Coluna Defensoria e Sistema de Justiça / Coordenador Jorge Bheron
Desde março de 2020 que o Brasil mudou. A COVID-19 é uma doença causada pelo coronavírus SARS-CoV-2, que apresenta um quadro clínico que varia de infecções assintomáticas a quadros respiratórios graves.
Esta nefasta pandemia passou a “conviver” em território brasileiro, trazendo não só mortes, mas também, lotações em hospitais, o isolamento das pessoas em seus lares, o fechamento do comércio e de instituições públicas, mas acima de tudo, obrigando uma necessária mudança comportamental, trazendo inclusive reflexos jurídicos.
Diante desta abrupta mudança comportamental, as instituições tiveram que mudar suas formas de atuações, sendo o trabalho remoto (via home office) uma dessas variáveis, mas acima de tudo, a atuação estratégica passou a ser não só uma das inúmeras formas de agir a que pode optar o(a) Defensor(a) Público(a), mas acima de tudo, um remédio necessário.
1 – O QUE É ATUAR ESTRATEGICAMENTE?
Comumente utiliza-se o termo litigância estratégica, mas por que agora escrever atuação e não mais litigância?
Preferível neste cenário pandêmico usar o termo atuação estratégica em contraposição a litigância, vez que o litígio que atualmente existe é da humanidade contra um vírus, em busca não só da cura, mas acima de tudo da sobrevivência, diante de todo o caos instalado, e quando se fala em caos não é só no sistema de saúde, mas em todas as áreas, economia, educação, assistencial, segurança, dentre outras.
O vírus não é democrático. Não estamos no mesmo barco.
“Fácil” sobreviver a pandemia isolado em sua casa, com comida, segurança, medicação, plano de saúde, um teto e uma cama para dormir. Um “luxo” que não alcança milhões de brasileiros. E a Defensoria Pública é conclamada a cada dia a buscar este “luxo” aos muitos que tudo lhes foi negado.
O cenário mudou, fazendo com que a Defensoria Pública convirja seu olhar a uma verdadeira vulnerabilidade circunstancial (vulnerabilidade pandêmica), onde preocupa-se desde a existência de leitos para os enfermos, abrigos para as pessoas em situação de rua, proliferação do vírus no cárcere, alimentos para os alunos da rede pública, excesso de violência doméstica para as mulheres, dentre outros dilemas que batem às portas Defensoriais.
Atuação estratégica é desenvolver mecanismos de ação que extrapolem a mera representação processual e individualização dos sujeitos envolvidos, visando uma completa modificação da situação-problema e das potenciais demandas decorrentes dela. É antever conflitos o que pode vir a existir, atuando de forma preventiva na modificação das estruturas sociais que geram os problemas.
Desta forma, atuar estrategicamente é lançar sobre o caso paradigmático um olhar macro, um pensamento voltado a uma solução mais ampla, e que favoreça toda a coletividade. É ter um olhar social, voltado ao bem-estar comum.
Nesta época de pandemia, tudo passou a ganhar uma maior proporção, diante de um vírus que, repise-se, não é nada democrático, vez que quem mais sobre são as pessoas em situação de vulnerabilidade, seja financeira, social ou circunstancial.
Boaventura de Sousa Santos (2020, p. 15) traz uma análise precisa sobre o caráter antidemocrático do vírus, que em que pese poder atingir a todos, traz reflexos diferentes nas diversas esferas da população, mormente em um país como o Brasil, onde as desigualdades sociais são latentes. Não estamos no mesmo barco. E afirma o sociólogo português:
Qualquer quarentena é sempre discriminatória, mais difícil para uns grupos sociais do que para outros e impossível para um vasto grupo de cuidadores, cuja missão é tornar possível a quarentena ao conjunto da população. Neste capítulo, porém, analiso outros grupos para os quais a quarentena é particularmente difícil. São os grupos que têm em comum padecerem de uma especial vulnerabilidade que precede a quarentena e se agrava com ela. [...] É a metáfora do sofrimento humano injusto causado pela exploração capitalista, pela discriminação racial e pela discriminação sexual.
Os impactos do vírus são maiores para aquelas pessoas que a vida insiste em castigar, e a pandemia só aflora os cenários de vulnerabilidade. Pessoas pobres, em situação de rua, encarcerados, profissionais precários, informais e autônomos, moradores de favelas, em que o uso máscaras, álcool em gel, água e sabão são artigos de primeira grandeza, e que não podem permanecer em seus lares esperando uma vacina, sem que sigam às ruas, na luta diuturna pela sobrevivência.
Nas palavras de Amorim e Morais (2019, p. 44):
A litigância estratégica, portanto, volta-se especialmente para proteção das populações vulneráveis, público-alvo da Defensoria Pública, uma vez que são as mais prejudicadas por conflitos de proporções estruturais. Os casos, sejam individuais ou coletivos, na litigância estratégica, são selecionados e utilizados como ferramentas de mudança da sociedade, por meio dos mais variados instrumentos, em diferentes níveis de atuação, como o social, o político e o legal.
A atuação estratégica apresenta-se como remédio necessário, em que a Defensoria Pública pauta seu agir a partir de um direito mais humanizado, um direito livre de amarras processuais, de formalismos que só tornam as soluções mais difíceis e demoradas; em verdade, preocupa-se com o diálogo, com a educação em direitos, com ações solidaristas e dotadas de empatia. A atuação estratégica defensorial busca ser um vetor de valiosa ajuda na luta pela sobrevivência.
O agir estratégico processual também ganha contornos diversos. Demandas coletivas visando soluções eficazes e com efeitos erga omnes, que favoreçam a coletividade, tornam-se atuações obrigatórias, e não optativas. A solução deve ser benéfica a todos, e não a um só. As demandas individuais são igualmente valiosas, mas atuar estrategicamente exige do(a) Defensor(a) Público(a) um olhar para além do(a) assistido(a) que o(a) procura, e sim para toda uma coletividade que pode ser beneficiada com uma solução macro, social, portanto, mais humana.
2 – DA ATUAÇÃO ESTRATÉGICA EXTRAPROCESSUAL:
Diversos são os exemplos de atuações estratégicas extraprocessuais, e mais do que nunca, diante de um Judiciário hipertrofiado de processos, e da urgência (o para ontem) que envolvem os problemas gerados nesta pandemia, fazem com que a atuação extraprocessual ganhe especial importância.
Desde o início do período de quarentena “choveram” recomendações, pedidos de informações, diálogos entre instituições que envolvem inclusive os Poderes Executivo e Legislativo. A educação em direito também têm sido uma constante, de modo a esclarecer e fortalecer pessoas, grupos e órgãos sociais sobre seus direitos e deveres.
Prudente então colecionar algumas das atuações estratégicas defensoriais neste período pandêmico, denotando-se que todas são importantes, exemplificando apenas algumas.
A Defensoria Pública do Estado do Ceará expediu diversas recomendações, podendo ser destacadas: i) Recomendação às instituições de ensino particular de todo o Estado do Ceará para que reduzam os valores das mensalidades de forma proporcional à diminuição dos custos, fazendo uma análise do perfil socioeconômico do aluno, de modo a privilegiar negociação com os que estão com menor capacidade de pagamento em função de dificuldade econômica ou do desemprego gerado neste período de pandemia; ii) Recomendação aos planos de saúde e operadoras privadas com atuação no Estado do Ceará para que, dentre outras medidas, não suspendam e não rescindam contratos de indivíduos pertencentes aos grupos de risco do COVID-19, enquanto durar o período de pandemia; iii) Recomendação em favor das pessoas em situação de rua, requerendo o aumento na oferta de alimentação, a distribuição de kits de higiene (com máscaras, sabonete e álcool em gel), a ampliação de locais para higienização desta população, e o aumento – em caráter emergencial – do número de vagas para aluguel social e espaços de acolhimento.
Neste momento de dificuldade, a união de forças é essencial. Por isso, interessante destacar a possibilidade de atuação conjunta de órgãos, tais como a atuação da Defensoria Pública da União e da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro, que encaminharam recomendação conjunta à Caixa Econômica Federal para cobrar uma versão acessível às pessoas com deficiência do aplicativo destinado ao cadastramento para o auxílio emergencial.
De seu turno, o governo do Estado de Goiás, por meio do Decreto nº 9.643/2020, determinou a manutenção do fornecimento de alimentação aos alunos da rede pública de educação. A determinação acompanha recomendação expedida pela Defensoria Pública do Estado de Goiás à Secretaria de Estado da Educação a distribuição de kits de alimentos, exclusivamente, às famílias das crianças e adolescentes matriculados nas escolas da rede pública de ensino, em razão da suspensão das aulas, durante o período isolamento social, em prevenção ao contágio do coronavírus.
Sobre a educação em direitos, aplausos aos guias lançados pela Defensoria Pública de São Paulo: i) Sobre os direitos das mulheres no contexto da pandemia do coronavírus, trazendo informações sobre violência doméstica, violência sexual e violência obstétrica, além de e orientações sobre como proceder nestes casos; ii) Prestando informações e orientações sobre o Auxílio Emergencial do Governo Federal em decorrência da pandemia do coronavírus.
Denotando ainda a necessidade de constante diálogo com as esferas de Poder – Executivo e Legislativo, a Defensoria Pública do Estado do Ceará protocolou proposta de lei na Assembleia Legislativa do Estado do Ceará, que visa conter o aumento abusivo de preços e o corte de serviços essenciais por inadimplência – como energia e água – durante o período de contingenciamento da população, ocasionado pela disseminação do coronavírus.
Incontáveis ainda as atuações de solidariedade, e gestos de empatia protagonizados pelas Defensorias Públicas neste período de pandemia, um simples gesto como a instalação de uma pia, ou a arrecadação de suprimentos, fazem grande diferença na vida de cada pessoa e de toda a coletividade. A Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro instalou uma pia comunitária em frente à sua sede, para a higiene das mãos de quem vive nas ruas e por isso encontra-se em situação de extrema vulnerabilidade. Gesto tão simples, e tão grande.
A Defensoria Pública da Paraíba criou um Selo de Responsabilidade Social para motivar empresas a contribuírem com a proteção das pessoas em situação de vulnerabilidade e amenizar os danos decorrentes da pobreza e da desigualdade social. O Selo Defensoria Pública de Responsabilidade Social tem a parceria do Programa Mesa Brasil, do Serviço Social do Comércio - SESC, e a primeira certificação fora conferida ao Supermercado Hiper Queiroz, da cidade de Patos/PB, que doou 500 kits de limpeza para distribuição entre famílias carentes.
Há muito que a Defensoria Pública deixou para trás a atuação processual e individual. Voz de milhões, voz de muitos que o Estado insiste em calar e esconder. A atuação estratégica neste momento é essencial, ganhando sobrelevo.
Não se pode olvidar de mencionar também casos de atuação estratégica no âmbito processual, na segunda parte deste artigo.
Notas e Referências
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