As cidades e a ocupação dos ambientes de praia

14/01/2018

Introdução

Com o passar dos anos, as sociedades mudaram hábitos, costumes e culturas. Inúmeras transformações de ordem econômica, política, psicológica/ comportamental, filosófica, jurídica e moral/religiosa ocorreram desde a era do iluminismo até os dias atuais. Dentre as mudanças, destaca-se o movimento pendular que o Ser Humano realizou do campo para as cidades. Ao longo do tempo, partindo da revolução industrial até a revolução tecnológica, o Ser Humano foi “convencido” a viver nas cidades, geralmente atraídos pela ilusão da prosperidade ou expulsos pelo processo de constituição dos grandes latifúndios rurais, da agricultura intensiva e da mecanização do campo.

Hodiernamente, o mundo é urbano e a maior parcela da população vive nas grandes metrópoles. No Brasil, por exemplo, segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios de 2015, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE, 84,72% da população vive em área urbana e apenas 15,28% vive em área rural[1].   

A concentração da população nas áreas urbanas provocou a revisão dos estatutos jurídicos, exigindo uma correção no modelo de organização da sociedade. O direito foi chamado a disciplinar a convivência social nas cidades e a garantir o pleno exercício da cidadania dentro de um ambiente eclético e multicultural; impactado pelas diversas, constantes e incessantes transfigurações que, de inopino tomam de assalto as normas de controle social e as tradições.

No Brasil, dentre as diversas regras de organização social das cidades, sublinha-se a edição da Lei n.º 10.257/2001, denominada de Estatuto da Cidade, com a função de regular os artigos 182 e 183 da Constituição Federal de 1988 e a exigência do plano diretor urbano para os Municípios com população superior a vinte mil habitantes.

Partindo do Estatuto da Cidade e chegando ao plano diretor urbano, o presente texto pretende elevar ao debate a importância da organização das cidades, no particular, o disciplinamento da ocupação, exploração e construção do entorno das áreas do cordão arenoso – as praias e o litoral; debatendo os impactos para o ambiente natural e para o exercício do direito coletivo de uso dos balneários. 

O ordenamento jurídico brasileiro e as cidades

A Constituição Federal de 1988[2], acompanhando a metamorfose social, dedicou capitulo específico para tratar da política urbana. Segundo o texto, a política de desenvolvimento urbano será executada pelo Município, observando o que dispuser a lei, tendo por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes.

A Carta de Direitos explica que a função social da cidade é cumprida quando ocorre o atendimento das exigências do plano diretor urbano, para cidades com mais de vinte mil habitantes, aprovado pela Câmara Municipal, depois de amplamente debatido pela sociedade por meio de audiências públicas.

O parâmetro para elaboração do plano diretor urbano é o Estatuto da Cidade, com suporte nos princípios gerais da Constituição e na Carta de Atenas[3]. A primeira Carta de Atenas, datada de 1933, expedida durante a VI Conferência Internacional de Arquitetura Moderna, entabulou que as funções sociais da cidade se cumprem pela coexistência de quatro elementos básicos: a) habitação; b) trabalho; c) circulação e d) lazer.

A segunda Carta de Atenas, conhecida pelo codinome nova carta de Atenas, iniciada em 1998 e concluída em 2003, de autoria do Conselho Europeu de Urbanistas, inovou ao colocar o cidadão em posição central das tomadas de decisões em relação às cidades[4] e ao incluir dentro do conceito de função social, novos conceitos, destacando-se o emprego da tecnologia; o planejamento estratégico e o desenvolvimento sustentável; o fornecimento de transporte coletivo; a preservação dos valores culturais; a atenção ao envelhecimento da população; a construção de cidades acessíveis e a redução da desigualdade social.

Palmilhando a tendência mundial, o art. 2º da Lei n.º 10.257/2001, (Estatuto da Cidade) previu que a política urbana do Brasil tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais das cidades e da propriedade urbana, mediante as seguintes diretrizes, salientando:

Art. 2º (...)

I – garantia do direito a cidades sustentáveis, entendido como o direito à terra urbana, à moradia, ao saneamento ambiental, à infra-estrutura urbana, ao transporte e aos serviços públicos, ao trabalho e ao lazer, para as presentes e futuras gerações;

II – gestão democrática por meio da participação da população e de associações representativas dos vários segmentos da comunidade na formulação, execução e acompanhamento de planos, programas e projetos de desenvolvimento urbano;

(...)

IV – planejamento do desenvolvimento das cidades, da distribuição espacial da população e das atividades econômicas do Município e do território sob sua área de influência, de modo a evitar e corrigir as distorções do crescimento urbano e seus efeitos negativos sobre o meio ambiente;

V – oferta de equipamentos urbanos e comunitários, transporte e serviços públicos adequados aos interesses e necessidades da população e às características locais;

VI – ordenação e controle do uso do solo, de forma a evitar:

  1. a utilização inadequada dos imóveis urbanos;
  2. a proximidade de usos incompatíveis ou inconvenientes;
  3. o parcelamento do solo, a edificação ou o uso excessivos ou inadequados em relação à infra-estrutura urbana;
  4. a instalação de empreendimentos ou atividades que possam funcionar como pólos geradores de tráfego, sem a previsão da infra-estrutura correspondente;
  5. a retenção especulativa de imóvel urbano, que resulte na sua subutilização ou não utilização;
  6. a deterioração das áreas urbanizadas;
  7. a poluição e a degradação ambiental;

(...)

VIII – adoção de padrões de produção e consumo de bens e serviços e de expansão urbana compatíveis com os limites da sustentabilidade ambiental, social e econômica do Município e do território sob sua área de influência;

(...)

XII – proteção, preservação e recuperação do meio ambiente natural e construído, do patrimônio cultural, histórico, artístico, paisagístico e arqueológico;

XIII – audiência do Poder Público municipal e da população interessada nos processos de implantação de empreendimentos ou atividades com efeitos potencialmente negativos sobre o meio ambiente natural ou construído, o conforto ou a segurança da população;

Carlos Mello Garcia e Jorge Luiz Bernardi[5], ao estudarem a função social da cidade, concluíram que o art. 2º do Estatuto da Cidade indicou indiretamente, quais seriam as funções sociais da cidade e que para efeito desde estudo, ao investigar as funções da cidade procurou-se classificá-las em três grandes grupos. No primeiro encontram-se as funções urbanísticas (...). No segundo grupo estão as funções chamadas de cidadania (...). E no terceiro grupo encontram-se as funções de gestão

Diante desse quadro de princípios e de normas, o Plano Diretor Municipal foi inserido como instrumento de urbanização, de cidadania e de gestão para as cidades brasileiras. O art. 4º do Estatuto da Cidade estabelece que para os fins desta Lei, serão utilizados, entre outros instrumentos:

Art. 4o  (...)

(...)

III – planejamento municipal, em especial:

  1. plano diretor;

(...)

Vê-se, indene de dúvida, que o regramento jurídico do Brasil encontra-se filiado a moderna e contemporânea visão sobre as cidades, sobre a gestão e o planejamento da cidade e sobre a vida nas cidades. 

A ocupação, exploração e construção no entorno das áreas de cordão arenoso – as praias e o litoral

Duas características, dentre outras, da aplicação do sistema capitalista nas cidades são: a) a acumulação de propriedades em áreas com potencial habitacional, industrial ou turístico e, b) a especulação imobiliária, com cobrança de valores irreais em relação ao metro quadrado de áreas estratégicas para o desenvolvimento das cidades. Em regra, as grandes incorporadoras, com informação privilegiada e abertura política junto ao poder local, antevêem a localização de investimentos públicos e/ou privados ou mesmo a expansão urbana e passam a comprar glebas de terras, por preços insignificantes, para venderem ou incorporarem no futuro próximo com alta valorização.       

Nesse contexto, as áreas litorâneas sofrem com a expansão urbana e com a especulação imobiliária. As áreas de praia, em razão da beleza natural e dos inúmeros atrativos para a prática de lazer e desporto, recebem “especial atenção do mercado imobiliário”, cuja ocupação acaba sendo seletiva, favorecendo apenas os cidadãos abastados economicamente.

A partir das características e dos atributos da região de praia e considerando a pressão especulativa e os possíveis danos ao meio ambiente artificial e natural, é necessário legislar, aperfeiçoar e aplicar as diretrizes do Estatuto da Cidade, editando e aplicando de forma democrática o plano diretor municipal.

Pela lei n.º 10.257/2001, cabe ao Poder Público Municipal, através do plano diretor, ordenar e controlar o uso do solo, evitando, dentre outros aspectos: a) a utilização inadequada dos imóveis; b) a proximidade de usos incompatíveis ou inconvenientes; c) o parcelamento do solo, a edificação ou o uso excessivo ou inadequado em relação em relação à infra-estrutura urbana e, d) a poluição e a degradação ambiental.

Entretanto, um olhar atento para as áreas de praia das grandes cidades brasileira revelara, a uma, que o uso para banho, lazer e desporto vem sendo prejudicado pelo sombreamento provocado pelos edifícios, pois, a liberação do gabarito das edificações, em algumas zonas, acaba permitindo o lançamento de projetos de prédios cada vez mais altos. A duas, que verticalização intensiva tende a aumentar a densidade populacional, com picos sazonais, saturando os equipamentos e serviços públicos e a três, que o uso inadequado e incompatível tem provocado degradação do meio ambiente natural, com o sacrifício das restingas, um bioma pertencente à Mata Atlântica e importante tanto para a fauna quanto para a flora, além de ser essencial para evitar a erosão do cordão arenoso.

A situação posta revela que o Brasil passa por um processo de transição em relação ao uso e a ocupação do solo nas regiões de praia. Por um lado, há construções antigas e anteriores ao Estatuto da Cidade e, por outro lado, há construções realizadas na vigência do novo regramento urbanístico, porém, com forte influência das grandes incorporadoras, com subserviência das câmaras municipais e com ausência da participação do cidadão, nesse ultimo caso, geralmente pela falta de compreensão do seu papel na gestão das cidades e do impacto que uma obra pública ou privada pode provocar no ambiente artificial, cultural e natural.

Conclusão

Ao final verifica-se que a qualidade de vida na cidade, o bem-estar e a função social, dependem, fundamentalmente, da aplicação de regras normativas que estejam ligadas aos direitos fundamentais, dentre os quais habitação, trabalho, lazer, cultura, educação, saúde e meio ambiente. Ademais, que as cidades contemporâneas exigem atenção aos elementos que valorizem a cidadania, com atenção a gestão publica para tomada de decisões de forma democrática e participativa e os aspectos técnico-científicos do urbanismo.

As cidades, o que inclui o ambiente de praia, pela própria natureza, são espaços abertos, cuja modulação exige o fim da ingerência política e econômica na tomada de decisão do poder público, a constante revisão e atualização do plano diretor urbano e a profícua participação do cidadão.

 

[1] Disponível em https://teen.ibge.gov.br/sobre-o-brasil/populacoa/populacao-rural-e-urbana.html. Acesso em 11 de jan. 2018.

[2] Art. 182. A política de desenvolvimento urbano, executada pelo Poder Público municipal, conforme diretrizes gerais fixadas em lei, tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem- estar de seus habitantes.

  • 1º O plano diretor, aprovado pela Câmara Municipal, obrigatório para cidades com mais de vinte mil habitantes, é o instrumento básico da política de desenvolvimento e de expansão urbana.
  • 2º A propriedade urbana cumpre sua função social quando atende às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor.

[3] MEIRELLES, H. L. Direito Municipal Brasileiro. 6. ed. São Paulo: Malheiros, 1993

[4] Disponível em  http://arq.ap1.com.br/a-carta-de-atenas-e-a-nova-carta-de-atenas/. Acesso em 11 de jan. 2018.

[5] GARCIA, Carlos Mello. BERNARDI, Jorge Luiz. As funções sociais da cidade. Revista Direitos Fundamentais e Democracia. V.04. ano 2008. Disponível em http://revistaeletronicardfd.unibrasil.com.br/index.php/rdfd/article/viewFile/48/47. Acesso em 11 de jan. 2018

 

Imagem Ilustrativa do Post: Praia de Botafogo // Foto de: Rodrigo Soldon // Sem alterações

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