ATUAÇÃO ESTRATÉGICA DEFENSORIAL NA PANDEMIA, UM REMÉDIO NECESSÁRIO – PARTE II

13/08/2020

Coluna Defensoria e Sistema de Justiça / Coordenador Jorge Bheron

Como continuidade ao artigo anterior, em que foram destacados o que é atuação estratégica e as formas de atuação extraprocessual, prudente agora, analisar o agir estratégico processual, que fizeram a diferença neste contexto de pandemia, e a necessidade de manter a atuação estratégica defensorial como o “novo normal”.

 

3 – DA ATUAÇÃO ESTRATÉGICA PROCESSUAL:

Os métodos de atuação estratégica extraprocessual ganharam especial sobrelevo neste período de pandemia, mormente, diante da circunstância de que os processos judiciais demoram em demasia. Contudo, em dadas situações, diante de certos problemas, imprescindível a intervenção do Poder Judiciário de forma a conferir maior coercibilidade, seja mediante a aplicação de multa ou outro instrumento que garanta a efetividade do direito.

Amorim e Morais (2019, p. 102) sobre a atuação estratégica processual ressaltam:

A atuação estratégica não se resume ao âmbito extrajudicial. Por vezes, necessária a intervenção do Estado-Juiz, para que confira certa efetividade à medida adotada. Medidas como busca e apreensão, imposição de multas, quebra de sigilo só podem ser aplicadas pelo Judiciário, sendo imprescindível, portanto, a atuação desse.

A tutela coletiva é uma forma clara de litigância estratégica, em que os resultados obtidos não se resumem a inter partes, e sim produzem efeitos erga omnes, e as sentenças ou acórdãos são mais que simples atos processuais, consistindo em meios de transformação social para aquela coletividade.

Durante a pandemia, inúmeras foram as ações civis públicas propostas, bem como, habeas corpus coletivo, surtindo reflexos para todos os rincões deste imenso Brasil. Repise-se que este rol é exemplificativo, denotando-se apenas algumas das diversas ações defensoriais nesta quarentena.

Após ação civil pública ajuizada pela Defensoria Pública de São Paulo, a Justiça concedeu liminar que determina a operadoras de planos de saúde a liberação imediata de cobertura para o atendimento e tratamento prescrito por médico, em favor de todos os seus segurados que sejam suspeitos ou portadores do vírus, independentemente do cumprimento do prazo de carência de 180 dias. A decisão garante internação sem limite de tempo aos segurados cujo contrato de plano de saúde abranja cobertura hospitalar.

Por sua vez, interessante a estratégia adotada pela Defensoria Pública do Estado da Paraíba, que mediante Ação Civil Pública requereu que os laboratórios de análises não restrinjam a realização do teste para a COVID-19, estendendo o atendimento para todos os usuários de planos de saúde conveniados ao laboratório. Na ação, os defensores públicos ressaltaram a Resolução Normativa 453, da Agência Nacional de Saúde (ANS), que determinou a inclusão do exame de detecção do novo coronavírus SARS-CoV-2 (CORONAVÍRUS COVID-19) – pesquisa por RT – PCR, no rol de procedimentos obrigatórios para beneficiários de planos de saúde.

Também mediante Ação Civil Pública, a Defensoria Pública do Estado do Ceará, conseguiu mediante antecipação de tutela desconto de 30% nas mensalidades das escolas particulares que estão vinculadas ao Sindicato dos Estabelecimentos Particulares de Ensino do Ceará.

Mais uma vez, merecem destaque as atuações conjuntas. O Ministério Público Federal, a Defensoria Pública do Estado do Ceará e o Ministério Público do Estado do Ceará ingressaram com ação civil pública na Justiça Federal para obrigar a União a disponibilizar o saque do auxílio emergencial através de outros bancos, de forma a descongestionar o saque do referido auxílio que seria feito apenas na Caixa Econômica Federal.

Para garantir a ampliação e o aparelhamento do sistema de saúde da região Xingu para o enfrentamento da pandemia da COVID-19, a Defensoria Pública da União, em conjunto com o Ministério Público Federal, o Ministério Público do Estado do Pará e a Defensoria Pública do Estado do Pará, ajuizou ação civil pública com pedido de antecipação de tutela perante a União, o Estado do Pará e a Norte Energia S.A., empresa responsável pela construção e operação da Usina Hidrelétrica de Belo Monte.

Ainda como forma de atuação estratégica processual, mister destacar a propositura de Habeas Corpus Coletivo.

A Defensoria Pública do Estado do Ceará impetrou Habeas Corpus Coletivo junto ao Superior Tribunal de Justiça pedindo a prisão domiciliar de pessoas presas em razão de débito alimentar, sendo a liminar concedida pelo Tribunal da Cidadania, e em seguida, após pedido da Defensoria Pública da União, estendido os efeitos do decisum para os devedores de alimentos de todo o país.

A Defensoria Pública de São Paulo obteve decisão favorável que garantiu prisão domiciliar para cerca de 150 detentos que estavam em ala destinada exclusivamente a idosos e doentes no Centro de Progressão Penitenciária de Tremembé. O pedido foi motivado não apenas por esses detentos estarem no grupo de risco, mas também pelo fato de que aquele estabelecimento prisional encontra-se em estado de calamidade.

Ainda mediante Habeas Corpus Coletivo a Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro, conseguiu a suspensão do cumprimento de mandados de busca e apreensão de adolescentes que estejam respondendo a processos ou que já tenham sido sentenciados. Na ação, a Defensoria Pública argumentou que não é razoável, em meio à pandemia do coronavírus, acentuar a superlotação do sistema socioeducativo e promover a aglomeração de pessoas nas unidades de internação. O pedido atende às orientações das autoridades sanitárias do país para evitar um caos no sistema de saúde, o que pode acontecer caso um número muito grande de pessoas desenvolva quadro grave da COVID-19 ao mesmo tempo e precise de internação hospitalar. 

Seja processual ou extraprocessual, as atuações estratégicas defensoriais se destacam, em uma ordem jurídica mais humana, mais solidária, buscando amenizar os efeitos desta nefasta pandemia.

 

4 – DA ATUAÇÃO ESTRATÉGICA COMO O “NOVO NORMAL”:

Será que voltaremos ao normal? Alguns já nominam o futuro próximo de “novo normal”. Nunca seremos mais os mesmos, nem como pessoas, nem como profissionais, tampouco como instituição. A atuação estratégica já fazia parte da realidade defensorial, em que todo(a) Defensor(a) Público(a) já deveria ter um olhar diferente, para além da pessoa que está sentada à sua frente, ou para além do problema apresentado.

Este olhar macro já deveria fazer parte da rotina defensorial. Seja mediante atuação extraprocessual ou processual, a solução deveria ser voltada a um bem comum, aplicando-se um direito mais humanizado.

A parte deixa de ser protagonista de um processo individualista, e sim, voltam-se os holofotes para uma justiça coletiva e social.

A vida voltará ao normal? Boaventura de Sousa Santos (2020, p. 31) traz profundas reflexões:

No entanto, o regresso à «normalidade» não será igualmente fácil para todos. Quando se reconstituirão os rendimentos anteriores? Estarão os empregos e os salários à espera e à disposição? Quando se recuperarão os atrasos na educação e nas carreiras? Desaparecerá o Estado de excepção que foi criado para responder à pandemia tão rapidamente quanto a pandemia? Nos casos em que se adoptaram medidas de protecção para defender a vida acima dos interesses da economia, o regresso à normalidade implicará deixar de dar prioridade à defesa da vida? Haverá vontade de pensar em alternativas quando a alternativa que se busca é a normalidade que se tinha antes da quarentena? Pensar-se-á que esta normalidade foi a que conduziu à pandemia e conduzirá a outras no futuro?

Ao contrário do que se possa pensar, o imediato pós-quarentena não será um período propício a discutir alternativas, a menos que a normalidade da vida a que as pessoas quiserem regressar não seja de todo possível.

Em um futuro próximo, já presente, apresentando-se como o “novo normal”, a atuação estratégica surge como um instrumento eficaz de resistência na busca pela promoção da Justiça social, que mais do que nunca, neste cenário de pandemia, as desigualdades ficam supervisíveis.   Trata-se de mecanismo catalisador da atuação defensorial, tendo em vista o papel da Defensoria Pública na dinâmica constitucional marcada pela necessidade de proteção dos grupos sociais excluídos do exercício de seus direitos (grupos vulneráveis), uma vez que possibilita a atuação do(a) Defensor(a) Público(a) com uma rede de parceiros, usando de instrumentos que vão além do processo judicial, além do que é encontrado nas leis e nos livros de doutrina jurídica.

Esta pandemia aflorou ainda mais o papel do(a) Defensor(a) Público(a) enquanto agente de transformação social, demandando uma atuação mais humana, com a missão não só de resolver conflitos, mas de promover a justiça social.

Espera-se, portanto, contribuir para uma reflexão a respeito do assunto, sugerindo a necessidade de uma maior atenção das Defensorias Públicas (em todo o Brasil) para o exercício da Atuação Estratégica, como o “novo normal defensorial”, e sempre que se depararem com conflitos estruturais, com casos paradigmáticos, pautem seu agir na busca por novas formas de mobilização a serem utilizadas para o desenvolvimento e promoção de uma Justiça Social, contribuindo para o bem comum.

 

Notas e Referências

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