A Lei 14.307/2022 trouxe várias modificações na regulação da saúde suplementar brasileira.
Alguns dispositivos, contudo, geraram interpretações equivocadas sobre a sua aplicação.
Um exemplo importante é o artigo 10 parágrafo 10 da Lei 9.656/98 que trata da atualização do rol da ANS (Agência Nacional de Saúde Suplementar) em razão da incorporação de novas tecnologias no SUS – Sistema Único da Saúde. O texto prevê o seguinte:
Artigo 10
[...]
§ 10. As tecnologias avaliadas e recomendadas positivamente pela Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema Único de Saúde (Conitec), instituída pela Lei nº 12.401, de 28 de abril de 2011, cuja decisão de incorporação ao SUS já tenha sido publicada, serão incluídas no Rol de Procedimentos e Eventos em Saúde Suplementar no prazo de até 60 (sessenta) dias. [grifado]
A pergunta sobre a aplicação do aludido texto é: com a incorporação no rol do SUS a tecnologia em saúde deve ser automaticamente incorporada no rol da ANS?
A resposta é não! Os fundamentos são os seguintes:
Primeiro: o artigo 10 parágrafo 10 da Lei 9.656/98 não pode ser interpretado literalmente (a interpretação literal não é, em regra, a mais adequada técnica de interpretação);
Segundo: o artigo 10-D, §3º inciso III da Lei 9.656/98[1] exige que a ANS considere o impacto atuarial na análise de novas incorporações no seu rol, requisito este não previsto na legislação que regula a atualização do rol do SUS (no âmbito da saúde pública apenas são exigidos a presença de evidências científicas e a avaliação econômica, conforme artigo 19-Q da Lei 8080/90);
Terceiro: o artigo 10 parágrafo 10 da Lei 9.656/98 deve ser interpretado sistematicamente e em conjunto com o sistema de saúde suplementar;
Quarto: a incorporação automática é incompatível com o modelo securitário que caracteriza a saúde suplementar (contexto da Lei 9.656/98);
Quinto: o Direito, na visão de Eros Roberto Grau[2], não pode ser interpretado em tiras, ou seja, aos pedaços. Daí porque os dispositivos da Lei 9.656/98 precisam ser analisados em conjunto, com base no todo e não apenas em partes isoladas.
Sexto: o texto (artigo 10 parágrafo 10 da Lei 9.656/98) é a mera enunciação da posição do legislador, mas não se confunde com a norma, que é produto e resultado da (melhor) interpretação (Friedrich Muller). Assim, a interpretação não é um ato meramente declaratório, mas constitutivo[3]. Por isso que interpretar significa definir o conteúdo e o alcance do dispositivo legal.
Sétimo: a aplicação do Código de Defesa do Consumidor – CDC não beneficia automaticamente o consumidor em todas as interpretações.
Portanto, é juridicamente possível a ANS não incorporar no seu rol de procedimentos e serviços novas tecnologias em saúde incluídas no rol do SUS quando ficar demonstrada a incapacidade atuarial das operadoras de plano de saúde ou de autogestão.
Notas e referências
[1]Art. 10-D. Fica instituída a Comissão de Atualização do Rol de Procedimentos e Eventos em Saúde Suplementar à qual compete assessorar a ANS nas atribuições de que trata o § 4º do art. 10 desta Lei. (Incluído pela Lei nº 14.307, de 2022)
§ 3º A Comissão de Atualização do Rol de Procedimentos e Eventos em Saúde Suplementar deverá apresentar relatório que considerará: (Incluído pela Lei nº 14.307, de 2022)
I - as melhores evidências científicas disponíveis e possíveis sobre a eficácia, a acurácia, a efetividade, a eficiência, a usabilidade e a segurança do medicamento, do produto ou do procedimento analisado, reconhecidas pelo órgão competente para o registro ou para a autorização de uso; (Incluído pela Lei nº 14.307, de 2022)
II - a avaliação econômica comparativa dos benefícios e dos custos em relação às coberturas já previstas no rol de procedimentos e eventos em saúde suplementar, quando couber; e (Incluído pela Lei nº 14.307, de 2022)
III - a análise de impacto financeiro da ampliação da cobertura no âmbito da saúde suplementar. (Incluído pela Lei nº 14.307, de 2022) [grifado]
[2] GRAU, Eros Roberto. Ensaio e Discurso sobre a Interpretação/Aplicação do Direito. 5 ed. São Paulo: Editora Malheiros, 2006. p. 44.
[3] GRAU, Eros Roberto. A Ordem Econômica na Constituição de 1988. 17.ed.rev.atual. São Paulo: Malheiros, 2015, p. 161.
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