As normas de conformidade tributária: o diagnóstico do grau de aderência ao cumprimento das obrigações tributárias e a graduação da multa.

20/06/2018

É de conhecimento de todos que a sonegação fiscal não representa somente um prejuízo ao caixa do ente tributante, que tem sua receita diminuída com esta prática, mas interfere negativamente no jogo da concorrência, vez que a omissão de pagamento de tributos pode resultar, pelo menos em curto prazo, em diminuição de custo de operacionalização da atividade produtiva sujeita à incidência tributária.

Instala-se, assim, uma tensão no mundo empresarial, em que o contribuinte cumpridor de suas obrigações tributárias não tolera as práticas de sonegação fiscal de seus concorrentes, temendo uma concorrência desleal. E neste cenário, o pior dos mundos é a contaminação desta tendência de evasão fiscal para um universo maior de contribuintes, como um mecanismo de defesa contra os efeitos desta concorrência desleal. Verdade ou não, esta é uma das justificativas muitas vezes anunciadas pelo contribuinte para explicar a sua pouca aderência às regras tributárias.[1]

Neste cenário de competitividade o contribuinte que se submete ao regramento tributário e suporta o ônus da concorrência desleal promovida por aqueles que reduzem seus preços na proporção dos tributos sonegados, sempre reivindicava um tratamento diferenciado por parte do fisco, como uma medida compensatória.

Antevendo a hipótese de uma necessária intervenção estatal  no desequilíbrio de concorrência, o constituinte prescreveu a possibilidade de lei complementar estabelecer critérios especiais de tributação (art. 146-A).[2] O dispositivo constitucional abre ainda a possibilidade de a União poder estabelecer, por lei, normas de igual objetivo, que é de intervir nas forças de desequilíbrio da concorrência. A preocupação revelada pela norma constitucional é a de que as obrigações tributárias sejam absorvidas num ambiente de neutralidade na abordagem concorrencial no ambiente de livre mercado.

Neste panorama o Estado de São Paulo editou a LC nº 1.320/18[3] para estabelecer princípios e regras de estímulo à conformidade tributária “Nos Conformes”, estabelecendo um ambiente de confiabilidade recíproca entre o fisco e contribuinte, “fair play”.

Neste programa de conformidade o contribuinte é classificado segundo o critério de aderência ao cumprimento das obrigações tributárias, recebendo um tratamento do fisco com base nesta classificação, o que estimulará a observância da legislação tributária, ao mesmo tempo em que irá desencorajar a postura de evasão fiscal. Haverá uma espécie de graduação de “bondades”, denominadas pela Lei de “contrapartidas”  concedidas pelo  fisco ao contribuinte que se mantiver fiel ao cumprimento de suas obrigações tributárias.

Essa nova postura do fisco paulista deverá ser seguida por outros entes tributantes (União, Estados, Distrito Federal e Municípios), por atender a uma reivindicação antiga dos contribuintes cumpridores de suas obrigações tributárias. Todavia, haverá de se enfrentar, por certo, certas dificuldades operacionais para a implantação deste modelo de relacionamento do fisco com o contribuinte; não se descartará as demandas judiciais por aqueles que se sentirem prejudicados na proposição do “ranking” dos contribuintes, segundo a sua aderência ao cumprimento das normas tributárias. 

As reflexões deste artigo, em apoio a essa nova postura fiscal que está se desenhando, pretende trazer um novo componente para esta nova orientação: o grande número de lançamentos tributários decorrentes de divergência interpretativa entre o fisco e o contribuinte, conduta de menor potencial lesivo em que o contribuinte é vítima do próprio sistema tributário excessivamente complexo. É fato que em grande parte as discussões nos tribunais administrativos e judiciais são de abordagem interpretativa da norma.  

Ainda que se aceite o brocardo, segundo o qual, ninguém pode se escusar do cumprimento da lei alegando o seu desconhecimento, o fato é que o sistema tributário brasileiro é de uma complexidade exacerbada, confuso, provocando discussões inglórias sobre diversos temas, criando o terreno fértil para as mais variadas interpretações, resultando, por fim, na odiosa insegurança jurídica. Não é preciso dizer que o grande número de autuações que decorrem de erros de interpretação normativa é a revelação desta complexidade do sistema. Serve de exemplo um caso em que, um determinado contribuinte foi frustrado na sua intenção de pagar o ISS. A razão era a seguinte: tratava-se de um contribuinte que residia num Município e prestava os serviços em outro. Em razão da indefinição das Leis Complementares nºs. 116/2003 e 157/2016, quanto à definição do local do pagamento do tributo, ambos os Municípios não se julgavam sujeitos ativos com relação ao fato tributário. Nenhum deles queria receber o pagamento.  

Segundo TMF Group, que é uma consultoria internacional direcionada para o desenvolvimento de negócios, numa lista de 94 países, o Brasil está em segundo lugar na complexidade de normas com relação às obrigações contábeis e fiscais. Na sua frente apenas a Turquia.

Há de se estabelecer uma graduação de sanções levando-se em consideração as condutas fraudulentas, atos de conluio, os infratores contumazes, que constituem um alto poder lesivo à ordem tributária, e de outro lado, as infrações praticadas, de forma isolada, decorrentes da indevida aplicação da lei tributária, por erro de interpretação da legislação, segundo a ótica do fisco. Se a administração tributária não foi capaz de produzir um sistema normativo com a clareza necessária para a compreensão dos contribuintes, há de impor a sanção com certo temperamento, no caso de o entendimento do contribuinte não se alinhar com a orientação fiscal.

A denominada responsabilidade objetiva prescrita no art. 136, do CTN[4], tem aplicação para a determinação da infração, mas não cria nenhum obstáculo para qualificar a conduta segundo o critério do potencial lesivo à ordem tributária e graduar as sanções.  

É usual a constatação de legislações tributárias que não fazem esta distinção entre as motivações  das infrações para dimensionar a pena pecuniária. No campo do ICMS, por exemplo, pelo menos em alguns Estados, se o contribuinte não submeter determinada operação à incidência tributária, a multa cominada para a infração é única. Em geral é de 100% sobre o valor do imposto, dependendo da legislação local. O sistema repressivo não leva em consideração a qualificação da conduta: se ato doloso, se é prática contumaz ou se a infração decorreu de uma divergência interpretativa entre o agente do fisco e o contribuinte.

A nova orientação de conformidade tributária somente estará completa se avançar um pouco mais nos critérios de qualificação dos contribuintes. Diante de condutas dolosas, premeditadas, reincidentes (devedores contumazes) a reação estatal deve ser severa, impondo multas de impacto para desestimular esta orientação ilícita. Em certa medida, dentro dos limites estabelecidos pela legislação e jurisprudência, deve o fisco até lançar mão de sanções políticas, restringindo direitos no plano tributário. Em outra situação, em que ficar evidenciada uma infração cuja materialidade possa resultar de interpretação da legislação em desarmonia com a do fisco, há de se suavizar as medidas repressivas, cabendo ao fisco reconhecer a sua parcela de culpa na produção de um sistema injustificadamente complexo. Nesta hipótese, há de se cogitar em cobrança  de apenas verba moratória, sem o perfil punitivo. Cabe ao agente do fisco, autoridade lançadora, com base nos elementos de sua investigação fiscal, identificar a presença de dolo, fraude, concluído ou a prática reiterada de infrações, para qualificar a conduta (dolosa ou não) e aplicar a multa cabível. 

Portanto, sugere-se que as normas complementares que vierem a ser editadas com base no art. 146-A, da Constituição Federal, para interagir, com normas tributárias, no controle do desequilíbrio da concorrência, levem em consideração, para efeito de diagnosticar o grau de aderência do contribuinte às normas tributárias, a motivação da prática da infração: se decorrer de ato doloso, fraudulento ou de um simples desalinhamento de interpretação normativo do contribuinte em relação ao entendimento do fisco.      

Notas e Referências

[1] Segundo o Banco Mundial, o Brasil é o segundo lugar na evasão fiscal, só perdendo para a Rússia (dados de 2011).

[2] “Art. 146-A. Lei complementar poderá estabelecer critérios especiais de tributação, com o objetivo de prevenir o desequilíbrio da concorrência, sem prejuízo da competência  de a União, por lei, estabelecer normas de igual objetivo.”   

[3] A lei complementar referida na Constituição Federal é de abrangência nacional. Somente se complementa a Constituição com lei complementar nacional. A dúvida é se a lei complementar paulista se insere é conciliável com a ordem constitucional.   

[4] “Art. 136. Salvo disposição de lei em contrário, a responsabilidade por infrações à legislação tributária independe da intenção do agente ou do responsável.....”.

 

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