Assinatura Eletrônica e a MP nº 983/2020

04/07/2020

Em um mundo cada vez mais conectado e digital, é muito importante criar mecanismos sólidos, robustos e seguros de identificação pessoal na Internet, seja para acesso a serviços públicos/particulares, seja para fins de assinatura de documentos eletrônicos.

A questão da identificação pessoal é tema cada vez mais urgente, principalmente diante do cenário de absoluto crescimento exponencial dos serviços públicos digitalizados, muito por conta da pandemia, mas também por conta da Estratégia de Governo Nacional (Decreto 10.332 de abril de 2020), que prevê a digitalização de 100% dos serviços públicos federais até 2022. Isso, entretanto, é tema para outra coluna.

Nos interessa mais a questão das assinaturas de documentos eletrônicos. Atualmente, o tema é regulado pela Medida Provisória nº 2200/2001, que Infra-Estrutura de Chaves Públicas Brasileira (ICP Brasil), com o intuito de garantir a autenticidade, a integridade e a validade dos documentos em forma eletrônica no país. Foi criado, desta forma, o Comitê Gestor da ICP Brasil e a Autoridade Certificadora Raiz (AC-Raiz).

O modelo adotado pelo Brasil foi o de certificação com raiz única, o que significa dizer que o Instituto Nacional de Tecnologia da Informação é, ao mesmo tempo, a Autoridade Certificadora Raiz (AC-Raiz), e também a (des)credenciadora dos demais interessados em exercer essa função (Autoridades Certificadoras – ACs)[1], tais como Serasa, Certisign, Caixa, Secretaria da Receita Federal, etc.., sendo vedado à AC-Raiz emitir certificado ao usuário final.

As Autoridades Certificadoras cumprem o papel dos Tabeliões no mundo virtual. Elas atestam que a pessoa que diz se chamar Marcelo, é realmente quem ela diz ser, através da análise do documento de identidade de maneira presencial. A partir disso, ela emite um certificado digital (e-card, token usb, etc...) atrelado à identidade de Marcelo. Toda vez que o documento for assinado com aquele certificado digital, a Autoridade Certificadora irá validar a operação e dirá que ela foi feita pelo Marcelo, fazendo, com isso, que o ato tenha presunção relativa de autoria e integridade, nos termos do art. 10º, §1º da MP 2200/2001.

A MP 2200/2001 traz, ainda, interessante regra sobre a utilização de outras assinaturas eletrônicas que não o certificado digital. Se o documento produzido com certificação digital faze presumir verdadeiro o conteúdo em relação aos seus signatários (art. 10º, §1º, MP 2200/2001), a lei permite que a utilização de outras ferramentas de comprovação de autoria e integridade dos documentos eletrônicos, desde que admitido pelas partes como válido ou aceito pela pessoa a quem for oposto o documento (art. 10º, §2º, MP 2200/2001).

Em outras palavras, a assinatura eletrônica que não for feita com o sistema de certificação digital reconhecido pela ICP-Brasil não é oponível perante terceiros e possui presunção de autoria apenas entre as partes originárias.

Foi por essa razão que, há pouco tempo, o TSE se manifestou contrário às assinaturas digitais colhidas pelo Presidente Jair Bolsonaro para a criação de um novo partido político.

As assinaturas foram coletadas em uma plataforma on-line no qual basta a pessoa escrever seu nome apoiando a causa. O TSE pontuou que embora a MP 2200/2001 permita a adoção de outro sistema de comprovação de autoria e integridade, isso precisa ser aceito pelo terceiro a quem o documento for oposto (no caso o próprio TSE). Assim, o TSE rejeitou as assinaturas virtuais colhidas, sob a alegação de impossibilidade de se conferir a autoria daquelas assinaturas.

Assim, em síntese, o Brasil reconhece apenas duas espécies de assinatura eletrônica: a chamada “firma eletrônica simples” (qualquer tipo de assinatura que não utilize o padrão ICP-Brasil) e a “firma eletrônica qualificada ou digital” (baseada no padrão ICP-Brasil).

Esse modelo é um tanto quanto problemático diante das necessidades sociais do dia a dia. Para começar, o certificado digital possui custo elevado e aproximadamente apenas 5% da população brasileira o possui. Desta forma, apenas uma ínfima fração de todos os documentos eletrônicos no Brasil são assinados com a certificação digital, método mais seguro do ponto de vista legal.

No outro “cesto”, 95% dos documentos eletrônicos são assinados com a chamada firma eletrônica simples, que varia desde uma senha, uma característica biométrica, o desenho de uma assinatura. Nesse “cesto”, os modelos são muito variados. Há aqueles sistemas que não adotam criptografia, outros que adotam a criptografia simétrica e até mesmo aqueles que adotam a criptografia assimétrica. Também há aqueles dito “caseiros”, como a digitalização do desenho da assinatura para ser inserida em documentos no word ou pdf, e os “empresariais”, criados por empresas especializadas nesse tipo de operação, com registro de “log” de assinatura e controle de integridade.

As muitas diferenças entre os modelos classificados como “firma eletrônica simples” permitiriam que uma nova espécie fosse criada, tal qual já defendemos há muito tempo. Para efeitos de comparação, o modelo europeu é baseado em três espécies: simples, avançada e qualificada (ou digital).

A novidade – firma eletrônica avançada – possui também presunção de autoria, e é uma solução barata, eficiente e que traz segurança jurídica na assinatura de documentos eletrônicos.

Agora em junho/2020, de forma surpreendente, o Presidente Jair Bolsonaro sancionou a Medida Provisória nº 983/2020, que instituiu no país a chamada firma eletrônica avançada, nos moldes europeus.

Estabelece o art. 2º da referida MP que a firma eletrônica avançada é aquela que está associada ao usuário de maneira unívoca, utiliza dados para a criação de assinatura eletrônica que permite ao signatário, com elevado grau de confiança, operá-la sob o seu controle exclusivo e permite controlar as alterações posteriores no documento.

Essa nova categoria tem o condão de acelerar as transações eletrônicas e trazer mais segurança jurídica a todos os envolvidos. Ainda que seu âmbito de aplicação seja restrito ao Poder Público e aos profissionais da saúde, o tema no Congresso poderá ganhar novos contornos, já que uma solução dessa natureza há muito já vinha sendo objeto de clamor social.

Por enquanto, a assinatura avançada, no âmbito do Poder Público, poderá ser aceita (art. 3º): (i) nas interações com ente público que não envolvam informações protegidas por grau de sigilo; (ii) nas interações com ente público que envolvam informações classificadas ou protegidas por grau de sigilo e (iii) nos registros de atos perante juntas comerciais.

Na área médica, estabelece a MP que os documentos subscritos por profissionais de saúde são válidos para todos os fins se forem assinados com firma eletrônica avançada ou qualificada (art. 6º). Regra igual poderá ser aplicada nas receitas médicas em meio eletrônico, nos termos do art. 7º da MP.

Dentre as questões práticas que merecem destaque em relação ao tema, pode-se citar a questão da executividade dos contratos assinados com firma eletrônica. Atualmente, o Superior Tribunal de Justiça entende pela possibilidade de execução de título extrajudicial fundado em documento eletrônico assinado apenas com certificado digital, no qual não constava a presença de testemunhas. Entendeu o STJ (REsp nº 1495920/DF, de relatoria do Ministro Paulo de Tarso Sanseverino, julgado em 15.05.2018) que “a assinatura digital de contrato eletrônico tem a vocação de certificar, através de terceiro desinteressado (autoridade certificadora), que determinado usuário de certa assinatura a utilizara e, assim, está efetivamente a firmar o documento eletrônico e a garantir serem os mesmos os dados do documento assinado que estão a ser sigilosamente enviados. Em face destes novos instrumentos de verificação de autenticidade e presencialidade do contratante, possível o reconhecimento da executividade dos contratos eletrônicos”.

Em outras palavras, entendeu o STJ que a ratio da exigência de duas testemunhas é atestar que as partes realmente formularam e assinaram o contrato, trazendo uma segurança adicional a permitir o processo de execução (sem a necessidade do lento processo de conhecimento). Desta forma, como o certificado digital é atestado pela autoridade certificadora (terceiro desinteressado, como as testemunhas) e possui uma tecnologia de criptografia assimétrica que possui presunção relativa de autoria e que garante a integralidade, a ratio legislativa estaria cumprida sem a necessidade das testemunhas.

A ratio decidenci pode também ser aplicada a firma eletrônica avançada, na medida em que existe garantia de autoria e de integridade do documento eletrônico assinado desta forma. E isso poderia impactar de maneira muito positiva as transações comerciais em todo o país, conferindo a elas mais segurança jurídica e mais celeridade na execução das dívidas (sem a necessidade de passar pelo processo de conhecimento).

Uma nova porta se abriu. Será interessante analisar como o Congresso Nacional e as demais entidades interessadas no tema irão se portar quando o tema for debatido e analisado.

 

Notas e Referências

[1] Disponível em https://www.iti.gov.br/icp-brasil. Acessado em 20.03.2020.

 

Imagem Ilustrativa do Post: Scales of Justice - Frankfurt Version // Foto de: Michael Coghlan // Sem alterações

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