O Professor Alberto Binder, da Universidade de Buenos Aires, é um dos maiores entusiastas das reformas processuais penais na América Latina. Atual Presidente do Instituto de Estudios Comparados en Ciencias Penales y Sociales (INECIP)[1], tem se dedicado há anos a defender reformas processuais penais em nossa região, a fim de que sejam, em definitivo, abandonadas as bases de um processo penal de modelo inquisitivo e implementado verdadeiramente (e não somente com reformas legislativas e mudanças de códigos) um processo penal de raiz acusatória.
No texto “El cambio de la justicia penal hacia el sistema adversarial. Significado y dificultades”[2], o Mestre argentino analisa em que consiste, efetivamente, e sob a sua ótica, uma reforma processual penal – rumo ao sistema adversarial -, suas naturais e estruturais dificuldades, muitas delas que explicam porque o Brasil é o único País na América Latina que continua com um Código de Processo Penal dos anos 40, de feição nitidamente inquisitorial.[3]
Neste trabalho, Binder procura mostrar, de uma maneira absolutamente didática, as razões pelas quais os países latino-americanos procuraram ao longo dos últimos anos, modificar o seu sistema processual penal, inaugurando o que ele mesmo identifica como “la nueva justicia penal de América Latina”, excluindo-se o Brasil, por óbvio!
Para isso, logo no início, deixa claro que o sistema inquisitório representa um modelo completo de administração da Justiça, forjado ao longo de muitos séculos, enraizando-se em nossa cultura jurídica.
Esclarece, inclusive, que este modelo (inquisitorial) teve várias formas, desde as mais antigas (como na Espanha e na Alemanha, na época da caça aos hereges e às bruxas), até as mais modernas (oriundas do modelo napoleônico), que foram incorporando algumas regras e princípios do sistema acusatório (como a oralidade, por exemplo), mas sem mudar, de forma definitiva e ampla, “sus reglas básicas de funcionamiento.”
Quais seriam, então, estas “regras básicas de funcionamento” que precisam finalmente ser modificadas? Seriam quatro as principais regras, a saber:
- a) A primeira diz respeito ao papel das partes no processo penal, pois no sistema adversarial, ao contrário do inquisitivo, é absoluta, necessária e visível a divisão das funções dos Juízes, do Ministério Público e da Defesa. Assim, “el papel de las partes en la preparación del caso que deberá juzgar el juez es determinante y el juez debe mantener un papel imparcial.” O oposto, portanto, do que ocorre no processo penal brasileiro, onde o Juiz tem um papel de absoluto protagonismo judicial (e midiático), bastando citar, por todos, o ex-Juiz Federal, Sérgio Moro, hoje Ministro da Justiça.
Assim, por exemplo, “el modo como el juez debe comprobar la existencia de lo que le proponen los acusadores está sujeta a reglas de conocimiento que constituyen el juicio oral y público. En primer lugar, de poco servirían tantos resguardos si el juez ya tiene tomada su decisión antes de conocer las pruebas de los acusadores, tiene preconceptos o prejuicios acerca de lo que debe decidir. Por ello el juez debe ser imparcial, debe actuar como tal, y debe construir su decisión sobre la base de lo que las partes le presentan en la sala de audiencia y el observa directamente (inmediación).”
Em segundo lugar, no sistema adversarial as decisões devem ser tomadas em um julgamento público e sob o crivo do contraditório, devendo as partes, imediatamente, apresentar suas respectivas provas e debater seus argumentos. Portanto, o julgamento é oral e público!
Ademais, neste sistema, reconhece-se o acusado (pouco importa o nome que se lhe dê) como um sujeito de direitos, e não um mero objeto do processo. Aqui, à vítima também se reconhece uma série de direitos.
Por último, ao contrário de um processo penal burocratizado, escrito e dispendioso, no sistema adversarial “lo importante es que el caso tenga una respuesta del sistema judicial, ya sea por vías alternativas (no punitivas) como a través de un adecuado juzgamiento”, pois “la función de la justicia penal es dar respuesta, no tramitar expedientes (papeles).” Veja-se, por exemplo, aqui no Brasil a nossa investigação preliminar realizada pela Polícia (por meio do velho Inquérito Policial, cujas origens remontam ao Império) ou pelo Ministério Público (a partir dos chamados Procedimentos Investigatórios Criminais, de duvidosa constitucionalidade[4]).
Em seguida, o estudo do Mestre argentino aponta quatro “ideias” necessárias para que logre êxito a reforma do processo penal.
Em primeiro lugar, é preciso que a reforma da Justiça penal seja vista como um verdadeiro “cambio de prácticas”, ou seja, não são suficientes apenas mudanças legislativas, mas, para além disso, é necessário que haja “nuevas formas de intervención” que permitam “que las personas cambien sus formas de actuar según las reglas del modelo adversarial.” Assim, “el nuevo sistema de justicia penal también será un conjunto de prácticas.”
Disso resultará um autêntico “duelo de prácticas” a ser travado entre o velho e o novo, entre as antigas tradições inquisitoriais e as novas formas de atuação, desde uma concepção acusatória do processo penal. Neste sentido, os “operadores judiciales” precisam ter consciência “de que cada una de sus prácticas cotidianas tiene una enorme influencia en la configuración del nuevo sistema.”
A partir desse combate entre o velho e o novo, e após algumas dificuldades naturais de ajuste e adequação, adquire-se “un punto de equilíbrio entre lo viejo y lo nuevo.”
Por fim, como uma quarta “ideia”, é preciso que se tenha em consideração que a implementação da reforma se inicia no primeiro dia de vigência do novo Código de Processo Penal (e demais leis processuais), porém dura vários anos, até que o sistema efetivamente adquira seu primeiro ponto de equilíbrio. Como este inicial ponto de equilíbrio tem se mostrado, na prática, de difícil alcance (pelo excessivo peso que continuam ter as práticas inquisitivas), é necessário que o processo de implementação seja permanentemente monitorado, devendo “seguir de cerca lo cotidiano.”
Binder propõe, então, para vencer o duelo e consolidar a implementação do novo sistema, a adoção do que ele chama de uma contracultura adversarial ou acusatória, consistente em “buscar que todo el sistema actúe conforme las reglas adversariales”, de uma tal maneira que “la nueva cultura adversarial debe ser con el tiempo la nueva cultura dominante”, devendo, portanto, vencer “el duelo de prácticas.”
Para isso, porém, é indispensável que sejam adotadas determinadas regras de atuação cujo efeito “contracultural” é maior, especialmente na etapa inicial, a fase de implementação. Neste sentido, o jurista aponta as seguintes regras: a) Audiências públicas e sob o crivo do contraditório; b) Controle da sobrecarga de trabalho na Justiça penal; c) Uso da informação; d) Defesa pública; e) Participação da vítima.
Logo, um novo sistema exige que “las decisiones judiciales (o la gran mayoría de ellas) se tomen en audiencias orales donde las partes litiguen y presenten, cuando sea necesario y según el tipo de decisión, su prueba y sus argumentos”, de tal sorte que “la sala de audiencia sea el lugar de trabajo del juez y de las partes.”
Também se mostra imprescindível - visto que um dos fatores que mais influenciam na manutenção da tradição inquisitorial é exatamente a sobrecarga de trabalho permanente do sistema de Justiça penal – que a nova legislação possua “ferramentas contraculturais” que permitam “regular la carga de trabajo con respuestas de alta calidad (reparación, suspensión a prueba, procedimientos abreviados, etc.).”
Também é essencial o uso da informação pelos “operadores judiciales”, de tal modo que eles saibam e tenham em mãos dados seguros “sobre el desempeño del sistema en su conjunto y de cada sector en particular”, evitando que eles, como ocorre no sistema inquisitorial, “se desentiendan de los resultados.”
Necessário também que haja uma Defesa Pública forte, organizada, autônoma e preparada, especialmente “dadas las condiciones socioeconómicas del país y las condiciones generales del ejercicio de la abogacía”, a fim de que possa satisfatoriamente enfrentar “a los desafios que le pone delante a los fiscales.”
Como quinta regra, Binder aponta a participação da vítima, inclusive “cuando asume su papel de acusador particular”, como outro fator que “empuja al sistema hacia sus formas adversariales.” Ele defende, igualmente, que haja uma relação mais estreita entre o ofendido e o Ministério Público, até para que se neutralize “tendencias inquisitoriales de la persecución penal.”
Aliás, a participação da vítima no processo penal é tema atual e tem sido motivo de inúmeros trabalhos doutrinários, como observou outro jurista argentino, o Professor Alberto Bovino:
“Después de varios siglos de exclusión y olvido, la víctima reaparece, en la actualidad, en el escenario de la justicia penal, como una preocupación central de la política criminal. Prueba de este interés resultan la gran variedad de trabajos publicados recientemente, tanto en Argentina como en el extranjero.” Ademais, “se señala que con frecuencia el interés real de la víctima no consiste en la imposición de una pena sino, en cambio, en ‘una reparación por las lesiones o los daños causados por el delito’”[5]
Na Itália, Michele Correra e Danilo Riponti, também anotaram:
“Il recupero della dimensione umana della vittima, molto spesso reificata, vessata, dimenticata da giuristi e criminologi in quanto oscurata da quella cosí clamorosa ed eclatante del criminale, soddisfa l’intento di rendere giustizia a chi viene a trovarsi in una situazione umana tragica ed ingiusta, a chi ha subito e subisce e danni del crimine e l’indifferenza della società.”[6]
Aqui, neste ponto, penso ser preciso uma maior reflexão – incabível neste trabalho -, pois a conveniência da intervenção aguda do ofendido no processo penal é de toda questionável, já que admitir a intervenção do particular seria aceitar que “su papel en el proceso parece estar teñido de una especie de sentimiento de venganza”.[7]
Analisando o Direito português, por exemplo, Germano Marques da Silva esclarece que a “intervenção dos particulares no processo penal é por muitos contestada por poder constituir um factor de perturbação, pois não é de esperar deles a objectividade e a imparcialidade que devem dominar o processo penal, mas é também por muitos outros considerada como uma excelente e democrática instituição e assim o entendemos também”.[8] Para ele, a vítima, quando intervém no processo penal, é um mero “colaborador do Ministério Público na promoção da aplicação da lei ao caso e legitimado em virtude da sua qualidade de ofendido ou de especiais relações com o ofendido pelo crime ou da natureza deste”.[9]
Por fim, Alberto Binder conclui o seu texto tratando da “centralidad del juicio en el sistema adversarial”, consistente exatamente na necessidade de “modificar el modo como la justicia penal participa en la gestión de los conflitos.” Esta “centralidad del juicio” concebe o julgamento oral, público e contraditório, como elemento fundante e fundamental para a configuração de um sistema adversarial, tendo como consequência o fato de “que todo imputado siempre tendrá derecho a que antes de aplicarle una sanción penal se realice un juicio oral, público y contradictorio según las reglas que hemos reseñado.”
Somente tendo esta percepção, poderemos abandonar de uma vez por todas “el modo inquisitorial que con sus trámites, sus formalismos, su descuido por las personas, su secreto y el desprecio por la actividad de las partes, ha demonstrado ser tanto un sistema ineficiente como arbitrário.”
Infelizmente, não creio que tenhamos no Brasil, nada obstante o esforço e o sacrifício pessoal de muitos – cito aqui, por todos, o Professor Jacinto Nelson de Miranda Coutinho -, uma reforma que represente uma mudança substancialmente importante no processo penal brasileiro. Ao contrário, diria que “em tempos sombrios”[10] como os que certamente viveremos, uma reforma na Justiça criminal brasileira representará uma verdadeira e triste involução processual penal.
Notas e Referências
[1] “El Instituto de Estudios Comparados en Ciencias Penales y Sociales (INECIP) es una fundación que inició sus actividades en el año 1989 en Buenos Aires, Argentina, con la misión de contribuir a la consolidación y el progresivo fortalecimiento del Estado de Derecho en los países de América Latina y del Caribe. Para ello, ha trabajado intensamente en el campo específico de los procesos de transformación de los sistemas judiciales y de los sistemas penales ligados a la transición democrática, promoviendo –desde una perspectiva científica- la defensa de los derechos fundamentales de las personas. A través de esta tarea, el INECIP no sólo ha forjado los cimientos de lo que es hoy la Red Latinoamericana y del Caribe para la Democratización de la Justicia, sino que ha alcanzado reconocimiento a nivel regional e internacional.” Seus objetivos “institucionales se encuadran en el campo de los procesos de transformación de la administración de justicia, y más específicamente en la construcción de un sistema penal menos violento y más respetuoso de la dignidad humana. Los mismos pueden resumirse en: a) Contribuir a la consolidación y el progresivo fortalecimiento del Estado de Derecho en los países de América Latina, trabajando intensamente en el campo específico de los procesos de transformación de los sistemas judiciales y de los sistemas penales ligados a la transición democrática de los países de la región; b) Mejorar los instrumentos legales que ayuden a garantizar el pleno respeto de los derechos fundamentales, y que contribuyan a fortalecer el sistema de garantías como forma de construir herramientas que eliminen o limiten el avance del autoritarismo dentro de las instituciones judiciales en general y del sistema penal en particular; c) Construir una perspectiva científica rigurosa y comprometida con los derechos fundamentales de las personas, formando constantemente profesionales que reúnan un elevado nivel técnico con un compromiso probado en la lucha contra cualquier forma de autoritarismo y violencia institucional; d) Consolidar una red fluida de intercambio regional, a través de la firma de convenios de cooperación e intercambio con distintas organizaciones no gubernamentales que tienen objetivos afines a los nuestros, pertenecientes a los demás países de América Latina, que permitan la elaboración y ejecución de proyectos conjuntos.” (http://inecip.org/institucional/, acessado em 31 de dezembro de 2018).
[2] Este texto encontra-se disponível na obra coletiva “Código del Proceso Penal – Reflexiones sobre el nuevo sistema procesal penal en Uruguay”, Montevidéu: Universidad de Montevideo – Facultad de Derecho, 2018, páginas 11 a 31.
[3] Este Código, elaborado sob a égide e “os influxos autoritários do Estado Novo”, decididamente não é, como já não era “um estatuto moderno, à altura das reais necessidades de nossa Justiça Criminal”, como dizia José Frederico Marques. Segundo o Mestre paulista, “continuamos presos, na esfera do processo penal, aos arcaicos princípios procedimentalistas do sistema escrito. A oralidade ficou reservada apenas para o processo civil. O resultado de trabalho legislativo tão defeituoso e arcaico está na crise tremenda por que atravessa hoje a Justiça Criminal, em todos os Estados Brasileiros. A exemplo do que se fizera na Itália fascista, esqueceram os nossos legisladores do papel relevante das formas procedimentais no processo penal e, sob o pretexto de por cobro a formalismos prejudiciais, estruturou as nulidades sob princípios não condizentes com as garantias necessárias ao acusado, além de o ter feito com um lamentável confusionismo e absoluta falta de técnica.” (Elementos de Direito Processual Penal, Vol. I, Campinas: Bookseller, 1998, p. 108).
[4] CABRAL, Rodrigo Leite Ferreira. O acordo de não-persecução penal criado pela nova Resolução do CNMP. http://www.conjur.com.br/2017-set-18/rodrigo-cabral-acordo-nao-persecucao-penal-criado-cnmp; MOREIRA, Rômulo de Andrade. No país das Resoluções e Enunciados, quem precisa de lei. http://emporiododireito.com.br/no-pais-das-resolucoes-e-dos-enunciados-quem-precisa-de-lei-por-romulo-de-andrade-moreira/, acessados em 31 de dezembro de 2018.
[5] Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, n. 21, p. 422.
[6] “La Vittima nel Sistema Italiano Della Giustizia Penale – Un Approccio criminológico”, Padova, 1990, p. 144. Na doutrina estrangeira, também indicamos “De los delitos y de las víctimas”, obra coletiva com trabalhos de Claus Roxin, Julio Maier, Nils Christie, dentre outros.
[7] CATENA, Victor Moreno, Derecho Procesal Penal, Madrid: Editorial Colex, 1999, p. 250.
[8] Curso de Processo Penal, 3ª. ed., Lisboa: Verbo, vol. 1, 1996, p. 308.
[9] Ob. cit., p. 311.
[10] “A história conhece muitos períodos de tempos sombrios, em que o âmbito público se obscureceu e o mundo se tornou tão dúbio que as pessoas deixaram de pedir qualquer coisa à política além de que mostre a devida consideração pelos seus interesses vitais e liberdade pessoal. Os que viveram em tempos tais, e neles se formaram, provavelmente sempre se inclinaram a desprezar o mundo e o âmbito público, a ignorá-los o máximo possível ou mesmo a ultrapassá-los e, por assim dizer, procurar por trás deles – como se o mundo fosse apenas uma fachada por trás da qual as pessoas pudessem se esconder -, chegar a entendimentos mútuos com seus companheiros humanos, sem consideração pelo mundo que se encontra entre eles. Em tais tempos, se as coisas vão bem, desenvolve-se um tipo específico de humanidade.” (ARENDT, Hannah, “Homens em Tempos Sombrios”, São Paulo: Editora Schwarcz Ltda., 2010, p. 19).
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