Atribuição da polícia militar para investigar crimes “comuns”

07/02/2016

Por Jeffrey Chiquini e Rodolpho Mattos - 07/02/2016

A quem pertence a atribuição para investigar crimes militares impróprios?

O presente texto tem como objetivo estudar e analisar a quem pertence a atribuição para investigar a prática de crime doloso contra a vida, quando praticado por policial militar, em serviço ou em razão dele, contra civil. Crime este que defendemos ser militar impróprio e não comum, como acreditam alguns. Demonstraremos que esta discussão, embora desnecessária, existe e está regada de vaidade.

Diferentemente do que muitos acreditam, este crime é, em verdade, um crime militar e como tal, quando praticado nestas circunstâncias, será investigado pela própria instituição castrense, isto é, pela polícia militar, por ser este, inclusive, o desejo constitucional.

Trataremos aqui apenas da atribuição para investigá-lo, ou seja, nossa preocupação é única e exclusivamente com a fase pré-processual, que fique bem claro.

Defendemos que à atribuição para investigar crimes praticados por policiais militares, em serviço ou em razão dele, pertence à polícia militar, por meio do inquérito policial militar. Como todo inquérito, este também é um conjunto de atividades realizadas por órgão oficial do Estado, com caráter prévio e natureza preparatória em relação ao processo penal, com o fim de averiguar eventual autoria delitiva e as circunstâncias do fato aparentemente delitivo a justificar o exercício da futura ação penal ou o seu respectivo arquivamento. Ou seja, o inquérito, militar ou não, é procedimento prévio à apenas subsidiar eventual e futura denúncia, buscando-se a justa causa para o início da ação penal (juízo de probabilidade), não se destinando à efetivar a pretensão punitiva estatal.

Dizemos existir esta discussão sobre a quem pertence a atribuição para investigar a prática de crime doloso contra a vida, quando praticado por policial militar, em serviço ou em razão dele, contra civil, pois o jornal Gazeta do Povo publicou no dia 11 de janeiro de 2016 matéria noticiando a rejeição da Polícia Militar do Estado do Paraná à Resolução do Conselho Superior de Polícia, que determinou sejam as mortes decorrentes de intervenção policial investigadas pela Polícia Civil.

A matéria traz a opinião de algumas pessoas afirmando que a investigação feita no âmbito externo da corporação castrense coibiria o corporativismo e a impunidade. Todavia, insta trazer a lume que a notícia ignorou dados estatísticos, pareceres técnicos e analise jurídica sobre o tema e suas circunstâncias, induzindo o leitor a uma falsa compreensão sobre o assunto.

Por isso, faz-se necessária uma análise técnica, sob uma perspectiva jurídica do tema, a fim de esclarecer pontos obscuros sobre a atribuição para investigar (fase pré-processual) e a competência para julgar crimes comuns praticados por policiais militares contra a civil.

A título de contextualização, voltemos ao ano de 1991, no qual foi instituída Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) na Câmara dos Deputados com o objetivo de investigar causas de mortes violentas envolvendo crianças e adolescentes no Brasil, pois dados estatísticos publicados à época pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF) revelaram que no período compreendido entre 1979 a 1986 cerca de 51% dos óbitos de crianças e 66% dos óbitos de adolescentes brasileiros decorreram de crimes violentos. Além disso, tal comissão tinha por objetivo verificar os fatos registrados na investigação feita pela Defense for Children International sobre as causas de extermínio de meninos em condição de rua no Rio de Janeiro no período de Janeiro de 1987 a Julho de 1988.

Segundo o Relatório da Comissão Parlamentar, a prática de extermínio de pessoas teve início com os esquadrões da morte no Regime Militar, por volta do ano de 1964. As ações destes grupos se fundamentavam no discurso moralista de que atuavam em defesa da sociedade contra elementos indesejáveis e que com isto realizavam a manutenção da ordem pública, quando, em verdade, estavam ligados a corrupção e a grupos criminosos. Com o fim deste regime ditatorial houve a dispersão desses grupos, sem, contudo, deixar a ideologia de justiça paralela nos órgãos responsáveis pela segurança pública.

A Comissão Parlamentar constatou no Brasil um cenário corrompido e uma violência institucionalizada, multiplicada pela impunidade e a omissão dos poderes públicos. Observou a ineficiência do sistema de segurança pública e um distanciamento dos seus objetivos constitucionais e primordiais. Durante as investigações surgiram indícios de envolvimento de policiais militares no extermínio destas crianças e adolescentes.

Os olhos parlamentares se voltaram, então, para os milicianos e dentre as conclusões da Comissão Parlamentar, nasceu a proposta de se alterar o Código Penal e de Processo Penal Militar, no que tange aos “crimes de policiamento”. A proposta tinha por finalidade remeter tais crimes à Justiça Comum e teve como início o Projeto de Lei nº 2801/92. A priori, se argumentou que o julgamento de policiais militares envolvidos em crimes de extermínio era permeado de corporativismo, o que gerava um sentimento de impunidade. Neste aspecto, ressalta-se que o crime doloso contra a vida praticado por militar contra civil - em serviço ou em razão dele - deixaria de ser considerado militar, passando a ser um crime comum e, consequentemente, de competência da Justiça Comum para processá-lo e julgá-lo. Diante disto, o Deputado Federal João Fagundes ressaltou no seu parecer que a natureza do crime não poderia ser aferida pela condição pessoal da vítima. Também apontou que a mudança da natureza do crime afetaria o espírito da norma castrense, além de não proteger os bens jurídicos por ela tutelados, quais sejam a disciplina e a hierarquia.

Após várias discussões na Câmara dos Deputados, o projeto original foi rejeitado, uma vez que apenas se discutia a natureza do crime (militar ou comum) e não a efetividade/eficácia do procedimento investigatório, até se chegar a um projeto que atendesse aos anseios sociais e que salvaguardasse os bens jurídicos tutelados pelas normas castrense.

Neste novo projeto, o Deputado Abelarto Lupion destacou que o inquérito policial militar, ocorrendo um crime doloso contra a vida praticado por policial militar em serviço ou em razão dele contra civil, deveria ser remetido da Justiça Militar à Justiça Comum para ser processado e julgado, mantendo-se, porém, o Juiz Auditor e o Ministério Público Militar no controle de incidentes pré-processuais (medidas restritivas de direitos fundamentais), como o exemplo da prisão preventiva e busca e apreensão.

Finalmente, após tramitar entre as Casas do Congresso Nacional, em 1996 ocorreu a mudança no Código Penal Militar e no Código de Processo Penal Militar com a promulgação da Lei nº 9.299, sancionada pelo Presidente Fernando Henrique Cardoso, tendo como conclusão a atribuição castrense para investigar crimes dolosos contra a vida, quando praticados por militares, em serviço ou em razão dele, contra civis (chamados de crimes militares impróprios, como veremos), bem como a competência do juízo natural do Tribunal do Júri para processar e julgar tais crimes.

Desta maneira, é perceptível que o legislador manteve a atribuição para investigar crimes dolosos contra vida praticado por policiais militares contra civil, quando em serviço ou em razão dele, no âmbito castrense, a fim de salvaguardar a finalidade daquela norma, assim como os bens jurídicos por ela tutelados, quais sejam a hierarquia e a disciplina. Ademais, se buscou dar perfeita efetividade à norma constitucional, reafirmando a competência do Tribunal do Juiz para processar e julgar os crimes dolosos contra a vida quando praticados por policiais militares contra civis, mantendo-se a Justiça Militar no controle dos incidentes cautelares e na avaliação da violação dos bens jurídicos hierarquia e disciplinar.

Diante do acima exposto, tinha-se a certeza de que esta discussão - sobre a atribuição para investigar crimes dolosos contra a vida de civis quando praticados por policiais militares – já havia sido solucionada no século passado, chegando-se à conclusão de que a atribuição para investigar tais crimes seria da própria instituição castrense. Entretanto, sem maiores razões, esta discussão voltou à tona.

No dia 12 de janeiro de 2016 a Associação dos Delegados de Polícia do Estado do Paraná e o Sindicato dos Delegados de Polícia do Estado do Paraná, em nota de esclarecimento à matéria publicada pela Gazeta do Povo (alhures mencionada) afirmaram que a Resolução Conjunta nº 2 do Conselho Superior da Polícia dispõe sobre os procedimentos internos a serem adotados pelas polícias judiciárias, em face de ocorrências em que haja resultado a prática de crime doloso contra a vida de civil praticado por policial militar, conferindo à polícia judiciária a atribuição para investigá-lo, a fim de diminuir os índices de letalidade em ações policiais, bem como possibilitar maior transparência na elucidação dessas ocorrências.

Entretanto, após esta manifestação, nasce um imenso e incontrolável desejo de fazer as seguintes indagações:

1ª - O que há de se falar em transparência durante a fase pré-processual se o inquérito policial tem por característica ser sigiloso?

2ª - Desde quando o inquérito policial exerce a função de prevenção geral e especial?

3ª - Quem investigará os crimes contra a vida quando praticados por policiais civis e federais, a fim de se evitar uma indevida impunidade advinda do corporativismo?

4ª - Qual o fundamento para se afirmar haver corporativismo na condução do Inquérito pela Policial Militar, já que este é controlado/fiscalizado externamente pelo Ministério Público, e isto ocorre tanto na instância castrense como na instância comum?

5ª Qual a necessidade de se discutir a quem pertence a atribuição para investigar, senão para encontrar um procedimento mais eficaz à concretização dos direitos e garantias fundamentais da pessoa humana?

Antes de analisarmos os principais pontos jurídicos sobre o tema, faz-se necessário verificar o que constou da 9ª Edição do Anuário Brasileiro de Segurança Pública. No ano de 2014 foram registrados cerca de 58.497 homicídios dolosos no Brasil, sendo que deste montante, apenas 17.854 foram investigados, isto é, 70% destes crimes não foram perseguidos pelo Estado, restando evidente a ineficácia dos órgãos de investigação. Por isso a eficácia das investigações é o centro de observação deste texto.

Nossa analise jurídica sobre o tema inicia-se pelo artigo 4º do Código de Processo Penal, que dispõe pertencer à polícia judiciária a atribuição para investigar, o fazendo através do inquérito policial, rechaçando, assim, o sistema de instrução preliminar judicial, objetivando alcançar maior eficácia no procedimento pré-processual, conforme afirma Aury Lopes Jr[1], “delegar à polícia a titularidade real e efetiva de toda a fase pré-processual tem algumas vantagens, como a amplitude da presença policial, a celeridade e a economia para o Estado”.

Assim, perceba que a preocupação do Estado volta-se à uma investigação célere e eficiente, ou seja, eficaz o bastante à dar uma resposta à sociedade, embora esta seja sua função simbólica, como bem ressalta Aury Lopes Jr.

Não sem razão, este procedimento deve buscar incessantemente a eficiência das investigações, pois esta é um princípio constitucional que rege a Administração Pública, conforme prevê o art. 37, caput, da Constituição Brasileira, in verbis:

A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência”.

Afirma, Manoel Messias Peixinho[2], que “reconhece-se a supremacia da Constituição sobre todo o ordenamento jurídico, não só estabelecendo uma hierarquia de uma lei superior sobre outra de nível inferior, como, também, exercendo uma vigilância da constitucionalidade das lei”. Isto é, todas as normas do ordenamento jurídico merecem respeito à constituição e a ela devem se prostrar, fazendo incidir seus preceitos em todos os seus termos. Assim, não poderá uma lei, muito menos um ato normativo, descumprir mandamento constitucional. A vontade do constituinte é ressalvar à polícia civil a atribuição para investigar crimes militares e esta deve prevalecer.

Nesse sentido também Gilmar Mendes[3] afirma que “sem desprezar o significado dos fatores históricos, políticos e sociais para a força normativa da Constituição, confere Hesse peculiar realce à chamada vontade da Constituição (Wille zur Verfassung)”. Isto é, sempre deve-se proferir a exegese que mais se aproxime da vontade da Constituição; sempre deve-se buscar satisfazer os interesses constitucionais.

Assim, após entendido o verdadeiro objetivo visado pela investigação criminal e a verdadeira força da norma constitucional, podemos afirmar que a solução para o fim do conflito de atribuições, ora discutido, está na busca da melhor eficiência das investigações, adotando-se o procedimento mais eficiente à colheita dos elementos de informação que envolveram os fatos, devidas as circunstâncias e os bens jurídicos protegidos.

Quando falamos em eficácia das investigações, fazemos uma interpretação sistêmica entre a constituição e o processo penal, tratando sobre a necessidade de se atribuir este exercício ao órgão correto, isto é, àquele com atribuição para conduzi-lo, ou seja, respeitando-se a regra do jogo, assegurando ao investigado a garantia de ser tratado, também na fase pré-processual, como sujeito de direitos.

A discussão, sob analise, demonstra, em especial, a falibilidade das investigações conduzidas pelas instituições policiais. O erro maior que se tem cometido, nesta fase, é a confusão entre “política de segurança pública e a função investigatória[4]. A polícia utiliza-se, muitas vezes, erroneamente do procedimento investigatório à tentar solucionar problemas de segurança pública, atribuindo ao procedimento uma inexistente função preventiva, quando, em verdade, tal procedimento investigatório serve exclusivamente à busca de subsídios suficientes para, em juízo de probabilidade, amparar eventual denúncia a ser oferecida pelo membro do Ministério Público.

Às instituições policiais não incumbe reforçar o sentimento de segurança coletiva. A investigação criminal tem por fim apenas a reunião de elementos informativos necessários à subsidiar a opinio delicti do membro do MP. Assim afirma Aury Lopes Jr. “o processo é um caminho necessário, que poderá levar à pena ou não, dependendo da efetividade da acusação, que deverá vencer a luta contra o ocultamento do injusto típico. Inclusive a absolvição, em muitos casos, deve ser interpretada como o reconhecimento de um erro judiciário e reflexo do mau funcionamento da Justiça, pois o processo poderia ter sido evitado se o sistema fosse dotado de um eficaz filtro contra as acusações infundadas e a investigação preliminar tivesse aportado suficientes elementos para levar ao não processo[5].

Pode-se dizer, então, que a investigação preliminar é um “instrumento a serviço do instrumento[6], como bem afirmou Calamandrei.

Deve-se, assim, ficar bem claro que não compete à investigação fazer justiça, senão que apenas e de forma imediata garantir o eficaz funcionamento da justiça. Por isso dizemos que erroneamente tem prevalecido que a investigação destina-se imediatamente à acusação a fim de subsidiá-la, achando ser a investigação uma “via de mão única[7]. Porém, é necessário que busquemos uma investigação eficiente, para que suas conclusões sirvam também à defesa do indiciado/acusado, por ser um “instrumento a serviço do instrumento”, isto é, ainda que de forma secundária, influenciará no processo que dará causa. Para subsidiar esta afirmação, lembramos que o processo penal – no todo – é um instrumento de aplicação constitucional, isto é, o procedimento investigatório não poderá se afastar dos fundamentos do instrumento maior ao qual presta serviço, ou seja, tem como fim assegurar a aplicação de toda a norma constitucional, bem como de todos os direitos fundamentais nela previstos, exercendo, acima de tudo, uma função de garantia ao investigado/acusado. Assim, deve-se buscar uma investigação eficaz o bastante à assegurar o respeito e aplicação dos direitos fundamentais do investigado, como por exemplo, ser investigado por órgão com atribuição para tal.

Salienta-se, que Carnelutti[8] defende que “a investigação preliminar não se faz para a comprovação do delito, mas somente para excluir uma acusação aventurada”. Mas como se excluir acusações aventuradas sem uma investigação eficiente? Como se evitar um processo indevido com uma investigação interminável? Como se alcançar uma investigação com o devido respeito as garantias realizada por órgão sem atribuição?

Passamos, então, a defender a atribuição da Polícia Militar para investigar crimes militares impróprios, que são aqueles praticados por policial militar contra civil, em serviço ou em razão dele, como por exemplo, um crime de homicídio praticado por policial militar contra civil, quando em serviço ou em razão dele.

Primeiramente, registra-se que o procedimento investigatório não será conduzido obrigatoriamente pelas polícias federal e civil, como bem prevê o parágrafo único do art. 4º do Código de Processo Penal, ao determinar que “a competência (leia-se atribuição) definida neste artigo não excluirá a de autoridades administrativas, a quem por lei seja cometida a mesma função”. Dessa forma, é perfeitamente possível concluir que outra autoridade administrativa poderá proceder à investigação criminal.

Ademais, consta do art. 144, § 4º, da CF que “às polícias civis, dirigidas por delegados de polícia de carreira, incumbem, ressalvada a competência da União, as funções de polícia judiciária e a apuração de infrações penais, exceto as militares”. Ou seja, não competirá às polícias civis a atribuição para investigar crimes militares, ainda que impróprios, quais sejam aqueles praticados por policias militares contra civis, quando em serviço ou em razão dele, por ser este o desejo constitucional.

Além disso, conferimos à polícia militar a atribuição para investigar crime doloso contra a vida, praticado por policial militar contra civil quando em serviço ou em razão dele, pelo que acima se viu e também por ser este o desejo da norma castrense, pois esta além de tutelar, neste caso, o bem jurídico vida, também visa tutelar os bens jurídicos hierarquia e disciplina, os quais são fundamentais no âmbito militar e apenas neste existem. Diante disso, é possível afirmar que a hierarquia e a disciplina são de suma importância para o bom desenvolvimento das atividades da Polícia Militar e devem ser protegidos e respeitados.

Por isso dizemos que erroneamente a Associação dos Delegados de Polícia do Estado do Paraná e o Sindicato dos Delegados de Polícia do Estado do Paraná, em nota de esclarecimento à matéria publicada pela Gazeta do Povo, alhures mencionada, afirmaram que a Emenda Constitucional nº 45 conferiu à Justiça Comum a competência para processar e julgar crimes dolosos contra a vida, quando praticados por policiais militares contra civis, dizendo, por isso, não competir às policias militares a atribuição para investigá-los. Embora esteja correta a primeira parte da afirmação mencionada, isto é, pertence ao juízo natural do Tribunal do Júri a competência para processar e julgar crimes dolosos contra a vida de civis, quando praticados por policiais militares, ainda que em serviço ou em razão dele. Porém, esta competência não afasta a atribuição da polícia militar para investigá-los, quando praticados nestas circunstâncias, pois nestes casos estaremos diante de crimes militares impróprios e investigá-los é atribuição exclusiva das instituições castrense, por meio de inquérito policial militar (IPM), como menciona o Art. 9º, inciso II, alínea “b”, do Código Penal Militar e o Art. 82, §2º, do Código de Processo Penal Militar, in verbis:

“Art. 9º do CPM: Consideram-se crimes militares, em tempo de paz:

II - os crimes previstos neste Código, embora também o sejam com igual definição na lei penal comum, quando praticados:

b) por militar em situação de atividade ou assemelhado, em lugar sujeito à administração militar, contra militar da reserva, ou reformado, ou assemelhado, ou civil.”

Art. 82, § 2°, do CPPM: “Nos crimes dolosos contra a vida, praticados contra civil, a Justiça Militar encaminhará os autos do inquérito policial militar à justiça comum”.

Acreditamos que você deve estar perguntando, por que deve-se buscar a maior eficácia nas investigações? Porque o inquérito policial, quando eficaz, além do que já foi dito, serve também de escopo constitucional, que é o de evitar o processamento indevido do subordinado à investigação (função de filtro do inquérito policial). Este é um dos objetivos que se deve buscar em um estado de direito.

Deve-se buscar de forma incansável a maior eficácia das investigações, pois que sua demora acaba sendo resolvida através de um indiciamento muitas vezes indevido, resultando assim em denúncias infundadas e em processos desnecessários. Ademais, a razoável duração das investigações é um direito fundamental previsto constitucionalmente e, por isso, deve ser respeitado e perseguido pelo Estado. Assim menciona o art. 5º, inciso LXXVIII, da Constituição Federal: “a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação”.

Porém, conhecemos das dificuldades enfrentadas pela polícia civil à elucidação de fatos e à conclusão de inquéritos policiais, muitos deles já tramitando há anos, mas dizemos isso sem querer aferir a capacidade desta instituição, mas sim pela aparente falta de pessoal e pelo grande volume de procedimentos que diariamente são instaurados à investigar todo tipo de crime. Assim, conhecendo estas dificuldades, pergunta-se, será mesmo a polícia civil o órgão estatal mais eficaz à investigar crimes comuns quando praticados por policiais militares contra civis, em serviço ou em razão dele (crimes militares impróprios)? Entendemos que não. Não nestes casos, pois além de não ser de sua atribuição a investigação de crimes desta natureza, isto é, aqueles praticados por policiais militares contra civis, quando em serviço e em razão dele, conforme dispõe a lei, estes tem também, como bens jurídicos protegidos, a hierarquia e a disciplina, não possuindo a policia civil a melhor eficiência à visualizar eventual lesão a estes bens jurídicos, data máxima vênia. Ademais, a polícia militar cuida-se apenas de investigar crimes militares, próprios e impróprios (como no caso sob análise), não estando sufocada pelo exacerbado número de procedimentos em tramitação, bem como possui pessoal suficiente para proceder às diligências necessárias à instrução do feito (IPM).

Tratando ainda sobre a eficiência da policia militar na instrução de procedimento investigatório, fazemos menção aos artigos 9º ao 28º do Código de Processo Penal Militar que esgotam o tema, não havendo que se falar em falta de regulamentação sobre investigação preliminar à cargo das instituições castrense, ou mesmo em regulamentação deficiente. Ademais, à título de curiosidade, registra-se ser o CPPM de 21 de Outubro de 1969, isto é, posterior ao próprio Código de Processo Penal comum que entrou em vigor no ano de 1941 e, utilizando-se do critério cronológico à interpretar tais normas, aquela prevalecerá.

Ademais, já que tocamos no assunto sobre a interpretação das normas, sabemos ser o Código de Processo Penal Militar mais especial em relação ao CPP comum, isto é, a norma especial prevalecerá sobre a norma geral, qual seja o CPPM.

Salienta-se, ainda, que tanto a Polícia Civil como a Polícia Militar se submeterão ao controle externo exercido pelo Ministério Público, como já dito, não podendo prevalecer a alegação de que ao se conferir tal atribuição à Polícia Militar se estará estimulando o corporativismo ou a impunidade. A impessoalidade e a moralidade do serviço público estão previstas como normas constitucionais no art. 37, caput, da CF, devendo ser respeitadas por todos os órgãos públicos e este respeito e devida aplicação se presumem, isto é, seu desrespeito ou inaplicabilidade devem ser provados e não imaginados.

Não há que se falar estar estimulando a impunidade, atribuindo-a ao corporativismo, pois segundo dados recentes, somente no ano de 2015 foram instaurados 526 IPM’s na Polícia Militar do Estado do Paraná, a fim de apurar supostos crimes de homicídio e lesão corporal praticados por policiais militares contra civis durante suas atividades funcionais.

Por fim, registra-se que o Supremo Tribunal Federal já se pronunciou sobre o tema em questão, colocando um fim nesta discussão na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 1494 MC/DF, proposta pela Associação de Delegados de Polícia do Brasil (ADEPOL), como se pode observar abaixo:

EMENTA: AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE - CRIMES DOLOSOS CONTRA A VIDA, PRATICADOS CONTRA CIVIL, POR MILITARES E POLICIAIS MILITARES - CPPM, ART. 82, § 2º, COM A REDAÇÃO DADA PELA LEI Nº 9299/96 - INVESTIGAÇÃO PENAL EM SEDE DE I.P.M. - APARENTE VALIDADE CONSTITUCIONAL DA NORMA LEGAL - VOTOS VENCIDOS - MEDIDA LIMINAR INDEFERIDA. O Pleno do Supremo Tribunal Federal - vencidos os Ministros CELSO DE MELLO (Relator), MAURÍCIO CORRÊA, ILMAR GALVÃO e SEPÚLVEDA PERTENCE - entendeu que a norma inscrita no art. 82, § 2º, do CPPM, na redação dada pela Lei nº 9299/96, reveste-se de aparente validade constitucional.

Neste julgado o Supremo afirmou que a atribuição para apurar os crimes dolosos contra a vida praticados por militares em face de civis é da Autoridade de Polícia Judiciária Militar, sendo da Justiça Comum apenas a competência para processá-los e julgá-los, por intermédio do Tribunal do Júri, não se verificando qualquer ofensa à Constituição da República.

Porém, a ADEPOL, não satisfeita com esta decisão do Supremo, sem qualquer razão, novamente impetrou Ação Direta de Inconstitucionalidade[9] (ADI 4164) que, apesar de ainda não ter sido julgada, a Advocacia Geral da União já se manifestou no feito afirmando que não há qualquer ofensa a Constituição Brasileira à instauração de IPM nos casos de crimes dolosos contra a vida praticados por militares em face de civis, pois “a previsão legislativa de instauração de inquérito policial militar na hipótese em questão não constitui ofensa à Carta, pois, uma vez verificado, pela autoridade policial militar, o cometimento de crime a ser julgado pelo Tribunal do Júri, os autos do procedimento administrativo deverão ser encaminhados à Justiça Comum. Recente julgado proferido pela Suprema Corte nos autos do HC nº 89837/DF confirmou que a polícia judiciária não detém o monopólio da competência penal investigatória, uma vez que o inquérito policial constitui apenas "um dos diversos instrumentos estatais de investigação penal[10].

O Ministério Público Federal também se pronunciou sobre a mencionada ADI nº 4164[11] e sustentou que não há qualquer ofensa à Constituição Brasileira na instauração e condução pela policia militar das investigações de crimes dolosos contra a vida praticados por militares contra civis, por meio de Inquérito Policial Militar, pugnando pela improcedência da ação.

Perceba-se, então, que não estamos aqui retirando a competência natural da justiça comum para processar e julgar crimes “comuns” (leia-se militares impróprios) praticados por policiais militares contra civis, quando em serviço ou em razão dele, mas sim e apenas conferindo à Polícia Militar a atribuição para investigá-los, através do inquérito policial militar (IPM), por ser este o desejo constitucional e legal (CPM), fazendo com que este procedimento, conduzido por instituição castrense, seja o mais eficaz à elucidação dos fatos, devido as circunstâncias.

Evidente está que a existência de uma investigação eficaz/eficiente, respeitando-se a atribuição do órgão encarregado à presidi-la, é uma garantia constitucional e um direito fundamental pertencente ao investigado que deve ser respeitado acima de qualquer discussão corporativista e vaidosa.

Concluindo, não precisamos de foices à solucionar esta discussão, precisamos apenas da aplicação da Constituição da República Federativa do Brasil.


Notas e Referências:

[1] LOPES JUNIOR, Aury. Sistemas de Investigação Preliminar no Processo Penal. 6ª Edição. Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2014.

[2] PEIXINHO, Manoel Messias. A interpretação da constituição e os princípios fundamentais, p. 108-109.

[3] Gilmar Ferreira Mendes, em apresentação ao trabalho de Kohrad Hesse, A Força normativa da Constituição,  que serviu de base para a aula inaugural na Universidade de Freiburg-RFA, em 1959.

[4] LOPES JUNIOR, Aury. Sistemas de Investigação Preliminar no Processo Penal. 6ª Edição. Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2014.

[5] LOPES JR, Aury. Direito Processual Penal e Sua Conformidade Constitucional. Vol. I. Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2010.

[6] Introduzioni allo Studio Sistematico dei Provedimento Cautelari, p. 21 e s.

[7] LOPES JUNIOR, Aury. Sistemas de Investigação Preliminar no Processo Penal. 6ª Edição. Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2014.

[8] Derecho Procesal Civil y Penal, p. 338.

[9] http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=347091>

[10] (http://www.agu.gov.br/page/content/detail/id_conteudo/142502); (Proc. MPF N. 1.00.000.005651/2010-11)

[11] (Proc. MPF N. 1.00.000.005651/2010-11)


Jeffrey Chiquini. Jeffrey Chiquini é Advogado criminal; especialista em direito penal e processo penal; professor de direito penal na Faculdade Opet e professor de direito penal e processo penal nos cursos preparatórios para concursos públicos Ordem Mais, Aprovação, CEC Concursos, Cenpre e Íntegro. .


Rodolpho Mattos

. Rodolpho Mattos é 1° Tenente da Polícia Militar do Estado do Paraná; bacharel em direito; especialista em direito administrativo disciplinar; pós-graduando em direito penal e processo penal. . .


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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


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