ASPECTOS RELEVANTES ACERCA DA INTERVENÇÃO FEDERAL NO RIO DE JANEIRO

10/03/2018

É de conhecimento público a intervenção federal da segurança pública do Estado do Rio de Janeiro, decretada pelo governo federal no último dia 16 de fevereiro. Aliás, a questão da violência no Brasil passou a ser discutida de forma ampla por diversos segmentos da sociedade. Mas o Estado do Rio de Janeiro – que não é o mais violento, segundo o Anuário de Segurança Pública[i] – é alvo recorrente de observações e críticas, levando-se em conta o histórico do chamado “crime organizado”, assim como a atual situação institucional pela qual passa aquele ente federado, com ex-governador preso, assim como três deputados estaduais, sendo um deles o presidente da Assembleia Legislativa. Ou seja, o Rio de Janeiro, é a prova cabal da falência federação, pois outros estados também sofrem situação semelhante.

Um primeiro aspecto que se deve considerar é a natureza militar atribuída ao interventor. Este dispositivo é passível de ter a sua constitucionalidade questionada. O artigo 36, § 1º, da Constituição estabelece as condições nas quais se desenvolverão as atividades interventivas. O interventor deve representar a União no seu mais alto nível, estando, inclusive, subordinado diretamente ao Presidente da República, como define o artigo 3º, § 1º, do Decreto nº 9288/2018. Portanto, o interventor ocupa uma posição política, pois deverá desenvolver todas as ações de segurança pública que caberia ao Estado federado. O caráter militar da função de interventor dá uma conotação de que somente o aspecto operacional está sendo levado em consideração. Nunca é demais lembrar que os salários do funcionalismo público do estado, incluindo-se o do pessoal da segurança pública, ainda se encontram atrasados. Não é tarefa do interventor tratar de questão tão relevante? Cabe também ao interventor a gestão dos presídios. Para tanto, terá que ter a sua disposição um diagnóstico da situação carcerária, necessitando desenvolver ações junto ao Poder Judiciário, CNJ, Ministério Público, Defensoria Pública e OAB para, de forma transparente, buscar melhorias ao medieval sistema carcerário. Afinal, esta é uma atuação de caráter militar? Fica a provocação!

Também merece reflexão os limites da intervenção que se restringem à segurança pública. Importante destacar que o problema é muito mais complexo. As comunidades do Rio de Janeiro são marcadas por um imenso déficit de cidadania, o que gera a criação de uma realidade paralela, alheia ao Estado, que se utiliza, tão somente, do instrumento repressor do aparato policial. Serviços elementares como saúde, educação, saneamento básico, lazer, urbanização, dentre outros, são essenciais para o sucesso da intervenção. Nada disso está sendo tratado. O que a União vislumbra é o emprego de tropas, sem qualquer ação de promoção da cidadania. A este respeito convém mencionar as palavras do Comandante do Exército, General Villas Bôas, ditas na Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional do Senado: 

O último grande emprego nosso foi na comunidade da Maré, no Rio de Janeiro. É uma comunidade de 130 mil habitantes. Nós ficamos lá por 14 meses. Eu, periodicamente, ia até lá e acompanhava o nosso pessoal, as nossas patrulhas na rua. E um dia me dei conta [...]: os nossos soldados, atentos, preocupados, são vielas, armados; e, passando crianças, senhoras, eu pensei… estamos aqui apontando armas para a população brasileira! Nós somos uma sociedade doente! [ii] 

As palavras do Comandante do Exército demonstram a complexidade do problema. Não se pode buscar a solução para o problema da segurança pública do Rio de Janeiro por meio do uso exclusivo da força militar.

Outro aspecto que deve ser abordado é a intenção do uso de mandados de busca e apreensão de natureza coletiva, afrontando violentamente a Constituição, particularmente o artigo 5º, inciso XI. O artigo 283, do Código de Processo Penal, especifica os dados necessários que deverão constar nos mandados de busca, sendo vedada a utilização de dados genéricos na expedição dessas ordens. Esse detalhamento visa, primordialmente, limitar o poder estatal de violar a intimidade do cidadão. Qualquer inobservância desse dispositivo inviabiliza o aproveitamento das provas produzidas em eventual ação penal. Portanto, qualquer diligência ou operação não afasta os direitos e as garantias fundamentais constitucionalmente albergadas. A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal já é pacífica neste sentido: 

De que vale declarar a Constituição que “a casa é asilo inviolável do indivíduo” (art. 5º, XI) se moradias são invadidas por policiais munidos de mandados que consubstanciem verdadeiras cartas brancas, mandados com poderes de a tudo devassar, só porque o habitante é suspeito de um crime? Mandados expedidos sem justa causa, isto é, sem especificar o que se deve buscar e sem que a decisão que determina sua expedição seja precedida de perquirição quanto à possibilidade de adoção de meio menos gravoso para chegar-se ao mesmo fim. A polícia é autorizada, largamente, a apreender tudo quanto possa vir a consubstanciar prova de qualquer crime, objeto ou não da investigação. Eis aí o que se pode chamar de autêntica “devassa”. Esses mandados ordinariamente autorizam a apreensão de computadores, nos quais fica indelevelmente gravado tudo quanto respeite à intimidade das pessoas e possa vir a ser, quando e se oportuno, no futuro, usado contra quem se pretenda atingir. (HC 95.009, rel. min. Eros Grau, j. 6‑11‑2008, P, DJE de 19‑12‑2008.) (sem grifo no original) [iii] 

Neste rumo, aumenta de importância o trabalho de investigação empreendido pela polícia judiciária, como determina o artigo 144, § 4º, da Constituição da República. O uso legal e eficiente da atividade de investigação gera resultados satisfatórios que culminam com o exercício pelo de direitos fundamentais.

Cabe concluir que a recente intervenção federal na segurança pública do Estado do Rio de Janeiro é medida que caminha para o fracasso. Fracasso, pois institucionalmente esse ente da federação está desmoralizado e não consegue desenvolver políticas públicas elementares. Vendo um governo que não consegue solver suas obrigações com o funcionalismo público, não se pode esperar um ambiente de normalidade. Há uma crise de moralidade gerada por anos de desgovernos que se sucederam e que usaram a pirotecnia e jogadas de marketing como estratégia voltada à ampliação de poder político. A intervenção federal somente no campo da segurança pública não se mostra eficiente, tendo em vista o uso puro e simples da violência.

 

[i] Disponível em https://exame.abril.com.br/brasil/os-estados-mais-violentos-do-brasil-3/. Acesso em 20 fev. 2018.

[ii] Disponível em http://congressoemfoco.uol.com.br/noticias/chefe-do-exercito-critica-uso-das-tropas-por-temer-preocupa-me-o-constante-emprego/. Acesso em 20 fev. 2018.

[iii] Brasil. Supremo Tribunal Federal (STF). A Constituição e o Supremo. 5. ed. atual. até a EC 90/2015. — Brasília: STF, Secretaria de Documentação, 2016, p. 88.

 

Imagem Ilustrativa do Post: 2012-03-25 Igreja da Penha (24) // Foto de: Márcia // Sem alterações

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