AS ORIGENS JUSNATURALISTAS DA CONCEPÇÃO DE SOBERANIA SOB A PERSPECTIVA DE LUIGI FERRAJOLI: SOCIEDADE DE ESTADOS SOBERANOS NO PENSAMENTO DE FRANCISCO DE VITORIA  

30/11/2021

 

Nesse artigo apresentar-se-á as principais ponderações realizadas por Luigi Ferrajoli no livro “La sovranità nel mondo moderno: nascita e crisi dello Stato nazionale[1], no que concerne ao surgimento da noção de soberania sob a ótica jusnaturalista de Francisco de Vitoria.

Das duas dimensões de soberania - interna e externa - a teoria da soberania externa foi a primeira a ser desenvolvida, juntamente com o nascimento do direito internacional moderno, bem antes das doutrinas da soberania interna de Bodin e de Hobbes[2].

Nessa toada, Ferrajoli considera que Francisco de Vitoria desenvolveu um papel proeminente na fundação do direito internacional moderno, ao apresentar suas Relectiones (Preleções), na Universidade de Salamanca, nos anos de 20 e 30 do século XVI, ao contestar todos os títulos de legitimação atribuídos pelos espanhóis as suas conquistas de novos territórios, fundamentalmente sobre o ius inventionis (direito de descobrimento), o qual foi invocado por Colombo, com o fundamento de ter “descoberto” os índios[3].

A ideia de uma soberania universal do Império e da Igreja; o fato de que os índios fossem infideles (infiéis) e pecadores; sua submissão voluntária, de cuja espontaneidade cabia duvidar; e, finalmente, a ideia de uma concessão especial de Deus aos espanhóis, concessão esta que, ironiza Vitoria, parece bastante improvável por seu contraste com o direito comum e com as Sagradas Escrituras[4].

Visando contrapor esses títulos ilegítimos, Vitoria reelabora velhas teorias e cria os alicerces do direito internacional moderno e, concomitantemente, do conceito moderno do Estado como sujeito soberano. Para isso, funda-se na construção de três ideias basilares essenciais: a) a configuração da ordem mundial como sociedade natural de Estados soberanos; b) a teorização de uma série de direitos naturais dos povos e dos Estados; c) a reformulação da doutrina cristã da “guerra justa”, redefinida como sanção jurídica às iniuriae (ofensas) sofridas[5].

a) O elemento mais essencial dessa tese é o de reconhecimento da ruptura da antiga ideia universalista da communitas medieval, que se submetia ao domínio universal do imperador e do papa. A nova compreensão da ordem mundial como communitas orbis, isto é, uma sociedade de repúblicas ou Estados soberanos, igualmente livres e independentes uns dos outros, altera completamente o paradigma de percepção do cenário internacional. Para Vitória, no entanto, os Estados soberanos estão “sujeitos externamente a um mesmo direito das gentes e internamente às leis constitucionais que eles mesmos se deram”[6].

As teorias de Vitoria antecipam a futura doutrina do estado de direito, tanto no plano do direito interno, quanto no plano do direito internacional. Para o autor, os Estados são concebidos como ordenamentos, equiparando-os com o direito. Logo, as leis civis obrigam os legisladores e essencialmente os reis. Ademais, fundamenta-se sua teoria na democracia do soberano – soberania popular -, consequentemente, tem-se que o príncipe recebe sua autoridade da república, desse modo, deve usá-la em prol do bem comum dos cidadãos[7].

Destaca-se, ainda, que o “direito das gentes” submete os Estados em suas relações externas, não se limitando apenas aos pactos, mas também como um direito cogente com força de lei. Nesse tema, Vitoria considera a existência de uma república universal das gentes, além de considerar a humanidade como um novo sujeito de direito:

O mundo inteiro, que de alguma forma é uma república, detém o poder de fazer leis justas e convenientes a todos, como o são as do direito das gentes... E não é lícito que um único reino recuse ser regido pelo direito das gentes: pois esse direito adveio da autoridade do mundo inteiro[8].

b) A visão do mundo como sociedade natural de Estados livres e independentes fundamenta o segundo pilar dessa teoria: “Existe, portanto, uma sociedade e uma comunhão natural entre os povos, cada um dos quais tem o direito de entrar em relação com os outros. Pareceria uma concepção da ordem jurídica mundial, informada não apenas pela igualdade, mas também pela fraternidade universal”[9].

Contudo, dessa concepção, Vitória estabelece uma série de outros direitos das gentes, as quais merece críticas, pois, conforme analisa Ferrajoli, a “aparente universalidade é desmentida pelo seu caráter ostensivamente assimétrico”[10], ao buscar “oferecer uma nova legitimação à conquista e, de outro, fornecer o alicerce ideológico do caráter eurocêntrico do direito internacional, dos valores colonialistas e até mesmo das suas vocações belicistas”[11]. Dentre os direitos das gentes elencados por Vitoria, destaca-se, a título de exemplo, o ius occupationis (direito de ocupação) sobre as terras incultas e sobre as coisas que os índios não coletam, como o ouro e a prata, o que demonstra que a aparente universalidade de direitos, em verdade, possui caráter ostensivamente assimétrico, em que somente os espanhóis podem exercê-los, enquanto os índios são somente os sujeitos passivos e as vítimas.

c) O terceiro ponto fundamenta-se no entendimento jurídico da comunidade internacional como sociedade natural de Estados soberanos, legitimando a denominada “guerra justa”, como instrumento sancionatório voltado a assegurar a efetividade do direito internacional. Mister ressaltar que essa ideia de legitimação da guerra, como forma de reparação das iniuriae, perdurou até o século XX, chegando, inclusive, até Kelsen[12]. Amparava-se essencialmente na falta de um tribunal internacional capaz de pacificar e resguardar questões internacionais.

Nota-se, assim, que ao estabelecer a ideia de uma “sociedade de Estados igualmente soberanos, porém sujeitos ao direito, a afirmação de uma série de direitos naturais desses Estados e a teoria da guerra justa como sanção”[13], os pensamentos de Vitoria fundamentam a base da doutrina da soberania estatal externa, assim como, de modo mais abrangente, da teoria internacional moderna, o que justifica a importância de conhecê-la e compreendê-la.  

 

Notas e Referências

[1] FERRAJOLI, Luigi. A soberania no mundo moderno: nascimento e crise do Estado nacional / Luigi Ferrajoli; tradução Carlo Coccioli, Márcio Lauria Filho; revisão da tradução Karina Jannini. São Paulo: Martins Fontes, 2002.

[2] Ibidem, p. 5.

[3] Ibidem, p. 6.

[4] Ibidem, p. 6.

[5] Ibidem, p. 7.

[6] VITORIA Apud FERRAJOLI, Luigi op. cit. p. 7.

[7] FERRAJOLI, Luigi, op. cit. p. 8-9.

[8] VITORIA Apud FERRAJOLI, Luigi op. cit. p. 9.

[9] VITORIA apud FERRAJOLI, Luigi op. cit. p. 10-11.

[10] FERRAJOLI, Luigi op. cit. p. 11.

[11] Ibidem, p. 10

[12] Ibidem, p. 13.

[13] Ibidem, p. 15.

 

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