgv.br/produto/poder-judiciario-brasileiro-e-a-protecao-dos-direitos-humanos-aplicabilidade-e-incorporacoes-das-decisoes-da-corte-interamericana-de-direitos-humanos-2451
[3] SCHWARCZ, Lilia Moritz. Sobre o autoritarismo brasileiro. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.
[4] CASARA, Rubens. Estado pós-democrático: neo-obscurantismo e gestão dos indesejáveis. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2017. p. 41.
Eduardo Januário Newton é defensor público do Estado do Rio de Janeiro, mestre em Direito pela Universidade Estácio de Sá e foi defensor público do estado de São Paulo.
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