Aspectos práticos acerca da validade das provas obtidas no exterior em sistema de Cooperação Jurídica Internacional

30/09/2024

 Coluna semanal: A teoria se aplica na prática

Coordenador: Thiago Minagé

O objetivo central deste artigo é trazer de forma prática algumas situações reais e que já foram julgadas pelo Poder Judiciário acerca da validade da prova obtida no exterior em sistema de cooperação jurídica internacional.

Em matéria penal, não existe uma legislação específica no Brasil que trate da utilização de provas obtidas em investigações realizadas por outros países através da cooperação jurídica internacional.

Mesmo inexistindo qualquer tratamento legal específico, o compartilhamento e utilização de provas é legítimo e tem amparo em Convenções Internacional sobre cooperação jurídica, cujos tratados ratificados no Brasil assumem status de lei federal. Alguns dos Tratados Internacionais mais relevantes em vigor hoje que regulamentam a matéria são a Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção[1], o Acordo de assistência jurídica em matéria penal celebrado com o governo dos Estados Unidos da América[2], o Tratado de Cooperação jurídica em Matéria Penal entre o Brasil e a Confederação Suíça[3] e o Protocolo de Assistência Jurídica mútua em Assuntos Penais do Mercosul[4].

A jurisprudência dos Tribunais Superiores aplica de forma ampla as normas referentes aos referidos tratados de cooperação internacional. O Supremo Tribunal Federal, no inquérito 4146/DF, de relatoria do Min. Teori Zavascki, julgou em 22 de junho de 2016 o caso de determinado Deputado Federal que fora denunciado na Suprema Corte por inúmeros crimes, dentre eles a prática de evasão de divisas, conforme art. 22, parágrafo único, da Lei nº 7.492/86. Na ocasião, o Ministério Público Federal obteve de autoridades Suíças diversos documentos que fundamentaram a denúncia e foram juntados aos autos.

Tais documentos foram obtidos pelo Ministério Público Federal através de pedido formal de cooperação jurídica que foi enviada por intermédio do Ministério da Justiça ao Ministério Público da Suíça[5]. No pedido, o Ministério Público Federal requereu o envio destes documentos bancários que estariam relacionados com o objeto da investigação realizada contra o parlamentar. O pedido foi recebido e aceito pela autoridade Suíça, que enviou os documentos solicitados para a autoridade brasileira, que na ocasião seria o Ministério da Justiça.

Com o material probatório compartilhado, a Procuradoria Geral da República ofereceu denúncia contra o referido Deputado Federal. A defesa, por sua vez, alegou que o procedimento de obtenção dos documentos não teria previsão no Código de Processo Penal e em nenhuma outra lei, de forma que seria ilegítimo[6].

No julgamento, o STF não acolheu a tese defensiva fundamentando que o material probatório foi obtido através de Sistema de Cooperação Jurídica Internacional e que trata de fato delituoso diretamente vinculado à persecução penal objeto da cooperação.

Seguindo o mesmo raciocínio, o Superior Tribunal de Justiça também decidiu em caso semelhante, no HC 231.733/PR, de relatoria do Ministro Jorge Mussi, na Quinta Turma, sobre a validade da prova obtida no exterior por sistema de cooperação jurídica internacional e a necessidade de se respeitar o ordenamento jurídico do país que está presidindo a investigação.

Nesse caso, ficou decidido que inexiste qualquer ilegalidade na quebra de sigilo bancário de acusados, uma vez que a medida foi realizada para obtenção de provas em investigação em curso nos EUA, tendo sido implementada de acordo com as normas do ordenamento jurídico vigente, sendo certo que a documentação referente ao resultado da medida invasiva foi posteriormente compartilhada com o Brasil por meio de acordo existente entro os países.

Nesse sentido, o STJ decidiu que, em matéria penal, adota-se, em regra, o princípio da territorialidade, desenvolvendo-se na justiça pátria o processo e os respectivos incidentes, não se podendo olvidar de eventuais tratados ou outras normas internacionais a que o país tenha aderido nos termos dos artigos 1º do Código de Processo Penal e 5º, caput do Código Penal.

Cada acordo realizado entre países para assistência mútua tem a sua particularidade. Como exemplo, o Brasil possui um acordo bilateral com os EUA se comprometendo em prestar auxílio jurídico direto em matéria processual[7].

Esse acordo, em inglês, possui a sigla MLAT que significa “Mutual Legal Assistance Treaty” e foi uma forma encontrada para desburocratizar e tornar mais célere e fácil a cooperação jurídica internacional, que antes era feita apenas por meio de cartas rogatórias que são caras e demoradas.

O MLAT foi assinado entre Brasil e os EUA em 1997, mas promulgado apenas em 2001, por meio do Decreto nº 3.810/2001. É um instrumento de auxílio direto, permitindo que o pedido seja formulado diretamente pelo juiz de 1ª instância, sem a necessidade prévia de deliberação do STJ. A tramitação desses pedidos é coordenada pela Autoridade Central brasileira designada em cada tratado firmado, conforme explica o Manual de Cooperação Jurídica Internacional do Ministério da Justiça editado em 2012[8].

Essa assistência mútua inclui: a tomada de depoimento ou declarações de pessoas, fornecimento de documentos, registros e bens, localização ou identificação de pessoas (físicas ou jurídicas) ou bens; entrega de documentos, transferência de pessoas sob custódia para prestar depoimento ou outros fins; execução de pedidos de busca e apreensão; assistência em procedimentos relacionados a imobilização e confisco de bens, restituição, cobrança de multas e qualquer outra forma de assistência não proibida pelas leis do Estado Requerido.

A Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça, no AREsp 701833/SP de relatoria do Ministro Ribeiro Dantas, julgou em 2021 um caso em que se tratava de cooperação jurídica internacional feita por MLAT.

Na ocasião, a Procuradoria de Nova Iorque (EUA) compartilhou com a Polícia Federal do Brasil uma relação de brasileiros que mantinham contas bancárias nos EUA. A partir dessa informação, a Polícia Federal instaurou inquérito para apurar os fatos e representou pela quebra do sigilo bancário dos investigados. O Juiz Federal deferiu o pedido e expediu um MLAT aos EUA solicitando todos os detalhes das contas bancárias mantidas naquele país, que foram enviados. Os dados foram obtidos pela Procuradoria de Nova Iorque sem autorização judicial e compartilhados posteriormente com a Polícia Federal do Brasil.

Ao julgar a legalidade do compartilhamento, a Quinta Turma do STJ entendeu pela legalidade do compartilhamento de dados. Como fundamento, aduziu-se que a legislação estadunidense não exige a necessidade de autorização judicial para se obter tais elementos informativos. Dessa forma, como a legislação local em que a diligência foi cumprida não exige a reserva de jurisdição, o compartilhamento desses dados bancários não viola do ordenamento jurídico brasileiro.

Por fim, cabe trazer uma importante questão acerca do compartilhamento de provas em sistema de cooperação jurídica internacional: a possibilidade ou não de compartilhar provas obtidas em acordo de colaboração premiada.

Tal questão foi enfrentada na Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal no AgRg no inquérito 4420/DF, relacionado à Operação Lava Jato, envolvendo o acordo de colaboração celebrado pelos diretores da empresa Odebrecht. A discussão foi pautada em torno dos princípios e normas que devem ser observados na entrega de provas pelas autoridades brasileiras a Estados requerentes. Pontuou-se tanto os ditames da Lei 12.850/2013 (Lei de Organização Criminosa) e a Lei 12.846/2013 (Lei Anticorrupção), que tratam dos acordos de colaboração premiada e leniência, bem como dos princípios da especialidade, da ampla defesa e da boa-fé.

Estabeleceu-se que, se por um lado, cumpre às autoridades brasileiras fazer valer os tratados internacionais vigentes, sejam bilaterais ou multilaterais; por outro lado, o Ministério Público Federal deve cumprir os acordos que firmou com os investigados, acordos estes devidamente homologados em juízo.

Deste modo, os países solicitantes não estão obrigados a conceder imunidade ou benefícios ilegais aos colaboradores, enquanto as autoridades Brasileiras não estão autorizadas a enviar ao exterior provas fornecidas por colaboradores se este envio não estiver previsto na colaboração, não podendo tampouco facultar a coleta de depoimentos desses mesmos colaboradores, sem a imposição de limites ao uso da prova voluntariamente fornecida por eles.

Nos termos do acórdão da Segunda Turma do STF: “a possibilidade de compartilhamento de provas produzidas consensualmente para outras investigações não incluídas na abrangência do negócio jurídico pode colocar em risco a sua efetividade e a esfera de direitos dos imputados que consentirem em colaborar com a persecução estatal”.

Dessa forma, conclui-se que é perfeitamente válido o compartilhamento de provas obtidas no exterior em processos criminais no Brasil respeitando as legislações internas do Brasil e as Legislações de países estrangeiros sem desrespeitar a soberania dos países que estão em cooperação jurídica internacional

 

Notas e referências:

ABADE, Denise Neves. Direitos Fundamentais na Cooperação Jurídica Internacional. São Paulo: Saraiva, 2013.

ARAS, Vladimir. Direito Probatório e Cooperação Jurídica Internacional. In SALGADO, Daniel de Resende; QUEIROZ, Ronaldo Pinheiro de (Org.) A Prova do Enfrentamento à Macrocriminalidade. Salvador: JusPodivm, 2019.

MORO, Sérgio Fernando. Cooperação Jurídica Internacional em Casos Criminais: Considerações Gerais. In: BALTAZAR JÚNIOR, José Paulo; LIMA, Luciano Flores de. Cooperação Jurídica Internacional em Matéria Penal. Porto Alegre: Verbo Jurídico, 2010.

TEÓFILO, Anna Mayra Araújo; BRAGA Rômulo Rhemo Palitot. Cooperação Penal Internacional nos crimes de Lavagem De Dinheiro. Disponível em: <www.pu- blicadireito.com.br/artigos/?cod=571e646d4ea4d46a>. Acesso em: junho de 2017.

TOFFOLI, José Antônio Dias; Cestari, VIRGÍNIA Charpinel Junger. Mecanismos De Cooperação Jurídica Internacional No Brasil. Disponível em www.agu.gov.br. Acesso em maio de 2024

VACONCELOS, Vinicius. Compartilhamento de provas na Colaboração Premiada: Limites à Persecução Penal Baseada nos elementos de Autoincriminação produzidos pelo Delator. In: Revista de Direito Público. V. 15, n.87, p. 9-24, maio-jun 2019. Disponível em: https://www.portalperiodicos.idp.edu.br/direitopublico/article/view/3381/pdf. Acesso em 18/05/2024.

SECRETARIA NACIONAL DE JUSTIÇA. Departamento de Recuperação de Ativos e Cooperação Jurídica Internacional (DRCI). Manual de cooperação jurídica internacional e recuperação de ativos: cooperação em matéria penal. 2. ed. Brasília: Ministério da Justiça, 2012.

[1] ONU. Convenção das Nações Unidas Contra Corrupção, novembro de 2009. Disponível em: https://www.unodc.org/documents/lpo-brazil//Topics_corruption/Publicacoes/2007_UNCAC_Port.pdf. Acesso em 24 de set. de 2024;

[2] BRASIL. Acordo de Assistência Jurídica em Matéria Penal Celebrado com o Governo dos Estados Unidos da América, 2 de maio de 2001. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/2001/D3810.htm. Acesso em 20 de set. de 2024;

[3] BRASIL. Tratado de Cooperação jurídica em Matéria Penal entre o Brasil e a Confederação Suíça, 12 de maio de 2004. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2009/Decreto/D6974.htm. Acesso em 18 de set. de 2024;

[4] MERCOSUL. Protocolo de Assistência Jurídica mútua em Assuntos Penais do Mercosul, 25 de jun. 1996. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/d3468.htm. Acesso em 23 de set. 2024;

[5] Conforme consta nos autos do inquérito 4146/DF;

[6] Muito embora a defesa tenha levantado a tese de que não há previsão no Código de Processo Penal e em nenhuma outra lei acerca da possibilidade desse compartilhamento de provas, o Supremo Tribunal Federal, neste caso, entendeu que a transferência de procedimento criminal tem abrigo em convenções internacionais sobre cooperação jurídica, cujas normas, quando ratificadas, assumem status de lei federal. No caso, é legítima a providência da autoridade brasileira de, com base em material probatório obtido da Confederação Suíça, por sistema de cooperação jurídica internacional, investigar e processar o denunciado pelo delito de evasão de divisas, já que se trata de fato delituoso diretamente vinculado à persecução penal objeto da cooperação. Dessa forma, havendo tratado internacional incorporado ao direito interno sobre a matéria de forma específica, estaremos diante de uma regra no mesmo plano de validade, de eficácia e autoridade em que se posicionam leis ordinárias, não havendo, portanto, que se falar em ausência de lei acerca de eventual compartilhamento entre Estados em cooperação, sem prejuízo de tais tratados incorporados estarem sujeitos ao controle de constitucionalidade devendo, em caso de inconstitucionalidade, serem denunciados no foro próprio.

[7] BRASIL. Acordo de Assistência Judiciária em Matéria Penal entre o Governo da República Federativa do Brasil e o Governo dos Estados Unidos da América, 14 de outubro de 1997. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/2001/D3810.htm. Acesso em 20 de set. de 2024.

[8] BRASIL. Manual de Cooperação Jurídica Internacional do Ministério da Justiça, 2019. Disponível em: https://www.gov.br/mj/pt-br/assuntos/sua-protecao/lavagem-de-dinheiro/drci/publicacoes/manuais/cooperacao-juridica-internacional-em-materia-penal/manual-penal-online-final-2.pdf. Acesso em 24 de set. de 2024.

 

 

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