Aspectos gerais sobre o superendividamento e seus reflexos na atuação da Defensoria Pública

18/04/2016

Por Fernando José Sampaio Lobo - 18/04/2016

O tema do sobreendividamento se apresenta como matéria contemporânea e instigante, cuja repercussão afeta a coletividade em geral. Todavia, não obstante a presença hodierna em nossa sociedade, o endividamento dos consumidores detém escasso tratamento pelos estudiosos e doutrinadores pátrios.

O desenvolvimento da globalização, iniciada a partir da década de 90, desencadeou variadas mudanças no cenário político-internacional. Todavia, verificou-se que os principais reflexos deste acontecimento ocorreram dentro das relações sociais, em especial nas que envolvem o consumo.

A protuberância de novos produtos ofertados, os quais se apresentavam inacessíveis para grande parcela da população, a inserção de serviços detentores de inovações tecnológicas, as novas técnicas desenvolvidas pelo mercado para captar o público-alvo, notadamente através da publicidade e do marketing, culminaram na alteração de hábitos e valores atribuídos pelos indivíduos formadores da comunidade, incessantemente estimulados à aquisição de bens e serviços, com o alvitre de manter a padronização – o status social - entabulada pelos próprios membros do grupo social.

A propensão natural do sistema econômico permitira a inserção, em nossa comunidade, do modelo da opulência, ostentação, proporcionando a fixação de um entusiasmo pós-moderno pelo consumo desenfreado, arraigado no cotidiano da sociedade contemporânea.

Na esteira das mudanças sentidas no meio social, consolidou-se um campo fértil para a ascensão da figura do crédito como mercadoria disponível ao alcance de qualquer cidadão, além de constituir um elemento peculiar e indispensável na concretização da sociedade de consumo, consoante asseveram Frade e Magalhães (2006, p. 25):

[...] um indivíduo que se encontre inserido num contexto social em que a manifestação de bens materiais seja valorizada e não tiver recursos suficientes que lhe permitam a aquisição desse tipo de bens, encontra no crédito uma via para alcançar esse reconhecimento social.

Não obstante subsistirem questionamentos quanto à natureza do crédito, já que para parte da doutrina trata-se de um serviço complexo, uma outra corrente aponta como sendo um produto imaterial, enquanto outros estudiosos tendem a classificá-lo como um objeto sui generis, mostra-se inquestionável a influência que o crédito exerce no mundo contemporâneo.

O consumo se apresenta como um novo paradigma das ciências sociais, objeto de tratamento especial pelo Direito, sendo matéria respaldada pela Carta Magna, consoante exposição no capítulo anterior, além de previsão em um microssistema normativo próprio, com o advento do CDC (Lei 8.078/90).

Nos últimos anos, a intensificação do financiamento de crédito, agregada à facilidade e desburocratização para a concessão, tem contribuído com o aumento vertiginoso de crises envolvendo o orçamento das pessoas tomadoras de crédito.

Atualmente, verifica-se o crescimento de um fenômeno, denominado superendividamento – ou sobreendividamento, conforme estabelece a doutrina européia -, cuja repercussão no âmbito social despertou a proteção legislativa em alguns países desenvolvidos, notadamente na França e em Portugal.

Ressalte-se que o crédito exerce um papel importante para o desenvolvimento da economia de um país, sendo um fator intrínseco ao crescimento econômico e uma ferramenta imprescindível para ascensão dos cidadãos a um patamar superior da escala social. Todavia, não se pode olvidar, ao tratar sobre o crédito, dos riscos existentes em seu emprego, sendo deveras pertinente a lição do Professor Geraldo de Faria Martins Costa (2002, p. 89):

O crédito, apresentado como uma possibilidade para todos os consumidores de ter acesso aos produtos oferecidos pela sociedade da abundância, se transforma em um mecanismo de exclusão social. Em um flagelo que provoca a pobreza e a miséria.

Com o fito de melhor compreensão acerca do tema, deve-se formular o conceito do superendividamento, recorrendo, para tanto, aos ensinamentos da iluminada Professora Cláudia Lima Marques (2006, p. 256):

O superendividamento pode ser definido como a impossibilidade global de o devedor pessoa física, consumidor, leigo e de boa-fé, pagar todas as suas dívidas atuais e futuras de consumo (excluídas as dívidas com o Fisco, oriundas de delitos e de alimentos).

A conclusão que se estabelece com a definição acima, permite aduzir que o superendividamento é um estado de incapacidade econômica restrita às pessoas naturais, posto que as pessoas jurídicas se sujeitam às disposições estabelecidas em legislação específica – Lei 11.101/2005. Não englobando dívidas contraídas com o Fisco, oriundas de delitos e/ou de alimentos, já que a natureza especial destas situações impede a vinculação com o superendividamento.

Ao trazer o enfoque debruçado acerca do endividamento excessivo da população e suas conseqüências nefastas ao mercado de consumo, de que há a imprescindível necessidade de formalizar um corpo normativo específico para enquadrar o tema, em razão de o Código de Proteção e Defesa do Consumidor não contemplar, em seu bojo, disposições próprias ao fenômeno.

Ressalte-se que não se quer reverenciar o mau pagador, ou mesmo proteger o calote, pelo contrário, o estudo do superendividamento sugere uma tentativa de buscar alternativas para evitar o flagelo social, além de promover iniciativas que importem o tratamento das pessoas já afetadas pelo acúmulo de dívidas, preconizando, o disposto no art. 4º, VIII, do CDC, in verbis:

Art. 4º A Política Nacional das Relações de Consumo tem por objetivo o atendimento das necessidades dos consumidores, o respeito a sua dignidade, saúde e segurança, a proteção de seus interesses econômicos, a melhoria da sua qualidade de vida, bem como a transparência e harmonia das relações de consumo, atendidos os seguintes princípios:

VIII – estudo constante das modificações do mercado de consumo. (destaques nosso)

O estudo acerca do sobreendividamento deve ser pautado, ademais, sobre o aspecto do interesse existente pelo fornecedor, em evitar a ruína do devedor, tendo em vista que, dentre os efeitos decorrentes do superendividamento, destaca-se a retirada completa do sujeito passivo do mercado de consumo.

O acesso ao crédito de modo simplificado, fácil e descontrolado, trouxe como conseqüência os excluídos do mercado de consumo, os quais podem ser diferenciados em superendividado ativo e passivo, consoante distinção elaborada pela doutrina alienígena, cujos conceitos definem o superendividado ativo como sendo aquele consumidor que contribui para a formação do endividamento excessivo, ou seja, figura-se como aquele consumista compulsório.

A característica principal e emblemática do superendividado ativo consiste na atitude voluntária do sujeito, que compromete o orçamento familiar.

Quanto aos superendividados passivos, pode-se defini-los como consumidores que, em razão do surgimento de determinadas circunstâncias imprevisíveis da vida - tais como desemprego, doenças, nascimento de filho, dentre outros -, contraem dívidas excessivas, ou seja, inexistem atos deliberados pelo endividado para contribuir com o acúmulo de débitos.

Não obstante o superendividamento coexistir no seio da coletividade brasileira, o assunto ainda não recebeu a devida atenção por parte da doutrina jurídica, sendo, portanto, um contraponto aos países desenvolvidos, onde o tema já se tornou objeto de legislação específica, embora o problema da inclusão social, nestes locais, não represente um aspecto aflitivo.

A ausência de legislação específica obriga a utilização pelo julgador dos diversos meios de integração da norma – por exemplo, costumes e eqüidade -, a interpretação extensiva do dispositivo normativo, além de invocar o ‘diálogo das fontes’, teoria desenvolvida por Erik Jayme, aplicando-se, assim, uma análise sistemática do ordenamento jurídica.

Outrossim, os diversos princípios explícitos e implícitos, carreados no Código de Defesa do Consumidor, desempenham relevantes conseqüências à atividade interpretativa do julgador, além de limitar a atuação do legislador, evitando a alteração da essência do corpo normativo.

No que tange à questão do superendividamento, o Código de Defesa do Consumidor não cumpre com o seu papel, qual seja, de harmonizar as pretensões das figuras que compõem a relação de consumo.

Convém mencionar que a Defensoria Pública, cuja previsão inserida no art. 134 da Constituição Federal de 1988, empreende papel primordial para a efetivação do princípio constitucional do acesso à justiça – art. 5º, LXXIV, da CF/88 -, carregando dentre as matérias institucionais a assistência do consumidor carente, em consonância com o art. 5º, I, da lei consumerista.

Nessa linha, as Defensorias Públicas no Brasil, ao longo dos anos, vêm desenvolvendo diversas atividades com o propósito de divulgar à comunidade jurídica acerca do fenômeno do superendividamento, cujo âmago propõe estudar o respectivo assunto e, por conseguinte, o as de dividamento, discutindo soluçl, avocando como matalidades sociais que constituem o fundamento de validade da libdiscutir propostas para a busca de soluções. Destaca-se, em especial, a realização do III Seminário Internacional Defensoria Pública e a Proteção do Consumidor, evento que estabeleceu a “Carta de Fortaleza”, instrumento que preleciona, dentre outras premissas, a necessidade de se combater a ruína civil dos consumidores, conforme se depreende abaixo:

O superendividamento é fenômeno de ordem mundial, ainda sem legislação específica no Brasil, decorrente da oferta irresponsável do crédito, que leva à ruína do consumidor, com sérios prejuízos à sociedade.

Os defensores públicos devem promover medidas judiciais e extrajudiciais para combater o superendividamento, tais como realizar termos de ajustamento de conduta (art. 113, CDC c/c art, 5º, §6º, da Lei 7.347/85) e promover mediações entre o devedor e seus credores, fomentando, sobretudo, o parcelamento da dívida, com base no dever de cooperação do fornecedor, a fim de resguardar o mínimo existencial necessário à preservação da dignidade da pessoa humana.

Cumpre destacar os trabalhos desenvolvidos notadamente pela Defensoria Pública do Estado do Rio Grande do Sul, onde foram promovidas pesquisas sobre o perfil dos superendividados, conduzindo à atuação mais eficiente do órgão citado. Outrossim, impende mencionar a criativa e salutar iniciativa desenvolvida por Karen Bertoncello, magistrada gaúcha, ao idealizar e promover a produção de cartilhas cujo teor apregoa medidas, que visam a evitar o endividamento excessivo dos consumidores.

Destarte, saliente-se o surgimento da Comissão de Defesa do Consumidor Superendividado, criada no âmbito do Núcleo de Defesa do Consumidor - NUDECON -, na Defensoria Pública do Rio de Janeiro, tendo como intuito principal a composição de acordos entre a vítima de consumo e seus respectivos credores. Ademais, a presença de órgão específico na mencionada instituição denota a relevância social que envolve a matéria.

A proposta inovadora exercida pelos órgãos da Defensoria Pública permite o desenvolvimento de teses jurídicas em busca da orientação ao consumidor superendividado  possibilitando a conscientização do meio jurídico a respeito do assunto, bem como a propositura de ações coletivas, em substituição ao remédio paliativo configurado nas ações revisionais individuais.

Impende mencionar os esforços corporativos desenvolvidos pelas Defensorias Públicas do Rio de Janeiro, Distrito Federal e Tocantins que desenvolvem projetos com o objetivo de intermediar as negociações envolvendo os consumidores superendividados e seus credores.

A questão do superendividamento figura como um desafio aos Defensores Públicos já que seus assistidos figuram como a camada populacional de maior propensão ao endividamento excessivo a exigir avanços no que tange ao aperfeiçoamento das práticas desenvolvidas pelas Defensorias Públicas, bem como replicar métodos para evitar a propagação do mencionado fenômeno.


Notas e Referências:

COSTA, Geraldo de Faria Martins da. Superendividamento: a proteção do consumidor de crédito em direito comparado brasileiro e francês. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006.

FRADE, Catarina; MAGALHÃES, Sara. Sobreendividamento, a outra face do crédito. In: CAVALLAZZI, Rosângela Lunardelli e MARQUES, Cláudia Lima (Coord.) Direitos do consumidor endividado: superendividamento e crédito. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006 (Biblioteca de direito do consumidor; v. 29).

MARQUES, Cláudia Lima. Contratos no código de defesa do consumidor. 5. Ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006.


Fernando José Sampaio Lobo. . Fernando José Sampaio Lobo é Defensor Público no Estado Pará. . . .


Imagem Ilustrativa do Post: A busy evening rebuilding a SAN with the help of HTC and Android. // Foto de: opopododo // Sem alterações

Disponível em: https://www.flickr.com/photos/opopododo/6898631583

Licença de uso: Licença padrão do YouTube


O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.

Sugestões de leitura