Attica 1971 e a crise do nosso tempo    

01/06/2020

 Coluna Empório Descolonial / Coordenador Marcio Berclaz

Em 09 de setembro de 1971, os Estados Unidos da América param para assistir à tomada da penitenciária de Attica. Em um contexto de escalada das demandas por reforma do sistema penitenciário, 1300 presos mantiveram como reféns 39 agentes e funcionários do estabelecimento penal. Com a intenção de uma negociação pacífica, entre as demandas estavam as reivindicações de um melhor sistema e saúde, um salário digno pelo trabalho realizado e mais transparência nos critérios de livramento condicional. É um momento decisivo da história recente norte-americana e uma chave importante para entender os protestos dos últimos dias.

1971 pode ser considerado o ano de pico das lutas e do utopismo negro gestado nos EUA desde o final da Segunda Guerra Mundial. Mais do que o fim das leis de segregação, tais reivindicações exigiam uma refundação da sociedade norte-americana por meio da reconstrução radical dos princípios da liberdade e igualdade. As linhas dos movimentos negros não estavam somente nas periferias e centros urbanos, mas também dentro do sistema carcerário. Attica é a expressão máxima dessa coalizão que ali precipita em uma rebelião dos detentos: a exigência de reforma completa do sistema de justiça

1971 também é o momento da virada penal e do fim do sonho americano. Attica, madrugada chuvosa e fria do 13 de setembro. Helicóptero se aproxima. Não é o governador para negociar. Bombas de gás lacrimogênio e disparos. Corpos na lama. 189 feridos: 39 mortos, sendo 29 presos e 10 guardas. À insurgência no presídio, os EUA responderam com o extermínio dos presos. É o começo da reação. Para além das prisões, às demandas de refundação social articuladas pela comunidade negra, apostou-se em uma integração das reivindicações de liberdade e igualdade por meio do consumo. E o mais essencial: o sistema penal, as polícias e o encarceramento em massa se tornaram válvulas essenciais de calibragem da cidadania no contexto da ''democracia'' norte-americana.

Se as taxas de encarceramento estavam estáveis e até em declínio até os anos 70, de Attica em diante elas começam a explodir. Ademais, uma série de táticas legislativas e judicias passam a ser tomadas em todas as esferas para minar os direitos dos acusados e, consequentemente, transformar os bairros negros em verdadeiras ocupações coloniais modernas. Ao mesmo tempo, há um desmonte do estado social e de direitos fundamentais sob a égide da retórica neoliberal. A narrativa da guerra às drogas encerra o arco, legitimando a função policial do aparelho estatal no lugar da promoção da cidadania.

O que estamos assistindo, portanto, não são apenas protestos contra os abusos policiais. É uma rebelião contra um projeto de sociedade falido. São as contradições mais evidentes do sistema capitalista norte-americano. Um grito contra as promessas irrealizadas de liberdade e igualdade. É a degeneração escarnada do Império. A esses elementos estruturais, somam-se os impasses e desilusões de 2020. O assassinato de George Floyd se encaixa na série de execuções de pessoas negras pela polícia norte-americana na última década. Varias dessas mortes foram filmadas ou extremamente publicizadas, trazendo para o centro da arena política a continuidade do supremacismo branco no país. Tais assassinatos e a ineficiência das lideranças políticas para responder consequentemente à repressão penal levaram paulatinamente à retomada do radicalismo pelas comunidades e intelectuais negros.

À violência do racismo, soma-se a insatisfação com a cooptação do sistema político pelas elites financeiras, que, neste ano, expressou-se com o golpe nas primárias do Partido Democrata, arquitetado, entre outros, por Barack Obama em conluio com a plutocracia empresarial. Outra vez, fecharam-se as portas a uma candidatura alternativa, a de Bernie Sanders, que mais do que um nome, articulava o desejo de mudança e de reversão dos padrões de desempoderamento econômico, precarização da vida e desigualdade social e de uma política externa baseada na guerra. Entre os diversos grupos que saíram às ruas nos últimos dias, estão as redes de pessoas e coletivos que orbitavam a campanha de Sanders – o seu programa político também.

 Por fim, a crise do Covid-19 escancara a face mais brutal do projeto de sociedade norte-americana. As mais de 105 mil mortes, o desemprego e a ineficiência do Estado – liderado por um bufão autoritário – de responder à situação de emergência deixam a olhos vistos os limites da cidadania no país. Uma crise que já matou mais estadunidenses do que as Guerras da Coréia, do Vietnã e do Iraque (2003 a 2011) somadas e que explicita o pesadelo social: negros, latinos, pobres e idosos são os maiores pagadores da fatura imposta pelo vírus.

Enquanto as cidades fervem nos Estados Unidos, aqui, no sul global, há a escalada das tensões políticas e do impacto do Covid-19. E 1971 não só ilumina uma parte desse mapa. Se os norte-americanos tiveram Attica, nós tivemos Carandiru, as Chacinas de Vigário Geral e da Candelária e muito mais. Desde os anos 90, copiamos a aposta societal posta em prática nos EUA: suposta cidadania de consumidor calibrada por repressão penal e extermínio nas periferias negras. No último domingo, brasileiros foram às ruas. No Rio de Janeiro, coletivos de favela organizaram o ato Vidas Negras Importam, tendo como pauta central o fim das operações policias violentas nas comunidades cariocas, as quais não cessaram nem em tempos de pedidos de isolamento social. Face do extermínio em curso no país, que, no contexto atual, expressa-se na política do presidente: morrer disso ou daquilo. Morrer de vírus, de fome ou de fuzilamento policial. A repressão dos agentes estatais no final do ato, diante de uma manifestação pacífica, dimensiona as cartografias do racismo, das quais Attica é um evento singular: fora do consumo, a cidadania se faz sob bombas, gases e tiros.

 

Notas e Referências

Artigo sobre Attica e a virada penal: http://bradonegro.com/content/arquivo/12122018_105801.pdf

 

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