As Improbidades Administrativas que Rondam os Serviços Públicos: mais um episódio da nossa anomia institucionalizada – Por Leonel Pires Ohlweiler

16/03/2017

As notícias sobre os serviços públicos das últimas semanas não foram nada alvissareiras, pelo contrário. Todos ficaram estarrecidos com a operação deflagrada pela Polícia Federal no início do mês de março para apurar a cobrança indevida de partos realizados pela Administração no âmbito do Sistema Único de Saúde. Chama a atenção o caráter reiterado da prática, pois pelo que consta já ocorria há 13 (treze) anos na cidade gaúcha de Itaqui!

Muito embora as investigações estejam em andamento, já se apurou que a cobrança pela realização de cada cesariana custava para as pacientes em torno de R$ 1.800,00, conforme conversa gravada entre usuário do serviço e um médico, quando o procedimento poderia ser realizado pelo SUS e sem qualquer custo. A gravidade acentuou-se em virtude da negativa dos médicos em realizar o procedimento, caso o pagamento não fosse feito, impondo às vítimas a espera por parto natural, circunstância determinante em alguns casos de óbitos feitais e sofrimentos para as mães.

Alguns aspectos destacam-se no episódio.

É difícil compreender como médicos, com ampla formação acadêmica, decidiram embarcar nesta canoa furada. O que leva em casos similares tais práticas desviantes? É incrível como tais condutas foram perpetradas durante anos, nas barbas da Administração Pública. Com certeza não foi honrado o juramento de Hipócrates de cuidado. Aliás, parece que as serpentes do esculápio – bastão que representa a medicina e personalizou-se para denominar os médicos -, cuja simbologia é voltada para o renascimento de uma segunda vida, desenrolaram-se para atacar os próprios pacientes!

É claro que aqui se fala em conduta desviante em um contexto bem específico, diverso de outros disseminados na nossa sociedade, considerando os atores envolvidos e o ambiente no qual tomaram as decisões de, flagrantemente, desconsiderarem a Constituição Federal, por meio de práticas não republicanas, bem como a própria Lei Orgânica da Saúde, Lei 8.080/90. O artigo 196 do texto constitucional erigiu a saúde como direito fundamental! Qual a chance que as dezenas, centenas de vítimas desses médicos tiveram de desfrutar da jusfundamentalidade constitucional da saúde?

O artigo 2º da citada lei disciplina que a saúde é um direito fundamental do ser humano, devendo o Estado prover as condições indispensáveis ao seu pleno exercício, sendo que o artigo 7º, inciso I, fixou como princípio do Sistema Único de Saúde a universalidade de acesso aos serviços de saúde em todos os níveis de assistência.

Em mais de uma oportunidade já destaquei: um dos grandes problemas da nossa sociedade é o nível alarmante de anomia, ou seja, quando cidadãos – no caso médicos com toda a formação e esclarecimento possível – desconsideram padrões de honestidade e boa prestação de serviço público que devem orientar o comportamento em determinada área[1].

Muito embora não se adote por completo o modo de configuração do desvio fundado nas teorias do controle, de certo modo, compreende-se tal perspectiva na qual as ações dos indivíduos são direcionadas para fins e, considerando determinadas oportunidades, praticam condutas desviantes, imbuídos do sentido calculista e desprovidos das necessárias qualidades para a construção de uma sociedade melhor: vínculos, comprometimento, envolvimento e crença[2].

Ainda na área da saúde, o Superior Tribunal de Justiça julgou caso relevante sobre improbidade administrativa[3]. O Ministério Público propôs ação civil pública contra médica e servidora pública pelo indevido oferecimento de serviços particulares de menor valor para pacientes, com a finalidade de se beneficiarem e receberem salário e honorários médicos indevidos, configurando a denominada captação ilegal de clientela. Muito embora a tese defensiva de ausência de enriquecimento ilícito, a procedência da ação de improbidade foi mantida, pois caracterizada a violação dos princípios constitucionais da Administração Pública, em especial o da probidade administrativa, além dos deveres de honestidade e lealdade às instituições. Por ocasião do julgamento houve menção expressa à circunstância de as rés serem médica e agente pública do setor administrativo, portanto, lidavam cotidianamente com a saúde dos pacientes e, por consequência, não deveriam em hipótese alguma “oferecer o esquema denominado ‘o pacotão’ para a captação ilegal de clientela.”

Aqui não é o espaço apropriado para discutir as diversas mazelas do serviço público de saúde, mas somente referir a necessidade de maior efetividade nas políticas públicas de saúde para evitar algumas espécies de anomias institucionalizadas. Para realizar a cobrança indevida como foi feita de R$ 1.800,00 e por tantos anos, não há dúvida da circunstância de tais médicos sentirem-se absolutamente confortáveis no ambiente administrativo para perpetrar tais condutas que, como já disse, ainda precisam ser amplamente investigadas e esclarecidas.

Em termos de ações administrativas concretas, é crível refletir sobre alguns caminhos utilizados no combate à corrupção, e especificados por Susan Rose-Ackerman, em instigante texto sobre a economia política da corrupção[4]. Sem assumir a postura ingênua de entender possível eliminar definitivamente do Sistema Único de Saúde práticas similares, urge adotar medidas para (1) aumentar os riscos para autores de práticas ilícitas de cobranças indevidas de serviços médicos, como melhor padronizar os procedimentos administrativos de consulta e marcação de procedimentos; (2) facilitar ainda mais os canais de denúncias, bem como aumentar o nível de transparência administrativa no âmbito do SUS e (3) limitar os poderes de prestadores de serviços de saúde.

Os contornos do caso são mais dramáticos quando se examina, ao menos com fragmentos das notícias que foram veiculadas, por exemplo, como se tornou público, por meio de denúncia anônima de um estudante de Medicina. As instituições públicas, por vezes, não dão a devida atenção para o cotidiano da vida comum. Claro, sei disso, há muitas estórias populares que não correspondem a fatos concretos, mas o caso das cobranças ilegais há décadas era comentado na comunidade da cidade do interior do Rio Grande do Sul. O episódio retrata a mais absoluta visão mercantilista de serviço público, além de desnudar as dificuldades do controle sobre prestadores de serviços.

E o mais inusitado é como o desvio institucionaliza-se na burocracia. Para o agendamento dos procedimentos médicos, cobertos pelo SUS, não havia qualquer constrangimento da estrutura para dizer: ok, mas tem que pagar a “taxinha”!

Mais um episódio do Serviço Público à brasileira.


Notas e Referências:

[1] Cf. GIDDENS, Anthony. Sociologia. 6ª ed. Porto Alegre: Penso, 2012, p ,665.

[2] Cf. GIDDENS, Anthony. Sociologia, p. 673.

[3] Agravo em Recurso Especial nº 535.163-SP, Rel. Min. Herman Benjamin, j. em 07.05.2015.

[4] ROSE-ACKERMAN, Susan. A Economia Política da Corrupção. In: A Corrupção e a Economia Global. Kimberly Ann Elliott (Organizadora). Brasília: UNB, 2002, p. 81.

GIDDENS, Anthony. Sociologia. 6ª ed. Porto Alegre: Penso, 2012.

ROSE-ACKERMAN, Susan. A Economia Política da Corrupção. In: A Corrupção e a Economia Global. Kimberly Ann Elliott (Organizadora). Brasília: UNB, 2002.


 

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