Audiência de custódia e a expressão “sem demora”

10/02/2016

Por Magnum Roberto Cardoso - 10/02/2016

A audiência de custódia está prevista no art. 9.3 do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (Decreto nº 592/1992) e art. 7.5 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Decreto nº 678/1992), e ainda que esquecida e negligenciada por muitos anos, finalmente vem ganhando seu espaço graças a um esforço incansável de parte da doutrina.

Em que pese sua origem estar vinculada a uma norma que vigora desde 1992, nossa cultura punitivista e autoritária não permitiu que essa medida se tornasse uma realidade.

Ocorre que alguns tribunais entenderam por bem regulamentar a aplicação dessa medida. Do mesmo modo, o CNJ editou as Resoluções nº 213 e 214 dispondo sobre a audiência de custódia.

De acordo com a Resolução, a apresentação do preso deve se dar, em regra, no prazo de 24 horas. A Convenção Americana sobre Direitos Humanos e o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos utilizam a expressão “sem demora”. Já a Convenção Europeia dos Direitos do Homem faz previsão da expressão “imediatamente”.

É bem verdade que nem o PIDCP, nem a CADH, nem a CEDH fizeram expressa previsão de um prazo que se ajusta a expressão “sem demora” ou “imediatamente”. Semanticamente, temos que a expressão sem demora pode significar imediatamente, depressa, ato contínuo. Porém, não há como se precisar um lapso temporal.

Alerta Nicolitt que “a expressão “sem demora” é mais um dos inúmeros conceitos vagos indeterminados que transitam no ordenamento pátrio e internacional. A vagueza e indeterminação não podem significar motivo para se desrespeitar a garantia fundamental”[1].

Assim,  a doutrina e a jurisprudência exercem um papel de fundamental importância na tentativa de adequar o processo penal brasileiro aos Tratados Internacionais de Direitos Humanos debatendo sobre o lapso temporal que pode perdurar sem que considere uma demora na apresentação do preso à autoridade judicial.

De acordo com Andrey Borges de Mendonça, o Tribunal Europeu de Direitos Humanos possui jurisprudência casuística sobre o tema e como ensina Miguel Ángel Encimar del Pozo é possível estabelecer, analisando a jurisprudência daquela Corte, alguns critérios com pretensão de generalidade.[2]

O autor espanhol afirma que a Corte geralmente entende violada a Convenção quando o prazo da detenção excede o previsto legalmente pelo direito interno[3]. Como exemplo, podemos citar o caso de Portugal, de acordo com o artigo 141 e 254 do Código de Processo Penal Português, bem como o art. 28 da Constituição da Republica Portuguesa, o prazo máximo para apresentação do preso à autoridade judicial é de 48 horas.

Dessa forma, caso houvesse um excesso nesse prazo (por exemplo: 3 dias) a Corte entende que a expressão “imediatamente” prevista no art. 5.3 da Convenção Europeia de Direitos do Homem restaria violada tornando a prisão ilegal.

O segundo critério enfatizado pelo referido autor é que o Tribunal costuma julgar com certa severidade a detenção sem apresentação perante a autoridade judicial quando se prolonga por período superior a quatro dias[4]. É bem verdade, que em situações excepcionais a própria Corte vem flexibilizando essa regra[5]. Nesse sentido ensina Andrey Borges de Mendonça citando Stefan Trechsel, que desde o caso Brogan, de 1988, o Tribunal Europeu tem afirmado que este prazo não pode ultrapassar, como regra geral, quatro dias, mas pode ser excepcionalmente afastado, em razão de circunstâncias concretas.[6]

Um terceiro critério identificado por Miguel Ángel, é que o Tribunal não costuma aceitar razões de ampliação ou de prolongação da detenção pela ocorrência de circunstâncias como a luta contra o terrorismo[7] ou o fato de que as investigações policiais ainda não terminaram.

No âmbito regional americano, a Corte Interamericana possui diversos precedentes identificando prazos que violam a proporcionalidade do lapso temporal contida na expressão “sem demora”. A referida Corte já se pronunciou no sentido de que o encaminhamento do preso a autoridade judicial após quase 5 dias depois de sua detenção caracteriza excesso violador da CADH.[8]

Em outra oportunidade, a Corte IDH entendeu que a apresentação do preso à autoridade judicial no dia seguinte de sua detenção não é suficiente para se arguir eventual violação ao art. 7.5 da CADH[9].

No âmbito global, o Comitê de Direitos Humanos da ONU já se manifestou que “um prazo de 48 horas é normalmente suficiente para trasladar a pessoa e preparar para a audiência judicial; todo prazo superior a 48 horas deverá obedecer a circunstâncias excepcionais e estar justificado por elas”, completando, ainda, que “no caso de menores deverá aplicar-se um prazo especialmente restrito, por exemplo de 24 horas”.[10]

Assim, temos alguns parâmetros que podem nos auxiliar para a construção de um prazo proporcional que conjugue o entendimento das Cortes Internacionais sobre Direitos Humanos com nosso ordenamento jurídico.

O artigo 306, p. único do Código de Processo Penal prevê que a autoridade policial deverá encaminhar apenas o auto de prisão em flagrante delito em até 24 horas após a realização da prisão, silenciando a respeito do encaminhamento do preso. Para Caio Paiva parece razoável adotar o mesmo lapso temporal para a apresentação do preso à autoridade judicial[11].

Para o referido autor, como a Corte IDH já entendeu no caso López Álvarez vs Honduras, que o encaminhamento do preso a presença da autoridade judicial no dia seguinte ao de sua detenção não viola o art. 7.5 da CADH, teríamos, assim, um prazo que poderia ser aplicado na nossa realidade. Da mesma forma, também caminhou a Resolução n 213 do CNJ que fixou o prazo de 24 horas para ocorrer o encaminhamento do preso.

Ainda que o nosso Código de Processo Penal, o PIDCP e a CADH silencie a respeito de um prazo máximo que se ajuste a expressão “sem demora”, a solução dada pela doutrina amparada nas decisões da Corte Interamericana também nos parece razoável respeitando o direito fundamental do detido.

Porém, assim como a própria Corte Europeia de Direitos do Homem já decidiu que a depender do caso, o prazo máximo pode ser flexibilizado em alguns casos especiais, entendemos que essa relativização também possa ocorrer em nosso país, no entanto, como nossa cultura (e legislação) possui um viés autoritário, toda e qualquer relativização deve estar prevista em lei e com necessária justificação empírica a fim impedir que a exceção se torne regra.

Nesse sentido, nas situações excepcionais previstas no art. 1º. § 4º da Resolução nº 213, também deveria o CNJ ter fixado um prazo máximo para as referidas situações excepcionais.

Pensamos que, adotar o prazo máximo recomendado pelo Comitê de Direitos Humanos da ONU, qual seja, o de 48 horas, é suficiente para proteção dos direitos do detido, sem comprometer a persecução penal, uma vez que vários países adotam esse mesmo prazo[12].

Dessa forma, como regra geral, deve se encaminhar o preso a presença da autoridade judicial no mesmo prazo do encaminhamento do auto de prisão, ou seja, 24 horas. Caso, a autoridade policial não encaminhe o preso nesse prazo, a prisão deverá automaticamente ser relaxada, pois ilegal.

Contudo, em circunstâncias especiais dotadas de caráter excepcional, como as estabelecidas no art. 1º, § 4º da Resolução nº 213 do CNJ, este prazo pode se prolongar. Esse prolongamento deve ser justificado pela autoridade policial que ao encaminhar o preso deverá também remeter as razões do prolongamento do encaminhamento, sendo que tais razões em caso de não aceitação pela autoridade judiciária deve acarretar o relaxamento da prisão.

Com exceção do caso em que o preso esteja acometido de grave enfermidade, a Resolução deveria ter previsto um prazo máximo para que o detido seja encaminhado a autoridade judiciária, sob pena de nulidade da prisão e, por isso pensamos que a adoção do prazo de 48 horas (24 horas prorrogáveis por mais 24 horas) é razoável e condizente com a realidade de diversos países, sendo perfeitamente aplicável em nossa própria realidade.

Devemos lembrar que não é raro termos conhecimento de pessoas que ficaram presas preventivamente sem direito a uma audiência por meses ou até anos e, por isso, concluímos que a adoção de um prazo máximo de 48 horas para que a autoridade policial, em situações excepcionais, encaminhe o preso a presença de uma autoridade judiciaria seja um importante instrumento para se combater eventuais excessos eventualmente praticados por autoridades ligadas a persecução criminal, consolidando de maneira mais eficaz o direito fundamental do preso de levar a questão de sua prisão ao conhecimento da autoridade judiciária que legalmente tenha competência para exercer a função de controle da detenção.


Notas e Referências:

[1] NICOLITT, André Luiz. Processo Penal Cautelar – Prisão e demais medidas cautelares. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais. 2ª ed. rev., atual. E ampl. 2015. p – 85.

[2] MENDONÇA, Andrey Borges de. Prisão Preventiva na Lei 12.403/2011 – análise de acordo com modelos estrangeiros e com a Convenção Americana de Direitos Humanos. Salvador: Ed. Juspodivm, 2016 – p 166.

[3] ENCINAR DEL POZO, Miguel Ángel. La doctrina del Tribuanl Europeo de Derechos Humanos sobre el derecho a la liberdade. In Derecho Penal Europeo Jurisprudencia del TEDH. Sistema Penales Europeos. Madrid. Consejo General del Poder Judicial, Estudios de Derecho Judicial, n155-2009, 2010. p. 184.

[4] ENCINAR DEL POZO, Miguel Ángel. La doctrina del Tribuanl Europeo de Derechos Humanos sobre el derecho a la liberdade. In Derecho Penal Europeo Jurisprudencia del TEDH. Sistema Penales Europeos. Madrid. Consejo General del Poder Judicial, Estudios de Derecho Judicial, n155-2009, 2010. p. 184/185

[5] CoEDH, Rigoupolos v. Espanha, sentença de 12 de janeiro de 1999.

[6] TRECHSEL, Stefan. Human Rights in Criminal Proceedings. New York: Oxford, 2005 apud MENDONÇA, Andrey Borges de. Prisão Preventiva na Lei 12.403/2011 – análise de acordo com modelos estrangeiros e com a Convenção Americana de Direitos Humanos. Salvador: Ed. Juspodivm, 2016 – p 166.

[7] COeDH, Brogan e outros v. Reino Unido, sentença de 29 de novembro de 1988.

[8] Corte IDH. Cabrera Garcia y Montiel Flores vs. México. Excépcion Preiminar, Fondo, Reparaciones y Costas. 26 novembro de 2010. § 102

[9] Corte IDH. López Álvarez vs. Honduras. Excépcion Preiminar, Fondo, Reparaciones y Costas. 01 de fevereiro de 2006. De acordo com o § 91 da decisão, a detenção se deu no dia 28 de abril de 1997, sendo que em 29 de abril de 1997, Alfredo López Álvarez prestou declaração preliminar a uma autoridade judiciária impedindo, portanto, qualquer violação à Convenção.

[10] Comitê de Direitos Humanos. Observação Geral nº. 35, aprovada em 16/12/2014 apud PAIVA, Caio. Audiência de custódia e o processo penal brasileiro. Florianópolis: Empório do Direito, 2015. P – 46.

[11] PAIVA, Caio. Audiência de custódia e o processo penal brasileiro. Florianópolis: Empório do Direito, 2015. p – 46. Temos também no mesmo sentido as lições de: WEIS, Carlos. Estudo sobre a obrigatoriedade de apresentação imediata da pessoa presa ao juiz: comparativo entre as previsões dos tratados de direitos humanos e no projeto de código de processo penal. Disponível em: http://www.defensoria.sp.gov.br/dpesp/Repositorio/31/Documentos/Estudo%20sobre%20a%20obrigatoriedade%20de%20apresenta%C3%A7%C3%A3o%20imediata%20do%20preso%20ao%20juiz%20(1).pdf Acesso em: 01/02/2016.

[12] É o caso de Portugal e Suécia que também adotam as 48 horas como prazo máximo para o encaminhamento do preso a presença da autoridade judiciária. A Alemanha adota o prazo máximo de 47 horas e 59 minutos. A África do Sul também adota o prazo de 48 horas, sendo que se o término do prazo ocorrer em dia em que não haja expediente forense, prorroga-se até o próximo dia útil.

ENCINAR DEL POZO, Miguel Ángel. La doctrina del Tribuanl Europeo de Derechos Humanos sobre el derecho a la liberdade. In Derecho Penal Europeo Jurisprudencia del TEDH. Sistema Penales Europeos. Madrid. Consejo General del Poder Judicial, Estudios de Derecho Judicial, n155-2009, 2010

NICOLITT, André Luiz. Processo Penal Cautelar – Prisão e demais medidas cautelares. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais. 2ª ed. rev., atual. E ampl. 2015.

MENDONÇA, Andrey Borges de. Prisão Preventiva na Lei 12.403/2011 – análise de acordo com modelos estrangeiros e com a Convenção Americana de Direitos Humanos. Salvador: Ed. Juspodivm, 2016 – p 166.

PAIVA, Caio. Audiência de custódia e o processo penal brasileiro. Florianópolis: Empório do Direito, 2015.

WEIS, Carlos. Estudo sobre a obrigatoriedade de apresentação imediata da pessoa presa ao juiz: comparativo entre as previsões dos tratados de direitos humanos e no projeto de código de processo penal. Disponível em: http://www.defensoria.sp.gov.br/dpesp/Repositorio/31/Documentos/Estudo%20sobre%20a%20obrigatoriedade%20de%20apresenta%C3%A7%C3%A3o%20imediata%20do%20preso%20ao%20juiz%20(1).pdf


Magnum Roberto Cardoso. . Magnum Roberto Cardoso é Advogado criminalista. Aprovado no cadastro de reserva para o concurso de Delegado de Polícia Civil do Estado do Ceará. . .


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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


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