As mulheres na tradição católica

01/02/2023

Em Alexandria, no século 3 antes da Era Comum, foi edificado um amplo e luxuoso prédio conhecido como Museu, dado que era um templo dedicado às Musas, as nove deusas que representavam as realizações da criatividade científica e artística humana.

Ali se abrigava a herança cultural grega, latina, babilônica, egípcia e judaica. Há 1.700 anos os governantes da cidade atraíram eruditos, cientistas e poetas, propondo-lhes empregos bem remunerados e vitalícios no Museu, onde, inclusive, podiam morar.

O lugar contemplava um padrão intelectual elevado, abrangendo geometria, matemática, geografia, medicina, hidráulica, pneumática etc. Os estudos não se vinculavam a uma doutrina ou uma escola, mas compreendiam todo o espectro ideológico de então.

O ambiente de tolerância intelectual era incentivado e nele se convivia tranquilamente com a variação de saberes, crenças e com o politeísmo, para desgosto e ira dos monoteístas judeus e cristãos que lá habitavam.

A tradição semita judaica ou cristã, dada a sua formatação mental religiosa, acreditava que o meio milhão de textos em papiro do Museu era ímpio, trazia mentira e pecado, e deveria ser eliminado. Pregavam que o confiável estava nas suas Escrituras.

Aconteceu, então, no começo do século IV, sobretudo por interesses de alianças militares, de o imperador Constantino tornar o cristianismo a religião oficial do Império Romano. No fim desse século o fervoroso Teodósio foi feito seu sucessor.

Esse monarca começou a perseguição e morte sistemática de tudo o que não fosse católico: fechou escolas, bibliotecas e templos, matou milhares de pessoas. Cuidou, também, de cerrar as portas dos “lugares em que se risse”.

O patriarca Teófilo, protegido pelo Império Católico, passou a açular fanáticos cristãos a provocar conflitos com os pagãos. Por fim, comandou a invasão de prédios que abrigavam textos cultos e ordenou que monges neles se instalassem, convertendo-os em igrejas.

Alguns anos depois o sucessor de Teófilo, Cirilo, expandiu os ataques, alcançando os judeus. O governante de Alexandria, Orestes, discordou. Uma intelectual pagã influente e douta, Hipátia, apoiou o governador.

Esse apoio custou-lhe caro. Como era astrônoma, matemática e filósofa, ela devia, concebiam os cristãos, ser bruxa, praticar “magia negra”. No começo de 415 uma turba cristã sequestrou Hipátia, arrastando-a pelas ruas até uma igreja. No interior do prédio, sacaram-lhe as roupas e lhe arrancaram a pele. Esfolaram-na com cacos de cerâmica. Por fim, queimaram-na viva. Cirilo, como é sabido, virou santo católico (editei Stephen Greenblatt, A Virada).

Esse assassinato é a marca do início do declínio da vida intelectual alexandrina, quer dizer, de todo o pensamento ilustrado que o mundo acumulara. Os textos eruditos restaram destruídos e o fanatismo cristão impôs a Bíblia ao mundo.

Daí, entramos na Idade Média, com os católicos imperando sobre o Ocidente, promovendo a morte e a destruição de tudo o que consideravam inimigo da sua fé. E os principais inimigos da fé para esses fanáticos eram as mulheres.

Houve ocasiões em que mais de mil delas foram levadas à praça das cidades, em geral pequenas, e, à vista da população, queimadas sob acusação de heresia, bruxaria etc. O obscurantismo de mil anos garantiu ao catolicismo a condição de pensamento único; a alternativa era a morte.

Hábitos de vida austera voltada ao “controle da carne” perduraram no cotidiano europeu mesmo durante o Renascimento. A busca do prazer significava devassidão, o sexo significava a corrupção do corpo, a palavra felicidade foi excluída do vocabulário usual.

Essas e tantas outras coisas que não fossem interpretadas como dedicadas à “santa glória de deus”, em verdade, ficaram reprimidas até que o Iluminismo teve voz ativa, estabelecendo-se com a Revolução Francesa (1789).

A mentalidade religiosa, autoritária e sexista acabou tão arraigada na nossa cultura que, “apesar dos avanços recentes, as mulheres representam cerca de 70% da população em extrema pobreza, ocupam 21% das vagas dos Parlamentos nacionais, têm menos acesso ao emprego formal do que os homens, respondem pela maior carga de trabalho doméstico e ainda convivem com a mutilação genital, o casamento forçado, o estupro e outras formas de violência” (Denise Menchen, FSP, 08mar14).

Conforme a matéria, a “ONU quer priorizar igualdade de gênero e busca convencer países a colocar direitos femininos no topo da agenda global pós-2015”. O sucesso do empreendimento dependerá de muita ação a ser implementada mundo afora.

Seguramente, as coisas caminharão devagar. Enquanto isso, cada mulher esclarecida bem que poderia desconfiar do sistema de crenças em que está inserida e colaborar no desmanche dessa triste situação imposta ao universo feminino.

 

 

Imagem Ilustrativa do Post: Shades of Green // Foto de: Maurits Verbiest // Sem alterações

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