Atividade cartorária: a efetividade das políticas públicas para a regularização fundiária e os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável

16/02/2017

Por Maykon Fagundes Machado e Sérgio Ricardo Fernandes de Aquino – 16/02/2017

Além das diversas carreiras que compõem o ramo do Direito, torna-se imprescindível debater a função cartorária e de sua contribuição para a sociedade quando se aborda a temática das Políticas Públicas e a efetivação de Direitos Fundamentais. Na presente abordagem, destaca-se a questão da regularização fundiária. Você sabe o que é isto? Conhecer os assuntos que envolvem o cotidiano e a participação nos assuntos concernentes ao Estado, proporcionam o exercício da Cidadania[1] a qual se fortalece por meio desses cenários democráticos[2].

Pretende-se analisar, portanto o instrumento da regularização fundiária como um mecanismo efetivador do estatuto da cidade (esfera local), bem como revelar que nossas atitudes locais refletem no mundo, assim fazendo um paralelo com os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS) e sua eficácia no âmbito global em cumprimento da Agenda Global 2030.

O conceito de regularização fundiária está previsto no artigo 46 da Lei nº 11.977/2009, que estabelece a necessidade de se observar os aspectos urbanísticos, os quais exigem o desenho das vias de circulação, o tamanho dos lotes, a alocação de casas precárias ou si­tuadas em situação de risco, tudo para que esse espaço urbano venha constituir o desenho de toda a cidade.

Nessa linha de pensamento, e em consonância com o que dispõe o Estatuto da Cidade[3], percebe-se que o objetivo central de uma política urbana será o de ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e da propriedade urbana mediante algumas diretrizes a fim de assegurar condições mínimas necessárias para uma vida digna a todos os seus habitantes. Nesse caso, veja-se a redação da lei:

I – garantia do direito a cidades sustentáveis, entendido como o direito à terra urbana, à moradia, ao saneamento ambiental, à infra-estrutura urbana, ao transporte e aos serviços públicos, ao trabalho e ao lazer, para as presentes e futuras gerações;

II – gestão democrática por meio da participação da população e de associações representativas dos vários segmentos da comunidade na formulação, execução e acompanhamento de planos, programas e projetos de desenvolvimento urbano;

III – cooperação entre os governos, a iniciativa privada e os demais setores da sociedade no processo de urbanização, em atendimento ao interesse social;

IV – planejamento do desenvolvimento das cidades, da distribuição espacial da população e das atividades econômicas do Município e do território sob sua área de influência, de modo a evitar e corrigir as distorções do crescimento urbano e seus efeitos negativos sobre o meio ambiente;

V – oferta de equipamentos urbanos e comunitários, transporte e serviços públicos adequados aos interesses e necessidades da população e às características locais;

VI – ordenação e controle do uso do solo de forma a evitar diversos fatores.

O que ocorre é que ‘’a informalidade das submoradias compromete a dignidade das pessoas’’. Essas pessoas não têm como fruir do seu direito à cidade e, portanto, nem se tornam efetivamente cidadãs. Morar irregularmente significa a negação dos Direitos Humanos[4] e da Dignidade da Pessoa Humana[5]. Qualquer Política Pública se destina, de modo permanente, a facilitar o acesso das pessoas ao Direito Humano da Moradia[6] nos limites do Estado-Nação, bem como a determinar os limites de ações mercantis as quais impedem esse cenário nos limites citadinos. Nesse caso, percebe-se a viabilidade dos Direitos de Segunda Geração (Igualdade) e Terceira Geração (Solidariedade).

Além disso, a regularização fundiária repercutirá na gestão racional dos territórios urbanos, já que, quando regularizados, os assentamentos passam a integrar os cadastros municipais[7]. Essa rede de informações facilita a administração da Cidade não apenas para se identificar os casos que se manifestam à margem da lei, mas, também, para que se cumpra a obrigação da Cidade e do Estado em assegurar a propriedade como desdobramento da possível Habitação Condigna.

Verifica-se, dentro desse cenário, a existência de duas finalidades imediatas da regularização fundiária. A primeira é a adoção de medidas para a regularização do próprio assentamento. Trata-se de um conjunto de ações que visam implementar os equipamentos públicos previstos da Lei n. ° 6.766/1979 como forma de conferir elementos essenciais à Dignidade da Pessoa Humana e, “[...] sob um segundo aspecto, visa, com a regularização do empreendimento, a titulação de seus ocupantes[8]”.

É necessário observar, também, a função social da propriedade neste contexto. Além de se configurar como princípio jurídico, que determina os limites de uma atuação pública e privada[9], essa condição ostenta, ainda, natureza de regra jurídica, desde que positivada e materializada pela legislação, a qual indicará o modelo de organização urbana do local. O plano diretor, sob igual critério, deve sinalizar o conteúdo da função social para se atender às peculiaridades de cada cidade e atuar nesse sentido estará concretizado a regra jurídica da função social da propriedade[10].

Na condição de princípio constitucional e vetor de toda legislação infraconstitucional (Estatuto da Cidade, Lei 10.257/2001, e o Plano Diretor), a Função Social do Estado[11] deve ser entendida a partir dos mecanismos legais existentes para se assegurar a legitimidade dos anseios expressos pelo Bem Comum. Dentre estes, assume especial relevância, pela desorganização e de informalidade dominial nos grandes centros urbanos, a regularização fundiária urbanística, que tem a meta da urbanização, com o aparelhamento da região ou área dos serviços públicos que compõem a infraestrutura básica e necessária e titulação dominial, mediante o reconhecimento ou declaração do direito de propriedade aos moradores[12].

Ao discutir Direito à Propriedade, de acordo com o filósofo inglês John Locke (1632-1704), esse surge como manifestação de uma racionalidade jusnatural[13]. Percebe-se que esse Direito surge não apenas como expressão dos textos bíblicos, mas, ainda, numa perspectiva racional por meio da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão da Revolução Francesa de 1789.

Locke[14] insiste em ressaltar este ponto e lembra que, na lógica bíblica, apesar de a parcela territorial urbana ter sido deixada a Adão e seus filhos e filhas, é praticamente inviável uma distribuição igualitária de porções de terras, não obstante acordo entre os co-proprietários. O citado autor preconiza que a medida na qual caracteriza a propriedade privada é o trabalho. Nessa linha de pensamento, a mão de obra humana que modifica a terra, promove a habitação.

Sob igual argumento, observa-se que este instrumento no qual converte o título de posse em título de propriedade por meio da atividade do gestor cartorário cumpre de forma peculiar com os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS), já que irá proporcionar o direito a uma moradia digna (área social)[15], bem como fomentar maior harmonia e viabilidade com os princípios de proteção do Meio Ambiente Natural numa visão biocêntrica[16].


Notas e Referências:

[1] “[...] A cidadania não poderia então nesse momento ser definida a partir apenas dos textos jurídicos que fixam alguns de seus atributos: ela evoca uma realidade mais difusa e mais profunda, atingindo as próprias raízes da identidade individual e coletiva; a cidadania apresenta-se como um estatuto, mais ou menos interiorizado por cada qual ao termo de um processo de aprendizado, que fixa as modalidades e as formas de pertinência ao grupo de referência”. CHEVALLIER, Jacques. O Estado pós-moderno. Tradução de Marçal Justen Filho. Belo Horizonte: Fórum, 2009, p. 252.

[2] “Daí a importância do planejamento territorial nos níveis munici­pal, microrregional e mesorregional, de forma a reagrupar vários distritos unidos pela identidade cultural e por interesses comuns. Para este fim, deve-se criar espaços para o exercício da democra­cia direta, na forma de foros de desenvolvimento local que evoluam na direção de formar conselhos consultivos e deliberativos, de for­ma a empoderar as comunidades para que elas assumam um papel ativo e criativo no desenho do seu futuro”. SACHS, Ignacy. Desenvolvimento: includente, sustentável, sustentado. Rio Janeiro: Garamond, 2004. p. 61.

[3] BRASIL. LEI N° 10.257, DE 10 DE JULHO DE 2001 – Estatuto da Cidade. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/LEIS_2001/L10257.htm> Acesso em: 13 Fev. 2017.

[4] “A institucionalização dos Direitos Humanos nas diferentes nações do mundo por meio dos Direitos Fundamentais, é uma necessidade sociocultural para se assegurar formas de exercício e reinvindicação da Dignidade aniquilada. No entanto, o excessivo apego às regras institucionais, não obstante sejam democráticas, a postura paternal na resolução dos conflitos, na adoção de programas estatais, na elaboração, interpretação e aplicação das leis e princípios jurídicos, entre outros, cria e estimula o institucionalismo transcendental, o qual é péssimo para se tornar viável os Direitos Humanos enquanto expressão multicultural de uma razão pública global”. GRUBBA, Leilane Serratine; AQUINO, Sérgio Ricardo Fernandes de. O individualismo e patriarcalismo dos Direitos Humanos como marco da ideologia-mundo. Revista Nomos, Universidade Federal do Ceará, n. 2, v. 36, p. 246, 2016. Disponível em: «http://www.periodicos.ufc.br/index.php/nomos/article/view/2523». Acesso em 07 de fev. de 2017.

[5] “A dignitas é um atributo que se confere ao indivíduo desde fora e desde dentro. A dignidade tem a ver com o que se confere ao outro (experiência desde fora), bem como com o que se confere a si mesmo (experiência desde dentro). A primeira tem a ver com o que se faz, o que se confere, o que se oferta [...] para que a pessoa seja dignificada. A segunda tem a ver com o que se percebe como sendo a dignidade pessoal, com uma certa auto-aceitação ou valorização-de-si, com um desejo de expansão de si, para que as potencialidades de sua personalidade despontem, floresçam, emergindo em direção à superfície. Mas, independentemente do conceito de dignidade própria que cada um possua (dignidade desde dentro), todo indivíduo é, germinalmente, dela merecedor, bem como agente qualificado para demandá-lo do Estado e do outro (dignidade desde fora), pelo simples fato de ser pessoa, independente de condicionamentos sociais, políticos, étnicos, raciais etc. [...] Só há dignidade, portanto, quando a própria condição humana é entendida, compreendida e respeitada, em suas diversas dimensões, o que impõe, necessariamente, a expansão da consciência ética como pratica diuturna de respeito à pessoa humana”. BITTAR, Eduardo C. B. O direito na pós-modernidade. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2009, p. 301/302.

[6] “Não há que se falar em dignidade humana aquele ser que preambula pelas ruas, em abrigos, sem rumo, porque quando falamos em direito à habitação devemos conscientizarmo-nos do que a ausência deste determina as condições de vida de uma pessoa e, como poderia esta ter uma vida digna quando, ao final do dia, não tem para onde ir? A habitação adequada é condição fundamental para que o homem possa exercer plenamente a sua cidadania, assim inserido na concepção de um padrão de vida adequado e digno”. ZANETTE, Valéria R. Direito Humano à habitação condigna. Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 2014, p. 73.

[7] NALINI, José Renato et al. Regularização fundiária / Coordenadores: José Renato Nalini e Wilson Levy – 2ª ed. rev., atual. e ampl. Rio de Janeiro: Forense, 2014. p. 06.

[8] RODRIGUES, Daniela Rosário et al. Regularização fundiária / Coordenadores: José Renato Nalini e Wilson Levy. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2014. p.35.

[9] “Os beneficiários desse direito devem ser protegidos por aqueles que buscam, por qualquer meio, restringi-lo ou limitá-lo. Desta forma, cabe ao Estado tomar medidas como as que impeçam especulações no meio imobiliário, em que propriedades são mantidas fechadas no intuito de inflacionarem o mercado [...]”. ZANETTE, Valéria R. Direito Humano à habitação condigna. P. 92.

[10] SALLES, Venício Antônio de Paula et al. Regularização fundiária / Coordenadores: José Renato Nalini e Wilson Levy – 2ª ed. rev., atual. e ampl. Rio de Janeiro: Forense, 2014. p. 77.

[11] A Função Social do Estado, para o pensamento de Heller, é “[...] algo que se dá e se propõe à vontade humana. [...] Torna-se esta uma necessidade que domina o nosso atuar no momento em que se produz uma determinada situação cultural [...]”. HELLER, Hermann. Teoria do Estado. Tradução de Lycurgo Gomes da Motta. São Paulo: Mestre Jou,1968, p. 244.

[12] SALLES, Venício Antônio de Paula et al. Regularização fundiária / Coordenadores: José Renato Nalini e Wilson Levy. p.86.

[13] AQUINO, Sérgio Ricardo Fernandes de. GARCIA, Marcos Leite. A propriedade é um direito fundamental?  - XXV ENCONTRO NACIONAL DO CONPEDI - BRASÍLIA/DF CONSTITUIÇÃO E DEMOCRACIA II. p. 07 Disponível em: <http://www.conpedi.org.br/publicacoes/y0ii48h0/509my5cz/eX4y35klb3nps16m.pdf> Acesso em 15 Fev. 2017.

[14] LOCKE, John. Segundo tratado sobre o governo civil e outros escritos: ensaio sobre a origem, os limites e os fins verdadeiros do governo civil. Tradução de Magda Lopes e Marisa Lobo Costa. 4. ed. Petrópolis, (RJ): Vozes/Editora Universitária São Francisco, 2006. p. 97.

[15] “Os ODS (objetivos do desenvolvimento sustentável) aprovados foram construídos sobre as bases estabelecidas pelos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODM), de maneira a completar o trabalho deles e responder a novos desafios. São integrados e indivisíveis, e mesclam, de forma equilibrada, as três dimensões do desenvolvimento sustentável: a econômica, a social e a ambiental”. ONU. Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento – PNUD. Os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável: dos ODM aos ODS. Disponível em: http://www.pnud.org.br/ods.aspx Acesso em 13 Fev. 2017.

[16]Se puede avanzar en esa dirección desde diferentes posturas éticas, tanto desde algunas formas de antropocentrismo débil, bajo el pragmatismo, pero en especial desde una perspectiva biocéntrica. Esta última reconoce que la Naturaleza posee valores propios, intrínsecos, que no dependen de las valoraciones o utilidad según el ser humano. Esto implica que la comunidad política, propia de la idea clásica de ciudadanía, se superpone ampliamente con la idea de una comunidad moral. Ideas como la de florestanía permiten incorporar una perspectiva biocéntrica, aunque el caso actual más destacado es la ya mencionada nueva constitución ecuatoriana, donde se reconocen derechos propios en la Naturaleza, la que incluso aparece bajo la concepción alterna de Pachamama […]. En el caso ecuatoriano coexistirían una ciudadanía ambiental junto a elementos para una nueva meta-ciudadanía ecológica. La postura biocéntrica también sirve como fuente de obligaciones y responsabilidades, tanto frente al resto de la sociedad, como también ante la Naturaleza, y desde allí abordar nuevas estrategias de justicia ambiental”. GUDYNAS, Eduardo. Cidadania ambiental e metacidadanias ecológicas: revisão e alternativas na América Latina. Revista Desenvolvimento e Meio ambiente, [S.l.], v. 19, dez. 2009, p. 69. Disponível em: <http://ojs.c3sl.ufpr.br/ojs/index.php/made/article/view/13954> Acesso em: 13 Fev. 2017.


maykon-fagundes-machado. . Maykon Fagundes Machado é Acadêmico de Direito do 4° período. UNIVALI. Pesquisador Bolsista PIBIC/ CNPq. Realiza atualmente estágio profissional em escritório de advocacia. E-mail: maykonfm2010@hotmail.com. .


Sérgio Ricardo Fernandes de Aquino. Sérgio Ricardo Fernandes de Aquino é Mestre e Doutor em Direito pela Universidade do Vale do Itajaí, Professor Permanente do Programa de Pós-Graduação em Direito (PPGD) – Mestrado – do Complexo de Ensino Superior Meridional – IMED.

E-mail: sergiorfaquino@gmail.com.


Imagem Ilustrativa do Post: Sem título // Foto de: Lucas Incas // Sem alterações.

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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


 

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