As Mulheres Não Estão Mais Atrás Da Porta

25/09/2020

 

Coluna Direito e Arte / Coordenadora Taysa Matos

Talvez uma das interpretações mais marcantes do nosso cancioneiro popular seja da música de Chico Buarque e Francis Hime, Atrás da Porta, na voz potente e arrebatadora de Elis Regina.

Em seu livro Noites Tropicais, Nelson Motta infere que toda a emoção que transborda da voz de Elis está diretamente relacionada à ruptura então recente de seu casamento com Ronaldo Bôscoli, aliada a um nascente amor por César Camargo Mariano, que lhe acompanhou ao piano.

A melodia de Hime, que começa suave, segue num crescente e depois suaviza novamente, casa com perfeição à letra de Chico, composta em duas etapas, que revela o carrossel de emoções que, via de regra, permeiam as separações amorosas.

Chico, de quem sou fã confessa, em significativa parte do seu trabalho, assume – para usar uma expressão contemporânea – um lugar de fala feminino, mas que serve também de representação histórica, não exatamente de como viviam as mulheres, mas como, de fato, elas eram vistas pela arte, espelho da cultura.

Nesta canção, a personagem é uma mulher que manifesta o espanto e a incredulidade com a partida de seu parceiro, reagindo de forma desesperada e até violenta com ele e consigo mesma:

Eu te estranhei, me debrucei / Sobre o teu corpo / E duvidei / E me arrastei / E te arranhei / E me agarrei nos teus cabelos / No teu peito / Teu pijama / Nos teus pés

Os versos, compostos bem antes da aprovação da lei do divórcio, refletem um período em que o peso da separação recaía de forma inclemente sobre a mulher - cuja existência pressupunha uma vida conjugal a lhe conferir boa reputação. Se o casamento era desfeito, certamente tratava-se de uma histérica ou devassa, ou péssima dona de casa, que não foi suficientemente competente para segurar o marido. A desquitada, mal vista socialmente, automaticamente se tornava má influência e era privada do convívio com outras famílias “de bem”.

Sem repercutir tais questões, a letra de Chico, contudo, reforça o estereótipo da mulher passional e vingativa, capaz de qualquer coisa para infernizar a vida do ex-marido:

Dei pra maldizer o nosso lar / Pra sujar teu nome, te humilhar / E me vingar a qualquer preço / Te adorando pelo avesso

Embora o divórcio no país já vigore há mais de 40 anos e os adjetivos “separada” e “divorciada” não comprometam reputações como antes, a figura da mulher maquiavélica e vingativa ainda se faz muito presente nos juízos de família – apesar de serem elas que liderem os pedidos de dissolução do casamento, numa proporção superior a 2:1, segundo o IBGE. Como já tive oportunidade de expressar em outro texto, embora sejam as mulheres aquelas retratadas como manipuladoras, vingativas e ressentidas, são elas que estão apanhando e morrendo, sem qualquer seletividade, vítimas de ex-cônjuges e ex-companheiros que não aceitam a separação.

Que a bela melodia de Hime, combinada com as emocionais palavras de Chico na linda voz de Elis possa ser apreciada como é: arte. E que a arte nos aponte uma resposta, não apenas como espelho da vida, mas, sobretudo, como ponto de inflexão.

 

 

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