AS DIFICULDADES DE RECONHECIMENTO JURÍDICO DO INDIVÍDUO DE CONCEPÇÃO NÃO BINÁRIA DE GÊNERO NA IGUALDADE PREVISTA NA ORDEM CONSTITUCIONAL ATUAL

21/03/2018

Inicialmente, cumpre apresentar, sob o enfoque da identidade de gênero, a variabilidade existencial de subgrupos. Com a categorização, há a bilateralidade homem e mulher; os indivíduos com disforia de gênero (seja ele feminino que se sente masculino e vice-versa); além dos indivíduos de gênero não binário, o que significa que não se identificam integralmente com nenhum dos sexos psicológicos apresentados.

De relevância ímpar, destacar que o ser humano não binário possui sexo biológico bem definido mas na construção de sua identidade social, ou seja, os valores/signos possuem traços masculinos e femininos, conjuntamente. Não há nenhuma relação com o hermafroditismo. Trata-se aqui de ausência de identificação absoluta de gênero (homem/mulher).

Com o escopo de esclarecer essa auto-aceitação do indivíduo, é importante trazer alguns traços históricos da diferenciação de sexos. Essa binariedade existente no mundo burocrático atual nem sempre foi assim, sendo que até os Séculos XVIII e XIX, no ocidente, não existia a diferenciação entre homem e mulher, conhecido como one sex model, conforme dizeres de CARRIERI e MOULIN DE SOUZA (2010, p. 49):

A diferença de sexos surge nos séculos XVIII e XIX. Assim, influenciado pelo neoplatonismo, o Ocidente não concebia a sexualidade humana como algo binário e dividido entre masculino e feminino até o século XVIII. Desse modo, até o século XVIII, o modelo de sexualidade era o one-sex model. Supor que tenha existido outra forma de pensar a sexualidade, para nós, seres humanos construídos em um mundo onde a diferença de sexos é algo naturalizado e reforçado no nosso pensamento diário, não é nada fácil. Como sujeitos cultural e historicamente constituídos, passamos a vislumbrar a divisão entre masculino e feminino como algo fixo, natural, indiscutível e repleto de verdades inquestionáveis, ou seja, como algo reificado. (CARRIERI e MOULIN DE SOUZA, 2010, p. 49)

Nos dias atuais está enraizado a divisão chamada aqui de clássica, entre sexo feminino e masculino, sendo faceta social minoritária os indivíduos trans e menor ainda aqueles trans não binários, o que não significa que não merecem análise, atenção e concretização de direitos básicos. Entretanto, para a formação de um complexo de direitos de efetividade, árdua tarefa em não “classificar” indivíduos em feminino e masculino. Até mesmo por questões de segurança jurídica.

A diferença sexual surgiu do interesse filosófico, moral e político para justificar a inferioridade e subordinação da mulher ao homem. Os parâmetros científicos foram reestruturados diante do estudo do papel da mulher na sociedade. O citado autor (2010, p. 61) ainda prossegue com a linha de raciocínio que essa diferenciação era uma preocupação do pensamento iluminista e surgiu como uma necessidade de:

Diferenciar homens e mulheres era uma preocupação do pensamento iluminista que acabou influenciando a forma como as ciências conceberam e interpretaram as questões relacionadas ao sexo e concebida em uma rede de poder. A vida, como objeto do poder, é um dos grandes fenômenos do século XIX e vem com o surgimento e a organização do Estado, que passa a ocupar o lugar das monarquias. 

Por seu turno, COSTA apud LAQUEUR (1995, p. 110) apresenta ponto de vista sob o two-sex model (homem/mulher) e sustenta que a binariedade entre os sexos funciona como embasamento das diferenças comportamentais e morais que a sociedade exige:

A bipolarização biológica do sexo, denominada por Laqueur (1996) de two-sex model, diferenciará o homem da mulher e vai justificar e criar diferenças morais aos comportamentos femininos e masculinos em função das necessidades e exigências da sociedade burguesa, capitalista, nacionalista e individualista (COSTA, 1995). A “reinterpretação dos corpos humanos conforme o mito da bissexualidade original foi, antes de tudo, uma solução exigida pelos problemas político-ideológicos postos pela revolução burguesa” (COSTA, 1995, p. 111). 

Todavia, superada a diferenciação entre o binômio homem-mulher, parte-se para a observação do estudo do gênero propriamente dito. Quebrando os protocolos de categorização, surgem os indivíduos transexuais. Importante destacar que as pessoas trans, conforme destacado em linhas anteriores, possuem uma subdivisão: pessoas trans de transição e pessoas trans não binárias.

Em relação às pessoas transexuais de transição pode-se apresentar aqueles indivíduos que encontram-se em desarmonia entre o sexo psicológico e biológico, ou seja, o ser humano possui um sexo biológico (macho/fêmea) e outro psicológico. Duas observações merecem destaque. A primeira delas e que pode gerar algum desconforto é a apresentação do termo macho e fêmea. Não se busca reduzir o potencial intelectual do ser humano. Faz-se uma análise do indivíduo enquanto animal racional, ou seja, apenas uma caracterização genética-formadora. Por seu turno, a outra observação se refere à forma em que o ser humano faz leitura comportamental de identificação, como ele se sente. Aqui encontra-se a possibilidade de redesignação sexual, visto que possui o escopo de adequar o sexo psicológico ao biológico.

Por sua vez, as pessoas transexuais não binárias, são aquelas que não se sentem representadas pelos valores simbólicos nem de homem nem de mulher. Assim, ressalte-se que os trans não binários possuem a necessidade de tratamento neutro (quando em discursos verbais) ou da maneira que se sinta representado (ao ser tratado como feminino ou masculino). Esta categoria não visualiza uma desarmonia de sexos (biológicos/psicológicos); Apenas vive como indivíduo neutro. Não há relação com a orientação sexual (homossexual, heterossexual ou bissexual), e sim como a forma que a pessoa entende-se representada socialmente.

A temática enfrentada é pouco explorada no direito e é necessário, para melhor compreensão, um diálogo entre sexo e gênero, passando por expoentes como Judith Butler e Simone de Beauvoir.

CHAVES et al. Apud MONEY (2015, p. 4) destaca as diferenças entre sexo e gênero e enfrenta a subclassificação deste último:

A distinção mais comum atualmente, é que “sexo” se refere ao biológico, definido pelas características anatômicas e fisiológicas e se restringe à masculinidade, feminilidade ou ambivalência do corpo do indivíduo, enquanto “gênero” faz alusão ao psicológico, mental, congruente com a psique. Este último conceito, ainda, se divide em dois subconceitos, de acordo com Money (1994): a identidade de gênero, que é a persistência da consciência de uma pessoa como masculina, feminina, entre outras identidades de gênero, formada pela experiência privada do papel de gênero; e o papel de gênero, que é conceituado a partir do comportamento, incluindo, mas não se restringindo, ao desejo sexual, que concebe a expressão pública da sua identidade. (CHAVES et. Al., 2015, p. 4) 

O gênero é formado em meio à sociedade e fortalece-se quando é conhecido como forma de identidade porque é a maneira pela qual o ser humano interage e efetua os elos sociais. Trata-se da estrutura psicossocial enquanto pessoa.

Aqui destaca-se o pensamento de DE BEAUVOIR (2011), a qual afirma que não se nasce mulher, torna-se. Apresentando que nenhuma rota biológica, psíquica ou econômica define a mulher enquanto ator social.

O ser humano possui na ótica psicossexual algumas possibilidades: a) em relação ao sexo biológico: ser macho ou fêmea; b) no que tange à orientação sexual: homossexual, heterossexual ou bissexual; c) já o sexo psicológico (identidade de gênero): a forma em que se auto reconhece: homem, mulher ou trans; d) na classe de pessoas trans: aqueles que possuem disforia de gênero e pretendem uma readequação do sexo biológico ao psicológico, assim como aqueles conhecidos como não binários, os quais não se identificam de maneira absoluta com a categorização homem/mulher, não objetivando aqui a redesignação do sistema biológico-sexual.

Como apresentado, os grupos sexuais sofreram alterações no decurso da história. Inicialmente havia apenas o one sex model, quando existia apenas um tipo de sexo (masculino) sendo que a mulher era vista como sexo masculino invertido hierarquicamente ligada ao homem (meados do século XVIII). Em marcha evolutiva, o sistema atual é regido pelo dual sex model, dividindo a classe em homem e mulher. Tal evolução se deu em virtude do fortalecimento do papel da mulher na sociedade.

Contudo, tal evolução não estagnou nesse último sistema. É de conhecimento notório a existência de pessoas trans, sendo que em outras áreas do conhecimento já existem inúmeros trabalhos (psicologia, medicina, antropologia).

Apesar de ser classe minoritária no sistema brasileiro, impossível negar acesso às garantias e direitos individuais, visto que a própria Constituição de 1988 prevê como fundamento a igualdade.

Dentro desta vasta complexidade que é o estudo do gênero, a filósofa Judith Butler apresenta questionamentos acerca da problemática de identificação:

A dissonância e complexidade do gênero pode ser determinada pela multiplicação e convergência de uma variedade de identificações culturalmente dissonantes? Ou toda identificação é construída através da exclusão de uma sexualidade que coloca essas identificações em questionamento? Em um primeiro exemplo, identificações múltiplas podem constituir uma configuração não-hierárquica de identificações variantes e sobrepostas que questiona a primariedade de qualquer atribuição unívoco de gênero (BUTLER, 1990). 

CHAVES et. Al apud BUTLER (2015, p. 8) menciona o preconceito e exclusão das pessoas não binárias de gênero:

Projetos como esse apenas contribuem para a marginalização, preconceito e exclusão de pessoas que não se encaixam nesse binário de gênero. Judith Butler, em seu livro “Bodies That Matter”, nos elucida a respeito da vivência sob uma forma não binário de gênero: Identificar-se com um gênero sob os regimes de poder contemporâneos envolve se identificar com um conjunto de normas que são e não são realizáveis, e cujo poder e status precede as identificações às quais elas são insistentemente aproximadas. Esse “ser um homem” e esse “ser uma mulher” são assuntos internamente instáveis. Eles são sempre cercados por ambivalência precisamente porque há um custo em cada identificação, a perda de algum outro conjunto de identificações, a aproximação forçada de uma norma que não é escolhida, mas que nos escolhe, e que, no entanto, ocupamos, nos revertemos, nos ressignificamos ao ponto que a norma falha em nos determinar por completo (BUTLER, 1993). É necessário, então, que se busque o estudo e discussão a respeito das várias expressões de gênero, com o objetivo de evitar a exclusão dessas pessoas, e procurar, ao invés 9 disso, incluí-las no meio social – deixando que as pessoas se definam através das normas, mas não que as normas tentem (e falhem) em definir as pessoas. 

A questão da não binariedade é assunto que gera muitas incertezas, principalmente quando se trata de um sistema totalmente burocrático como o brasileiro, em situações como: registro de nascimento, casamento e óbito; inscrições em vestibulares, concursos e universidades; emissão de documentos oficiais: CNH, CTPS, órgãos profissionais; ordem processual brasileira que julga obrigatória a inclusão nos sistemas jurídicos o nome e sexo; contratos em geral; identificação criminal; dentre vários outros.

Por vezes pode-se gerar esquecimento da comunidade majoritária, mas deve-se lembrar que a classe de pessoas não binárias sofre a cada obstáculo de identificação sexual, seja por meio de cadastro ou dia a dia.

Não há como um Estado Democrático de Direito impor a seus indivíduos um padrão comportamental sexual, sendo que tal característica é intrínseca do indivíduo e da sua liberdade de expressão. Todavia, o sistema burocrático obriga essas pessoas a se enquadrarem num modelo que elas não se identificam.

A proteção da parcela não binária não encontra muito respaldo em normas positivadas, mas alguns Estados já alavancaram o senso de proteção dos seres humanos, independentemente da expressão de identidade de gênero, como é o caso da Dinamarca que aprovou uma emenda ao Act on the Civil Registration System, já no ano de 2014 e estabeleceu o procedimento para requerer-se o reconhecimento da identidade de gênero.

No caso do Brasil, a evolução é extremamente tímida em relação à esta faceta da sociedade. Entretanto, mesmo com os equívocos apresentados no Decreto 8727/16, que trata do uso de nome social na administração pública federal, constata-se uma preocupação do Estado brasileiro em acolher a classe transexual e tentar promover o bem estar social.

A vida em sociedade é dinâmica e exige o acompanhamento legislativo para reger as relações sociais. Já é hora de repensar o modelo burocrático binário frente as variedade sexuais crescentes, já conhecidas da psicologia e medicina para um melhor acolhimento e concretização dos ideais de igualdade previstos na Constituição da República Federativa do Brasil.

 

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