As meninas de quem não falamos

14/01/2020

Coluna Direitos de Crianças, Adolescentes e Jovens / Coordenador Assis da Costa Oliveira 

Falar dos direitos de crianças e de adolescentes no nosso país, é falar também no quanto a caminhada para a sua efetivação, dentro do sistema socioeducativo, é ainda mais desafiadora e árida quando tornamos visível a condição específica das adolescentes mulheres. Dentre outras coisas, tal noção se mostra pertinente ao se constatar que, para elas, há ainda o peso do elemento gênero, que trará um desenho exclusivo para o ato infracional, tornando-o distinto daquele cometido por homens, e sendo as suas trajetórias infracionais o resultado de diferentes tensões sociais, econômicas, culturais e estruturais, em combinação com a responsividade específica de cada pessoa (ASSIS & CONSTANTINO, 2001).

Baseando-se nessa compreensão, é possível afirmar que as adolescentes autoras de ato infracional são expostas a um duplo processo de exclusão/inclusão de ocorrência concomitante: por causa da estigmatização em virtude do seu pertencimento a uma classe social que sofre com os impactos da pobreza e do não cumprimento da agenda de direitos fundamentais, gerando assim um abismo em termos de desigualdades sociais; e por serem mulheres, o que faz com que historicamente sejam submetidas às mais variadas formas de subalternização e exploração/opressão na sociedade patriarcal, configurando-se aí também outra forma de experienciar desigualdades[1]. Costa alega a necessidade de

reportamo-nos aos preconceitos e desigualdades de gênero que reservam às mulheres uma posição de menor valor social. Soma-se a isso o fato de que a sociedade não espera que adolescentes do sexo feminino cometam atos infracionais, especialmente os atos que rompem com os padrões socialmente relacionados às mulheres, como por exemplo, homicídio, latrocínio e/ou tráfico de drogas (COSTA, 2015, p. 21)

Apesar desse massacrante processo, ainda assim conserva-se a invisibilidade no que se refere ao ato infracional feminino, havendo várias condições que a fertilizam e fazem com que ela potencialize a exclusão/inclusão denunciada anteriormente acerca do contexto das adolescentes. Pode-se listar, entre tais elementos, apesar de seu crescimento nos últimos anos, a pequena ocorrência de atos infracionais femininos em comparação ao exorbitante quantitativo de infrações entre os adolescentes; o processo de inferiorização das mulheres, o qual renega as adolescentes a um lugar de menor valor no tocante à expressão de uma não conformidade ao padrão social de fragilidade e submissão atribuído às mulheres, que diz também da secundarização de seu papel social; e o descaso da sociedade com a questão ao se omitir da responsabilidade de pressionar o Estado para que providências sejam tomadas em favor do referido público (ASSIS & CONSTANTINO, 2001).

Em termos de como essa invisibilidade incide na produção acadêmica, em que pese hoje serem encontrados estudos que discutam aspectos diversos da temática do ato infracional feminino, tais produções ainda desenvolvem-se a reboque das que dedicam-se ao contexto masculino, refletindo assim a ainda pouca importância dada à mulher na sociedade, destacadamente à jovem e negra, sendo necessário um olhar mais atento e propositivo para este público, visando assim contribuir para a melhoria das estratégias dos serviços onde são atendidas[2].

Sobre tal atendimento dentro do sistema socioeducativo, é importante, antes de discutir o presente, problematizar breve e historicamente as práticas desenvolvidas para com o referido público no que diz respeito ao controle sobre suas vidas, até chegar aos dias de hoje. Para isso, remete-se à discussão ensejada por Cunha e Paiva (2017), que assinalam o uso de mecanismos jurídicos e da força policial, em associação à categoria de médicos e de educadores, entre o fim do século XIX e o começo do século XX, para dominar e corrigir as mulheres das classes populares sob a justificativa de que a pobreza estava relacionada diretamente com a tendência à chamada delinquência. Tal explicação encontrava bases num julgamento de valor moral ancorado numa visão machista e preconceituosa por parte da classe dominante, que considerava que “os hábitos e vícios ligados à pobreza, tais como: a falta da valorização do casamento, da educação dos filhos, da família e da honra feminina – ocasionava o cometimento de transgressões por essas jovens e/ou pelas mulheres adultas” (CUNHA & PAIVA, 2017, p. 2).

Em consequência disso, o sistema judiciário e a instituição policial, ambos à serviço do Estado, tornam-se os responsáveis pela infância e juventude, com a finalidade de realizar uma doutrinação da feminilidade padrão vigente, a partir do que ganha força o reclame pela criação de órgãos que pudessem auxiliar na contenção das mulheres criminalizadas por apresentarem posturas que se descompassavam dos valores anteriormente citados, não havendo uma real preocupação com a reeducação das mesmas, e sim, com o controle sobre suas mentes e corpos através de instituições religiosas, tendo ficado a cargo de uma delas o primeiro espaço criado para a internação feminina no Brasil, no início da década de 1940 (CUNHA & PAIVA, 2017).

Em que pese ao longo dos anos seguintes, até os dias de hoje, o gerenciamento das instituições de privação de liberdade para adolescentes ter sido transferido das instâncias religiosas para a estatal, várias delas perduram, marcando a continuidade do paradigma alicerçado num esquema tradicional machista e sexista. Esta análise possibilita a compreensão sobre as limitações historicamente construídas em torno da mulher no tocante ao sistema socioeducativo, posto que, em lugar de ser fomentada a socioeducação como é previsto no SINASE, há uma insistência na permanência da pressão social sobre qual papel, segundo a moral hegemônica, cabe às adolescentes, o que se resume à sua associação com a esfera doméstica (FACHIANETTO, 2008).

Não bastasse esse viés normatizador patriarca e machista, as adolescentes são desumanizadas e destituídas de sua condição peculiar de desenvolvimento reconhecida pelo ECA para serem objetificadas e personalizadas no ato infracional, fato que Debora Diniz, de maneira lúcida, demonstra, a partir de uma pesquisa feita sobre a realidade das adolescentes que se encontram em privação de liberdade no Distrito Federal, que “para a lei, elas são adolescentes em conflito com a lei, para o senso comum, bandidas” (DINIZ, 2017, p. 2).

É evidente que cercear a liberdade de alguém por meio do encarceramento físico é algo impactante para todo e qualquer ser humano, mas ao situar essa privação na vida das adolescentes autoras de ato infracional, dentro das condições postas pelo sistema socioeducativo que, de uma maneira geral, continua a reproduzir a dinâmica social ditada pela classe dominante, é condenar essas jovens a um enclausuramento duplo de seus corpos, de suas possibilidades de desenvolvimento de uma vida fora dos padrões sexistas e de sua subjetividade, haja vista que, mesmo antes de entrarem no sistema, elas já estão sob o domínio do patriarcado.

Nessa perspectiva, Foemming (2016), entende que, ao privar a liberdade das adolescentes, dentro dos moldes de funcionamento do sistema que se tem, impõem-se castigos que fogem à seara pedagógica que deve permear as intervenções junto às adolescentes para se valer de uma conduta punitiva, que recai não só sobre o corpo, mas também sobre a subjetividade e as emoções, interferindo assim na determinação de quem são essas adolescentes para elas mesmas e para a sociedade, havendo não uma responsabilização baseada no delito cometido, mas seletiva em relação àquelas adolescentes, diante de seus contextos de vida.

Nesse sentido, destacando a dimensão do controle supracitada e a relacionando com o contexto que permeia o ato infracional, Assis e Constantino apontam que

A disciplina e a dominação da mulher no lar também se dão pela violência doméstica. Essa forma de vitimização que está presente na vida cotidiana das mulheres mostra-se, em geral, ainda mais agravada entre jovens infratoras (...). A vitimização intensa e precoce circunscreve a ‘escolha’ feminina, facilitando a ida para a rua, o uso de drogas, a prostituição, o desemprego e a entrada na vida infracional (ASSIS & CONSTANTINO, 2001, p. 32).

Considerando os aspectos trazidos por estas autoras, assim como outros anteriormente apontados, constata-se que o controle sobre as mulheres antecede o ato infracional, haja vista que no seio familiar ele se presentifica, por meio da associação entre estas e o ambiente doméstico, reforçando aí a noção anteriormente citada de um domínio prévio do patriarcado; permanece ao longo de seu encarceramento, por meio da reprodução de práticas machistas; e ainda se verifica após sua saída do sistema de justiça, na medida em que as desigualdades de gênero em composição com as desigualdades de classe e o racismo, continuam fora dos muros institucionais.

Antes de serem adolescentes, estes seres de corpos dominados são mulheres que são marcadas por uma opressão que é estrutural para o funcionamento da forma de sociabilidade em que vivemos e com qual, muitas vezes, nos deixamos ser coniventes. Que consigamos desnaturalizar esses processos, para assim tirar a cortina do invisível que encobre as meninas da socioeducação, entendendo que, se o nosso horizonte é o da libertação do conjunto das mulheres, é tarefa nossa praticar a equidade, afirmando a urgência de construir, para e com essas adolescentes, outras formas de existir.

 

Notas e Referências

ASSIS, S. G. & CONSTANTINO, P. (2001). Filhas do Mundo: infração juvenil feminina no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ.

COSTA, D. L. P. C. O. As adolescentes e a medida socioeducativa de internação: rompendo o silêncio. 2015. 176f. Dissertação (Mestrado em Processos de Desenvolvimento Humano e Saúde) – Programa de Pós-graduação em Processos de Desenvolvimento Humano e Saúde, Universidade de Brasília, 2015.

CUNHA, R. D. T. & PAIVA, I. L. (2017). A adolescente, a conduta considerada desviante e as estratégias de atendimento no Rio Grande do Norte. Florianópolis: Seminário Internacional Fazendo Gênero 11&13.

DINIZ, D. (2017). Meninas fora da lei: a medida socioeducativa de internação no Distrito Federal. Brasíli: LetrasLivres.

FACHIANETTO, R. F. (2008). A “casa de bonecas”: um estudo de caso sobre a unidade de atendimento sócio-educativo feminino do RS. 2008. 224f. Dissertação de Mestrado em Sociologia, Programa de Pós-graduação em Sociologia, Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

FROEMMING, C. N. Da seletividade penal ao percurso punitivo: a precariedade da vida das adolescentes em atendimento socioeducativo. 2016. 168f. Tese (Doutorado em Política Social) - Programa de Pós-graduação em Política Social, Universidade de Brasília, 2016.

[1] Uma terceira forma de exclusão sofrida pelas referidas adolescentes é a discriminação em função da raça, posto que o racismo está coadunado ao patriarcado e ao sistema capitalista vigente.

[2] Em que pese a importância disso no contexto específico do sistema socioeducativo, é importante pontuar que, para uma real libertação das mulheres do domínio do patriarcado, há uma necessária organização social para a ruptura com o sistema capitalista, pois este consubstancia-se com o patriarcado para funcionar.

 

Imagem Ilustrativa do Post: verão // Foto de: Langll // Sem alterações

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