Ato Infracional: Ação Penal Pública Condicionada e Privada: de quem é a legitimidade?

13/10/2015

Por Alexandre Morais da Rosa - 13/10/2015

1 - Talvez o sintoma mais evidente da filiação do ato infracional à Escola Positiva se dê no âmbito da legitimidade da ação infracional. Poucas vozes destoam do entendimento de que, por força do art. 201, I e II, do ECA, independentemente do tipo penal violado, mesmo lesões corporais ou estupro, a legitimidade é sempre do Ministério Público. Esta compreensão possível, mas antidemocrática, parte de um pressuposto que a maioria dos atores jurídicos não sabe ou esconde saber

2 - O discurso criminológico, no Brasil, surge na esteira do controle a ser efetuado sobre os loucos, criminosos e menores de idade – estes últimos atualmente denominados “criança” e “adolescente” – que não se submetiam as regras de convivência e, diante de suas especificidades, precisavam de um olhar mais apurado, capaz de descobrir as motivações das transgressões à ordem, ou seja, de impor (i)legitimamente um tratamento desigual, recompondo a ordem e a disciplina. Neste caminhar, a obra de Alvarez[1] se mostra como norte porque busca fixar a maneira pela qual se deu o acolhimento das idéias criminológicas em território nacional no final do século XIX e início do século XX, a partir da ‘Nova Escola Penal’, a qual aderiu às propostas de Lombroso, Ferri, Garófalo e seus séquitos[2].

3 - Os juristas deste período foram influenciados pelo discurso importado da ‘Escola Positiva’, a qual conferia valioso ‘mecanismo paliativo de desencargo’ (Miranda Coutinho[3]) aos magistrados, dado que se sabe a dificuldade humana deste lugar[4], consistente na (dita) cientificidade que, enleada com o objetivo indisfarsável de defesa social e ideológico, propiciou reconstruir o ‘saber penal’ sob fundamentos inconstestáveis à época. O conhecimento científico de além-mar foi apropriado, então, como a salvação do sistema penal brasileiro, o qual poderia agora, enfim, navegar por águas científicas, deslocando o foco de análise do crime para a figura do criminoso. Este deslocamento matreiro possibilitou a análise da figura do criminoso, o qual desde então passa a ser o objeto da criminologia na perspectiva de construir mecanismos de defesa da sociedade contra o traidor, o pária, aquele que não aderiu ao laço social. A pena passa a ser um mecanismo terapêutico, de salvação do criminoso, na busca de formatá-lo aos anseios (ilusórios) de paz social.

4 - De sorte que os axiomas da ‘Escola Clássica’[5] – legalidade estrita, responsabilidade individual e pena como castigo – não mais interessam, eis que para além da igualdade de punição, diante da ‘evolução científica’, surge a necessidade de aplicar a cada criminoso, em sua singularidade, a medida correta de pena como defesa social: sua individualização científica, estando aberto – diz Rauter – o “caminho para se afirmar que se alguém é preso, privado de suas garantias de cidadão, isto ocorre não apenas em razão de ter sido cometido um delito, mas em razão de uma doença que se quer curar.[6] Em suma: tratar (terapeuticamente) de maneira desigual os desiguais, podendo selecionar-se à vontade – criminalização secundária de Zaffaroni[7] – sobre que setores da população será direcionado o controle, graduando a cidadania[8]. E a Medicina, neste trilhar, é aproximada ao Direito na perspectiva de apontar técnica-mente quem é o desviante e o louco, bem como prescrever o tratamento e a profilaxia ao ‘anormal’ (repressão, disciplina, acompanhamento enquanto puder gerar risco), entendido como criminoso, o moralmente perigoso e, numa sociedade à margem do capitalismo, todos os que prejudicam a engrenagem (mendigos, ébrios, vadios, sindicalistas, etc.).

5 - Acolhendo-se a indicação de Foucault[9] do caráter ‘normatizador’ do poder na sociedade (fábricas, hospitais, escolas, asilos, etc.), a atuação estatal é repensada na ilusória base científica. Com a redefinição semântica do criminoso e de seu lugar, agora objeto de conhecimento científico, o discurso jurídico desde o cometimento até a extinção da medida é compartilhado pelos ‘Criminólogos’ capazes de analisar a conduta perpetrada (infração), a situação atual do ‘criminoso’ e ‘o que esperar dele’, na nefasta e incontrolável discricionariedade construída em torno da periculosidade, “peça fundamental do jogo punitivo contemporâneo, aparece expressivamente teorizado a partir do positivismo criminológico.[10] Com a inserção de critérios de aferição (ditos) científicos são analisados a ‘natureza do criminoso’, seu estado de ânimo – antes e depois da conduta –, sua vida social, enfim, tudo que possa retoricamente justificar o desvio e servir de ‘mecanismo paliativo de desencargo’ do julgador. O referencial é o do ‘homem médio’, ‘normal’, ‘bom por natureza’, e que povoa uma ‘aldeia ideal’ alimentada pelos ‘juristas de ofício’ e ‘cientistas de cá’, sem qualquer critério verificável de mensuração. Mais uma vez coloca-se uma ‘palavra vedete’ (Barthes) na cadeia de significantes para justificar tudo/nada, aumentando a parcela social que se pode regular/normatizar, sob nova fundamentação do direito de punir (doença): a profilaxia e o remédio social.

6 - A lógica é a mesma da ‘falácia desenvolvimentista’ apontada por Dussel no momento da instauração do mito da Modernidade e o conseqüente ‘encobrimento do outro’[11]. Mantendo a divisão de dois mundos, do ‘bem’ versus o ‘mal’, herdada, ademais, da Inquisição, em ‘Nome-do-Outro’ (Legendre e Warat), mas sob ‘nova direção’: a ciência.

7 - Assim é que o argumento se articula da seguinte forma: a) eu sou normal e você doente; b) sendo superior, é meu dever moral desenvolver os mais primitivos; c) o padrão de normalidade é o meu; d) se o ‘desviado’ resiste à normalização, estou legitimado a excluí-lo, porque a pena é um tratamento em prol do próprio criminoso, é a cura; e) eventuais vítimas são necessárias à cura dos demais, no sentido de quase um ritual de sacrifício, até para impor um padrão de ‘normalidade’; f) o ‘criminoso’ tem culpa de resistir e pela ‘pena’ pode ser perdoado; g) Ao final, neste processo de normalização, os custos – sofrimento e sacrifícios – são inevitáveis e até mesmo necessários à cura dos primitivos. Por isso a iminência democrática de negar este discurso sobranceiro que beira a ‘raça pura’ do ‘nazismo’ e que se encontra na prática forense, principalmente na aplicação da pena e das medidas socioeducativas.

8 - De fato, Lombroso, partidário do evolucionismo (Darwin e Spencer), ao naturalizar – juntamente com Garofalo e Ferri[12] – a figura do criminoso a partir de um determinismo atávico (e sociológico, em Ferri), imputou a este a condição de anormal por ser primitivo e doente, passível, entretanto, de ‘normalização’[13], no estereótipo erigido pela ‘Escola Positiva’ do criminoso nato. Com isto, a sociedade estaria legitimada a ‘seqüestrar’ o criminoso em face dos temíveis efeitos sociais/morais que poderia causar, tudo – cinicamente - em nome da ‘paz social’ e ‘segurança jurídica’, tecnicamente chamada de ‘Defesa Social’.[14]

9 - Não obstante o descrédito das idéias na Europa, no Brasil, principalmente pela ‘legitimação discursivo-ideológica’ decorrente, a ‘Escola Positiva’ foi acolhida nos discursos, dentre outros, de Viveiros de Castro, Tobias Barreto, Paulo Egídio, Moniz Sodré de Aragão, Noé Azevedo, Nina Rodrigues e mantém sobrevida no imaginário do senso comum teórico, bastando que se folheie alguns ‘Manuais’, decisões ou mesmo alegações finais para que se perceba que o discurso vive muito bem, consoante se infere nas liberdades condicionais, nas aferições de periculosidade, aplicações da pena e indeterminações da execução da pena, em todas as fases da aplicação de medidas socioeducativas.

10 - A conseqüência do acolhimento do discurso científico é a perda de densidade dos postulados da ‘Escola Clássica’ e também o agigantamento do poder do Criminólogo – e hoje da equipe interprofissional – em face do juiz, gerando, então, uma certa resistência diante da perda de poder, contornada pela ‘Escola Técnico-Jurídica’ de Rocco[15]. A ‘etiologia’ do criminoso é um aspecto marcantemente técnico, onde o saber psiquiátrico desfila com total desenvoltura. Mesmo com a derrocada do ‘biologicismo’, o discurso de Defesa Social se manteve nos braços do psicologismo, nos quais os traços da personalidade são destacados, na tentativa de explicar o ocorrido a partir ainda da figura do ‘criminoso’ desviante e moralmente anormal. No imaginário social a herança da ‘Escola Positiva’ é indissociável e opera no nível inconsciente ou mesmo consciente daqueles que optam por acreditar ainda no determinismo, e não são poucos, dado que os membros do movimento da ‘Lei e da Ordem’ podem ser denominados de legatários e, em tempos neoliberais de globalização[16], de ‘Escola Positivista Criminológica for windows.’

11 - Alicerçados sobre o medo, o temor do delinquente, a ‘Defesa Social’ mantém a estrutura de perscrutar o ‘criminoso’ na sua subjetividade e construir mecanismos de proteção da sociedade contra o inimigo, com a respectiva individualização da pena (e medida socioeducativa), que ainda se mantém. O criminoso/desviante não sendo um igual, diante da divisão entre o mundo dos bons e dos maus, pode e deve ser, na lógica da ‘Defesa Social’, liquidado ou reformado para ser igual aos bons, os que se impõem. Para além da resposta estatal, articulam-se estratégias preventivas e terapêuticas[17]. E o juiz irá, então, no processo, coordenar os diversos saberes para formatar o indivíduo ao padrão normal, assumindo feição disciplinar e repressora.

12 - E, a infância e juventude não ficaram alheias a esta situação, dado que, como assevera Noé Azevedo: “De todas as instituições filhas do espírito tutelar e protetor que caracteriza o tratamento atual dos delinqüentes, a mais importante e que se pode considerar como síntese e concentração de todas as outras é sem dúvida a criação dos Tribunais para menores ou Tribunais juvenis.”[18] Então, dizer que a aproximação da criminologia é equivocada, como pretende a parcela dominante da doutrina, é desconhecer de onde surgiu a atuação em face das crianças e adolescentes. É preciso, definitivamente, saber qual o papel social que se exerce. Nesta seara, com base nas idéias autoritárias de Lombroso e seus séquitos, busca-se uma ‘normatização’ ilegal e inconstitucional’ (CR/88), dos adolescentes autores de ato infracional, já que a medida socioeducativas, na prática, se vincula mais às necessidades da nefasta ‘Defesa Social’ (Bartira Miranda) do que à construção séria do ‘laço social’, por ser tutelar e preventiva, tanto assim que inconstitucionalmente ainda nega-se o direito da vítima de estupro em não levar adiante a ação, por se dizer que todas as ações são públicas, na melhor marca ‘defensista’: “Dando exemplo dos atentados violentos ao pudor, ante os quais os defensores da ação privada a justificariam como uma opção da família, que em certas situações não procuraria a justiça, tentando com isso proteger a honra da mulher ofendida de maiores danos, Castro, por seu lado, argumenta que o ofensor manifesta um caráter tão perverso neste caso que constitui um perigo social, sendo indispensável sua punição, sobrepondo-se, deste modo, o interesse coletivo ao interesse individual. Finalmente, ainda segundo Castro, além de as novas idéias penais modificarem as bases do direito de punir e, conseqüentemente, levarem as reformas das instituições jurídicas e penais, certas categorias da população merecem, a partir dos novos conhecimentos, uma atenção especial: as mulheres e os menores.[19].

13 - O caminho está aberto aos sicários de sempre e aos atores jurídicos que, mesmo de boa-fé, sem maior reflexão, são representantes alienados da Escola Positiva. Mas a boa-fé não salva. Os adolescentes encontram-se submetidos a este oceano de discricionariedade onde, não raro, surgem os justiceiros, naquilo que já apontei como ‘Complexo de Nicolas Marshall’[20].

14 - Com efeito, o Código de Menores pretendeu proteger a sociedade ao invés de garantir o adolescente acusado[21], o qual passou a ser ‘objeto’ da atuação estatal com a finalidade de ‘normatizar’ (Foucault) sua conduta aos anseios da sociedade, independentemente das garantias processuais. A ideia de tutela dos abandonados, expostos, apesar da modificação da doutrina da ‘situação irregular’ pela da ‘proteção integral’, operada pelo Estatuto da Criança e do Adolescente e pela Normativa Internacional (Convenção sobre os Direitos da Criança), plenamente em vigor no Brasil, continua no papel, porque os atores jurídicos envolvidos nestas questões continuam com a ‘mentalidade da defesa social’, inconstitucionalmente, ressalto. Dizer, enfim, que invocar questões criminológicas é estranha à seara da Infância e Juventude, com o devido respeito, é ingênuo e demonstra que não se sabe as origens do Ato Infracional.

15 - Torcendo-se o discurso (George Orwell: 1984!), ou seja, simplesmente dizendo-se e acreditando-se que houve o divórcio com o Direito Penal pode-se, enfim, sob o discurso da ‘proteção integral’, manter-se as mesmas práticas opressoras de prevenção, correção, moralização, normatização. Zizek[22] tem absoluta razão: ‘Eles não sabem o que fazem’! A necessidade de conhecer as condições, físicas, psicológicas, sociais em que (com)vive o adolescente é pura ideologia da ‘Defesa Social’, e esbarra, ademais, na ausência de estrutura e formação dos atores enleados no processo. Isto porque, buscar conhecer o adolescente em sua singularidade não pode ser feito com a leitura de Manuais de Direito, eis que alienados de qualquer questão subjetiva séria, e absolutamente necessária para o enfrentamento desta delicada temática. Somente assim há democracia. O resto é autoritarismo, a la Manzini, para conter a pobreza, os verdadeiros clientes das Varas da Infância e Juventude (Young, Wacquant e Vera Malagutti).

16 - A conclusão relativa ao Código de Menores e aplicada mesmo sob a égide do ECA é óbvia: “Muito mais, portanto, que uma lei que garantisse direitos à população pobre, o Código reuniu principalmente um conjunto de dispositivos legais a partir dos quais o Estado poderia tutelar as crianças e adolescentes ‘anormais’, que potencialmente poderiam se tornar criminosos, ao garantir, em contrapartida, procedimentos penais especiais, mais adequados a evitar a impunidade e obter a necessária recuperação moral desses indivíduos. O Código de Menores se constituiu, portanto, muito mais como um novo instrumento de defesa social do que como um instrumento de ampliação da cidadania.[23]

17 - Assim, para que se efetive o ‘Devido Processo Infracional’, as garantias processuais precisam sair do papel e não se pode mair posar de democrata aplicando-se o ECA isoladamente, pressupondo uma ‘oxigenação constitucional’ garantista (Ferrajoli)[24], a partir dos princípios e regras (é preciso saber diferenciar) da Constituição e dos Tratados de Direitos Humanos. Nesta perspectiva garantista (Salo de Carvalho)[25], é preciso reconhecer que aos adolescentes são aplicáveis as mesmas garantias conferidas ao imputável, tanto no Código de Processo Penal como no Código Penal, principalmente no que se refere à legitimidade para ação.

18 - Importante destacar o trabalho efetuado por Flávio Américo Frasseto sob o título “Ato Infracional, medida socioeducativas e processo: a nova jurisprudência do STJ”[26] na qual faz grande digressão sobre a posição garantista adotada pelo Superior Tribunal de Justiça, que merece transcrição: “Em outras palavras, as garantias processuais balizadoras da pretensão estatal de controlar a vida do adolescente que infracionou são ainda com freqüência vistas como obstáculos à intenção maior e mais nobre de beneficiar este jovem. Obstáculos a serem afastados, desprezados, ignorados. Esta equivocada intelecção do sistema do Estatuto, partilhada pelos mais diversos operadores do direito, legitima incontáveis violações dos direitos de nosso adolescentes processados. Os operadores que não adequaram seu pensamento e sua prática ao ECA ainda raciocinam: ‘já que não estou punindo, estou fazendo um bem para o infrator, não preciso respeitar o procedimento, nem me ater à letra fira da lei. Posso ordenar ao adolescente que faça o que quero e como quero’. Tal raciocínio – e aí ele se torna ainda mais perigoso e traiçoeiro – presta-se ao uso malicioso por parte daqueles que, na pura intenção latente de vingar e retaliar com severidade, argumentam defender o bem do ‘menor’ para livrar-se dos freios legais obstadores do tratamento draconiano desmesurado que apregoam, um sacrifício ao cidadão e um equívoco do ponto de vista de defesa social e política criminal. Se o direito é outorgado ao adulto, deve ser outorgado ao adolescente. Permitir-se a um adolescente tratamento mais severo do que receberia o maior imputável autor da mesma transgressão é algo que assombra os ministros do Superior Tribunal de Justiça, para quem os rigores na aplicação de uma medida, sobretudo a restritiva de liberdade, devem ser ainda maiores em se tratando de pessoa em desenvolvimento.”

19 - Assim é que, se a lógica é de estender aos adolescentes as garantias processuais, repito, com a devida vênia, e é aplicável a parte geral do Código Penal, tanto a prescrição como a necessidade de representação devem caminhar juntas. Ou se reconhece todas as garantias ou não se reconhece nenhuma. Mesmo a doutrina mais conservadora[27], mas que é séria porque estuda, sabe que as regras de ação (pública, condicionada e privada), apesar da localização no Código Penal é matéria processual, sendo aplicável aos adolescentes por direta disposição legal (ECA, art. 152). Nada mais que isso!

20 - Com base na herança da Escola Positiva, então, entende-se que no caso de estupro (CP, art. 213) praticado por um adulto e um adolescente, ainda que a vítima decida – seu direito – não processar o adulto, o representante do Ministério Público está legitimado para, ao arrepio do direito da vítima, promover a ação infracional! O adulto não se processa, o adolescente sim. Tudo cinicamente em nome da Defesa Social. A resposta, num Estado (que se diz) Democrático de Direito, só pode ser negativa. Somente acolhendo-se os postulados da ‘Nova Escola Penal’, com a devida vênia, o processo seria admitido, deixando evidenciado – de vez – que o adolescente é tratado de maneira mais gravosa que o adulto, em franca violação constitucional.

21 - De sorte que ao adolescente se aplica, dentre outros institutos, legítima defesa, estado de necessidade, erro de tipo, erro de proibição, prescrição e a ação penal pública, condicionada a representação e privada, estas últimas dependendo de manifestação expressa da vítima, no prazo decadencial, para aí então ocorrer a legitimação do Ministério Público. Caso contrário, os justiceiros, os que sabem o que é melhor para a sociedade[28] – que exercem as funções em nome do Outro (Freud) – imaginariamente baseados no “melhor interesse do adolescente” se arvoram em processar o adolescente. O problema é que, como diz Miranda Coutinho: “O enunciado da ‘bondade da escolha’ provoca arrepios em qualquer operador do direito que frequenta o foro e convive com as decisões. Afinal, com uma base de sustentação tão débil, é sintomático prevalecer a ‘bondade’ do órgão julgador. O problema é saber, simplesmente, qual é o seu critério, ou seja, o que é a ‘bondade’ para ele. Um nazista tinha por decisão boa ordenar a morte de inocentes; e neste diapasão os exemplos multiplicam-se. Em um lugar tão vago, por outro lado, aparecem facilmente os conhecidos ‘justiceiros’, sempre lotados de ‘bondade’, em geral querendo o ‘bem’ dos condenados e, antes, o da sociedade. Em realidade, há aí puro narcisísmo; gente lutando contra seus próprios fantasmas. Nada garante, então, que a ‘sua bondade’ responde à exigência de legitimidade que deve fluir do interesse da maioria. Neste momento, por elementar, é possível indagar, também aqui, dependendo da hipótese, ‘quem nos salva da bondade dos bons?’, na feliz conclusão, algures, de Agostinho Ramalho Marques Neto”[29]

22 - O devido processo infracional pressupõe uma posição garantista que reveja as práticas do passado. Enfim, compreender a estrutura, rever os discursos, aprender o que se não se sabe, desaprendendo o que se pensou saber (com tanta certeza): essa é a grande tarefa. Em suma, diz Barthes: “É preciso saber perceber até que ponto se foi utilizado, eventualmente, pelo poder. E então, se nossa sinceridade ou nossa necessidade foram servilizadas ou manipuladas, penso que é absolutamente preciso ter a coragem de abjurar.” [30]


Notas e Referências:

[1] ALVAREZ, Marcos César. Bacharéis, criminologistas e juristas: saber jurídico e nova escola penal no Brasil. São Paulo: Método, 2003.

[2] ALVAREZ, Marcos César. Bacharéis, criminologistas e juristas: saber jurídico e nova escola penal no Brasil. São Paulo: Método, 2003, p. 30: “Não é exagero dizer que o Brasil foi um dos países que acolheu com mais entusiasmo os ensinamentos da criminologia, notadamente em sua vertente italiana, pois isto foi reconhecido pelos próprios fundadores deste novo conhecimento.”

[3] MIRANDA COUTINHO, Jacinto Nelson de. “Glosas ao ‘Verdade, Dúvida e Certeza’, de Francesco Carnelutti, para os operadores do Direito.” In: Anuário Ibero-Americano de Direitos Humanos (2001-2002). Rio de Janeiro: 2002, p. 188.

[4] FOUCAULT, Michael. Vigiar e Punir. Petrópolis: Vozes, 2000, p. 13: “Dessa distribuição de papéis se realiza a negação teórica: o essencial da pena que nós, juízes, infligimos não creais que consista em punir; o essencial é procurar corrigir, reeducar, ‘curar’; uma técnica de aperfeiçoamento recalca, na pena, a estrita expiação do mal, e liberta os magistrados do vil ofício de castigadores.”

[5] BARATTA, Alessandro. Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1999, p. 29-37.

[6] RAUTER, Cristina. Criminologia e Subjetividade no Brasil. Rio de Janeiro: Revan, 2002, p. 39.

[7] ZAFFARONI, Eugenio Raúl; BATISTA, Nilo. Direito Penal Brasileiro. Rio de Janeiro: Revan, 2003, p. 43-59.

[8] ALVAREZ, Marcos César. Bacharéis, criminologistas e juristas: saber jurídico e nova escola penal no Brasil. São Paulo: Método, 2003, p. 32-33.

[9] FOUCAULT, Michael. Vigiar e Punir. Petrópolis: Vozes, 2000.

[10] CUNHA, Rosa Maria Cardoso da. O caráter retórico do Princípio da Legalidade. Porto Alegre: Sintese, 1979, p. 42.

[11] DUSSEL, Enrique. 1492: o encobrimento do outro: a origem do mito da modernidade. Petrópolis, RJ: Vozes, 1993, p. 1492, p.185-187.

[12] ANDRADE, Vera Regina Pereira de. A ilusão da segurança jurídica – do controle da violência à violência do controle penal. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1997, p. 60-74.

[13] ANDRADE, Vera Regina Pereira de. A ilusão da segurança jurídica – do controle da violência à violência do controle penal. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1997, p. 64: “Partindo do determinismo orgânico (anatômico-fisiológico) e psíquico do crime, Lombroso, valendo-se do método de investigação e análise próprio das Ciências naturais (observação e experimentação) procurou comprovar sua hipótese através da confrontação de grupos não-criminosos com criminoso dos hospitais psiquiátricos e prisões sobretudo do sul da Itália, pesquisa na qual contou com o auxílio de Ferri, que sugeriu, inclusive, a denominação ‘criminoso nato’.”

[14] RAUTER, Cristina. Criminologia e Subjetividade no Brasil. Rio de Janeiro: Revan, 2002, p. 58-59.

[15] ANDRADE, Vera Regina Pereira de. A ilusão da segurança jurídica – do controle da violência à violência do controle penal. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1997, p. 80-97; BISSOLI FILHO, Francisco. Estigmas da Criminalização: dos antecedentes à reincidência criminal. Florianópolis: Obra Jurídica, 1998, p. 42-44.

[16] ARNAUD, André-Jean. O Direito entre Modernidade e Globalização: lições de Filosofia do Direito e do Estado. Rio de Janeiro: Renovar, 1999, p. 1-71.

[17] KRANTZ, Deise Helena. “Controle social e criminalidade.” In. Revista Jurídica de Dirieto da UNOESC. São Miguel do Oeste: Habitus, 2001, p. 14.

[18] Apud: ALVAREZ, Marcos César. Bacharéis, criminologistas e juristas: saber jurídico e nova escola penal no Brasil. São Paulo: Método, 2003, p. 17.

[19] ALVAREZ, Marcos César. Bacharéis, criminologistas e juristas: saber jurídico e nova escola penal no Brasil. São Paulo: Método, 2003, p. 89-90.

[20] MORAIS DA ROSA, Alexandre. O juiz e o complexo de Nicolas Marshall. Disponível em: http://www.ibccrim.org.br. Acesso em: 23 jul. 2003.

[21] ALVAREZ, Marcos César. Bacharéis, criminologistas e juristas: saber jurídico e nova escola penal no Brasil. São Paulo: Método, 2003, p. 200.

[22] ŽIŽEK, Slavoj. Eles não sabem o que fazem: o sublime objeto da ideologia. Trad.  Vera Ribeiro.  Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1992, p. 63-64.

[23] ALVAREZ, Marcos César. Bacharéis, criminologistas e juristas: saber jurídico e nova escola penal no Brasil. São Paulo: Método, 2003, p. 211-212.

[24] FERRAJOLI, Luigi. Derecho y razón. Trad. Perfecto Andres Ibanez. Madrid: Trotta, 2001; Direito e Razão: teoria do garantismo penal. Trad. Ana Paula Zomer et alii. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002; Derechos y garantías – La ley del más débil. Trad. Perfecto Andres Ibanez. Madrid: Trotta, 1999; Los fundamentos de los derechos fundamentales. Trad. Perfecto Andres Ibanez. Madrid: Trotta, 2001.

[25] CARVALHO, Salo de. Teoria agnóstica da pena: O modelo garantista de limitação do poder punitivo. In: CARVALHO, Salo de. Crítica à Execução Penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002. p. 3-43.

[26]Discursos Sediciosos – crime, direito e sociedade. Ano 7. número 12. 2º semestre. Rio de Janeiro: Editora Revan. 2002, p. 167/191.

[27] TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Manual de Processo Penal. São Paulo : Saraiva, 2001, p. 79.

[28] MARQUES NETO, Agostinho Ramalho. O Poder Judiciário na Perspectiva..., p. 50: “Uma vez perguntei: quem nos protege da bondade dos bons? Do ponto de vista do cidadão comum, nada nos garante, ‘a priori’, que nas mãos do Juiz estamos em boas mãos, mesmo que essas mãos sejam boas. (...) Enfim, é necessário, parece-me, que a sociedade, na medida em que o lugar do Juiz é um lugar que aponta para o grande Outro, para o simbólico, para o terceiro.”

[29] MIRANDA COUTINHO, Jacinto Nelson de. Glosas ao ‘Verdade, Dúvida e Certeza’, de Francesco Carnelutti, para os operadores do Direito. In: Anuário Ibero-Americano de Direitos Humanos (2001-2002). Rio de Janeiro, 2002, p. 188.

[30] BARTHES, Roland. A aula. Trad. Leyla Perrone-Moysés. São Paulo: Cultrix, 1978, p. 27.


Alexandre Morais da Rosa é Professor de Processo Penal da UFSC e do Curso de Direito da UNIVALI-SC (mestrado e doutorado). Doutor em Direito (UFPR). Membro do Núcleo de Direito e Psicanálise da UFPR. Juiz de Direito (TJSC). Email: alexandremoraisdarosa@gmail.com  Facebook aqui           


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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.

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