AS MÁSCARAS QUE NÓS USAMOS: ERVING GOFFMAN, ESTIGMA E O BIG BROTHER BRASIL  

19/02/2021

Coluna O Direito e a Sociedade de Consumo / Coordenador Marcos Catalan

“’Estigma’ é sobre precisar lembrar, a todo momento, várias vezes ao dia e para pessoas diversas: ‘eu sou uma pessoa igual a você’”

Monique Prada[1]

Talvez você, caro leitor, não seja adepto à reality shows. Eu, desde a juventude, sempre fui uma consumidora voraz deste produto televisivo de gosto bastante duvidoso. Porém, se antes este guilty pleasure era motivo de vergonha, em tempos pandêmicos é revestido com traços de requinte: tudo que queremos são alguns minutos na frente da televisão, fingindo que somos donos do destino de participantes de um programa de entretenimento enquanto tentamos sobreviver neste país desgovernado: “eu só quero me alienar”. Mas é 2021 e nada dá certo para o brasileiro.

Diferentemente de programas inteiramente encenados e roteirizados, realities buscam a realidade in natura, sendo este o meio pelo qual seduzem o espectador, mobilizando aspectos primitivos de seu psiquismo (MILAN, 2006) ao dar-lhe poder de voto sobre quem fica e quem sai do programa. Realities com dinâmica de confinamento como do Big Brother Brasil (confinamento voluntário de participantes em uma casa) nada mais geram que a análise das interações sociais entre estes indivíduos confinados e suas estratégias de jogo. É exatamente nesse contexto que se encaixa a obra de Erving Goffman.

Erving Goffman foi um sociólogo canadense que trabalhou com a perspectiva sociológica da psicologia e dos distúrbios mentais, realizando estudos etnográficos e sendo um grande contribuinte da perspectiva teórica denominada “interacionismo simbólico”, considerado um pioneiro da microssociologia, examinando de perto as interações sociais que compõem a vida cotidiana (CARVALHO; BORGES; RÊGO, 2010). Sua obra “A Representação do Eu na Vida Cotidiana”, publicada originalmente em 1956 pela Universidade de Edinburgh, na Escócia, e posteriormente revisada, expandida e publicada em 1959 nos Estados Unidos, emprega a abordagem da dramaturgia para estudar as minúcias das interações sociais face a face entre indivíduos, tirando o foco do indivíduo como ser isolado a ser estudado e dando ênfase ao complexo universo das interações sociais (GOFFMAN, 1996).

Quando me tornei este ser híbrido que transita entre o Direito e a Sociologia, prontamente me apaixonei pelo trabalho de Goffman, por sua forte carga empírica, mas, principalmente, por suas metáforas. Para tratar da análise das interações sociais entre os indivíduos, utiliza a dramaturgia como sua base metafórica: como em uma peça de teatro, também na vida cotidiana o indivíduo é levado a atuar quando chega na presença dos outros. Em nossas interações, somos como atores no palco, encenando um papel para a plateia que nos assiste. O único momento em que poderíamos ser nós mesmos, livre de nossos papéis, seria nos bastidores, longe do palco e sem a presença de nossa plateia. Em um reality show, não há bastidores, só há o palco. As câmeras estão por toda parte, 24 horas por dia, e a plateia está constantemente presente, mesmo enquanto os participantes dormem. O indivíduo tem consciência que ele está sendo observado em três níveis diferentes: diretamente pelos outros participantes do programa; diretamente e indiretamente pela produção e equipe e indiretamente pelo público. A dramaturgia sugere que cada um destes três níveis de observação irá influenciar a representação dele. Ele pode controlar a impressão que passa para os demais participantes (e, em pequeno alcance, quem sabe uma parte da produção do programa). Contudo, ele não consegue controlar a reação do público fora da casa e, portanto, avaliar sua própria imagem em um sentido mais amplo na esfera social (GATER; MACDONALD, 2016).

Quando trabalhamos com expressões metafóricas, necessário aliviar o fardo que estas carregam, muitas vezes encaradas de forma excessivamente literal. Assim, ao dizer que alguém está encenando um papel, podemos enxergar essa pessoa como completamente falsa, e não é isso que Goffman nos ensina com seu trabalho. Encenar é empregar mais do que a intenção e continuidade habituais na apresentação daquilo que não necessariamente é uma atuação. Basta pensar em nossa própria persona online em nossas redes sociais. Sempre nos apresentamos sob uma luz favorável: nossas ações podem ser extremamente calculadas (visando causar uma impressão específica) ou ainda calculadas, mas tendo o indivíduo pouca consciência que está agindo assim (não visando necessariamente uma impressão específica). De qualquer forma, Goffman afirma que o indivíduo sempre projeta uma certa definição da situação. Vivemos constantemente com a possibilidade de ruptura de nossas projeções, e isso nos preocupa: sempre há o risco de, em uma interação social, algum conhecido contar histórias do passado, coisas que desejamos manter escondidas e que podem romper nossas projeções. Manter a nossa representação significa também abandonar ou esconder tudo aquilo que não seja compatível com ela.

Quem sabe a metáfora dramatúrgica sobre representar um papel para uma plateia na vida real fique talvez mais nítida em um reality show. Em um híbrido de ficção e realidade, alguns de seus participantes parecem ignorar o aviso de Goffman de que “atuação teatral” não é para ser usado na forma literal e efetivamente entram no programa com personagens já criados. Todo ano, temos novas versões de modelos anteriores. O “Sarado” que passa horas na academia, o “Estrategista” que enxerga o jogo como um tabuleiro de xadrez e ignora a humanidade por trás das peças, o “Festeiro” que parece estar lá apenas para dançar até o amanhecer. Durante sua representação, o indivíduo precisa acreditar no seu papel, para solicitar que sua plateia também acredite nele. Nosso papel nada mais é que uma máscara daquilo que gostaríamos de ser na realidade. Mas o que acontece quando nossas máscaras caem?

A representação de um papel é algo extremamente frágil, delicado, facilmente quebrável, precisando o indivíduo estar no completo controle de suas ações, podendo apenas abandonar seu papel nos bastidores, onde poderá tirar sua máscara e deixar momentaneamente o personagem que interpreta, longe dos olhos da plateia. Porém, quando está no palco representando, o ator deve manter a plateia em um estado de mistificação, sustendo um certo distanciamento que perpetua essa mística da representação e, consequentemente, sustenta a impressão idealizada do intérprete. Quanto mais distante a plateia estiver do ator, mais controle este tem sobre a impressão que transmite. Desde a edição do ano passado, o Big Brother Brasil conta também com participantes já famosos antes do confinamento, como atores, cantores, youtubers e digital influencers. Estas pessoas já possuem uma imagem pública construída, fãs que os idolatram, correndo um risco enorme de, em um ambiente de exposição constante, perderem o controle de suas representações.

O que pudemos observar nesta edição de Big Brother Brasil 2021 é a queda das máscaras de inúmeros participantes, mas principalmente dos famosos. Assistimos, estarrecidos, cenas de tortura psicológica, rejeição e humilhação contra o jovem Lucas Penteado. Entre todas as atrocidades que fizeram com ele, o elemento que mais faltou a todos foi humanidade. A razão é simples. Humanidade não faz parte da projeção de um personagem, pois ela deveria estar na essência do ser humano. Em um momento de sofrimento, Lucas buscou acolhimento em seus ídolos, e foi brutalmente humilhado. Como indivíduo estigmatizado, ele foi buscar entre os seus acolhimento e pertencimento, um local de apoio mútuo entre pessoas que sofrem os mesmos tipos de discriminação na sociedade (GOFFMAN, 1988). Lucas é um jovem negro, ator, rapper, poeta e ativista, uma das lideranças do movimento secundarista que ocupou escolas estaduais em 2015, em São Paulo. Entre os seus, Lucas teve o desejo de viver livre das implicações sociais de outro estigma que carregava consigo, um segredo que, como todos os segredos, certamente afetava sua saúde mental: ele é bissexual, como diversos outros participantes da casa.

Porém, diferentemente dos demais participantes, este momento de libertação do Lucas – que veio através do beijo mais sincero da história do programa – suas intenções e sua identidade foram questionadas pelos mesmos que, há dias, o atacavam. Nada que ele pudesse fazer seria considerado certo por estes participantes, pois ele já havia sido escolhido como alvo. Lucas não tentou viver um personagem. Ao contrário, ele tentou se libertar de um estigma e, por isso, foi torturado. Os “atores” no palco não suportaram o que era real. Ele era tão real que foi escorraçado para fora da casa. O que aconteceu com o Lucas nos convida a refletir sobre nossas próprias máscaras e nossa própria humanidade. Estamos tão preocupados com a imagem que passamos – sempre pensando se esta luz nos favorece – que esquecemos de olhar para o outro. Julgamos no lugar de escutar e isolamos no lugar de acolher.

Em “Estigma: Notas sobre a Manipulação da Identidade Deteriorada” (GOFFMAN, 1988), Goffman coloca o leitor em frente a um espelho e nos obriga a encarar nosso próprio reflexo: os que se julgam tão superiores e os estigmatizados são parte um do outro. Como em uma gangorra, podem mudar facilmente de posição, conforme o contexto social inserido e ponto de vista de quem olha. De uma forma ou de outra, o estigma está em todos nós. Hora de tirarmos as máscaras e encararmos a realidade.

 

Notas e Referências

CARVALHO, Virgínia Donizete de. BORGES, Lívia de Oliveira. RÊGO, Denise Pereira. Interacionismo Simbólico: Origens, Pressupostos e Contribuições aos Estudos em Psicologia Social. Psicologia, Ciência e Profissão, Brasília, v. 1, n. 30, p. 146-161, 2010. 

GATER, Bruce. MACDONALD, Jasmine B. Are Actors Really Real in Reality TV? The Changing Face of Performativity in Reality Television. Disponível em: http://www.fusion-journal.com/issue/007-fusion-mask-performance-performativity-and-communication/are-actors-really-real-in-reality-tv-the-changing-face-of-performativity-in-reality-television/ Acesso em: 09.02.2021.

GOFFMAN, Erving. A Representação do Eu na Vida Cotidiana. Tradução de Maria Célia Santos Raposo. 7ª ed. Petrópolis: Vozes, 1996.

GOFFMAN, Erving. Estigma: Notas sobre a Manipulação da Identidade Deteriorada. 4ª ed. São Paulo: LTC, 1988.

MILAN, Marília Pereira Bueno. Reality Shows – Uma Abordagem Psicossocial. Revista Psicologia, Ciência e Profissão, 2006, 26 (2), p. 190-197.

[1] Monique Prada é trabalhadora sexual, escritora e ativista. A frase foi retirada do seu Instagram @eu_moniqueprada e reproduzida com sua autorização.  

 

Foto arquivo pessoal da autora Bruna Kern Graziuso, "Animal Rights March" em Londres, 2019

O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.

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