As angústias de um jovem advogado numa audiência criminal, sob uma ótica weberiana

12/02/2016

 Por Núbio Pinhon Mendes Parreiras - 12/02/2016

Todos nós comemoramos a última alteração do artigo 212 do Código de Processo Penal pela Lei nº 11.690/08, como se fosse afastar, ainda que em parte, a base inquisitiva de nosso processo penal. Uma mudança tímida, embora importante, mas, ainda assim, ineficaz.

É neste sentido que aqui se relata um desabafo em que, logo na minha segunda audiência de instrução criminal na carreira (há aproximados 3 anos), fui obrigado a confrontar um juiz, sem ter ainda sentido na pele que o Direito Penal – especialmente o brasileiro – é “uma guerra covarde [que] se estabelece do todo contra um” (CARVALHO, 2013, p. 26).

Na referida audiência estavam presentes, além de mim, o meu cliente, o juiz, o promotor (que depois descobri que não costumava comparecer nas audiências), a escrevente, uma assessora e uns três estudantes assistindo.

Desde o início da audiência eu já percebia um certo desconforto por parte do juiz e do promotor, uma vez que, em se tratando de acusação de parcelamento irregular de solo urbano (art. 50, da Lei 6.766/79), na audiência preliminar, junto de meu cliente, tínhamos recusado a proposta de suspensão condicional do processo, o que, numa comarca de interior com população conservadora de aproximados 85.000 habitantes, foi recebido como uma afronta de um jovem advogado contra autoridades experientes (tendo o juiz, dentre as suas décadas de serviço público, pelo menos umas 3 nesta comarca).

Assim, logo na primeira testemunha o juiz já começou, em clara afronta ao artigo 212 do CPP, a formular as perguntas, tempo em que eu, antes da segunda pergunta, já interrompi “lembrando” da alteração legislativa (então já ocorrida há 5 anos) e requerendo a devida aplicação do sistema acusatório neste sentido.

O juiz respondeu que tinha anos de carreira e não fazia desta forma. O promotor de pronto concordou com o juiz dizendo que ali não se fazia assim.

Informei que se tratava de um desrespeito ao sistema acusatório previsto na Constituição e no artigo 212 do CPP.

Retrucou o juiz que nas audiências dele não lhe interessavam nem o Código e nem a Constituição Federal.

Daí que pedi que fosse registrado na ata de audiência que era o juiz que fazia as perguntas (na ata constava que era o promotor), junto do meu protesto fundado no desrespeito ao sistema acusatório.

Ambos informaram que não seria registrado na ata e que a audiência prosseguiria daquela forma.

Insisti no protesto sob o argumento que os Tribunais Superiores (BRASIL, STJ, 2011) estavam entendendo se tratar de nulidade relativa, o que exigiria o registro.

O juiz disse que não lhe importava o entendimento dos Tribunais Superiores, que sempre fez e continuaria a fazer assim.

Por fim, com muita insistência, perceberam que se não fosse registrado na ata eu não a assinaria, quando o juiz, após pensar alguns segundos, entregou o processo para o promotor ironizando: “faça as perguntas que a majestade ali está mandando”.

Fingi que não ouvi e a audiência prosseguiu normalmente, de modo que, após alegações finais escritas com pedido de condenação pelo órgão acusador, o juiz (ou talvez o assessor dele) acabou acatando minha tese de defesa de absolvição por atipicidade formal devido ao fato de se tratar de imóvel rural, enquanto a lei proíbe apenas para urbano.

Cheguei a ter em outras audiências problemas parecidos com este juiz, como quando pedi para constar em ata (com protesto) a ausência do promotor na audiência (que ele, apesar de resistir muito, acabou registrando), ou quando, com a chegada de um novo promotor, logo no início da audiência o juiz ironizou me perguntando: “E aí Doutor, nesta audiência você quer que faça como?”. Quando respondi: “Prefiro que cumpra a lei (art. 212, CPP)!”.

Enfim, alguns colegas já me disseram que esse mesmo promotor costuma presidir audiência na ausência desse juiz, ou que inclusive o próprio assessor do juiz já o fez (na ausência de juiz e MP), sempre falseando (art. 299, CP) a ata.

Fato é que, certamente, referidas fraudes em audiência não seriam tão frequentes sem esta “asquerosa relação de incesto entre acusador e julgador” (CARVALHO, 2013, p. 138).

Já que isto provoca uma efetiva violação do sistema acusatório, especialmente no que diz respeito à titularidade da gestão da prova que, em Coutinho (2009, p. 109), se trata do principal ponto distintivo do inquisitório, na medida em que, enquanto neste a gestão se dá a cargo do juiz, naquele são as partes as titulares da produção probatória.

Daí que, dentre variadas razões, a gestão da prova pelo juiz viola o princípio do contraditório que, segundo Nunes (2009), não se trata de apenas informação e reação das partes, mas, não menos importante, no direito de influenciar e não ser surpreendido na decisão por argumentos não debatidos no processo.

Portanto, a principal razão de deixar às partes o encargo de produção das provas é por respeito ao contraditório e à imparcialidade, afinal, quando o juiz produz a prova e o advogado a contraprova, não há exatamente um contraditório ou isonomia, já que a prova feita pelo juiz sempre terá um valor maior quando da decisão, evidenciando a parcialidade do juiz. Por isso que o juiz que decide sobre provas produzidas pelas partes o fará de uma forma menos parcial.

Afinal, contraprova de instrução de juiz possui o mesmo poder de convencê-lo que à de uma contraprova (pela defesa) acusatória convencer o promotor!

Deste modo, um dos problemas de o juiz e o promotor atuarem nesta sintonia (trocando funções e atribuições) é que eles escolherão quem condenar, não pelo que a pessoa fez, mas pelo que vier em suas cabeças. Após a seleção, o juiz vai buscar as provas para fundamentar.

Mas por qual razão isto é tão comum? Donde vem todo este “poder” destes juízes alienados?

Talvez um estudo sobre os três tipos puros de dominação legítima de Weber (2004) traga uma luz, sendo estas: a tradicional; a carismática; e a legal.

A dominação tradicional (WEBER, 2004, p. 131/134) se manifesta através da “crença na santidade das ordenações e dos poderes senhoriais de há muito existentes” (WEBER, 2004, p. 131), de sorte a instituir um estatuto permanente e imutável, com comandos determinados pela cultura da dominação regional, acrescida de uma abertura interpretativa integrada pelo senhor patriarca, independente se oriunda de sua vontade/prazer pessoal ou não.

Por outro lado, a dominação carismática de Weber (2004, p. 134/141) produz uma devoção dos dominados por uma figura que os cativa por variadas formas, como as qualidades pessoais “do profeta, do herói guerreiro e do grande demagogo” (WEBER, 2004, p. 135). Liderança esta que persiste enquanto durar a fé dos “apóstolos”.

Já o tipo legal se constituiu basicamente por elementos de justificação de ordem burocrática, se pautando em lei (serviço público) ou estatuto (atividade privada, como empresa), que cria ou altera direito através de sanção que respeite a forma (WEBER, 2004, p. 128/131). Assim, a origem da dominação não é a vontade do dominador (autocéfala), mas a lei ou estatuto (heterocéfala), conforme Weber (2004, p. 129).

Evidente que estes tipos puros dificilmente são apropriados individualmente pelo sujeito dominador, havendo, não raro, combinação de pelo menos dois deles.

Ainda, é notório que as duas primeiras (tradicional e carismática) são mais primitivas que a legal.

Na experiência relatada acima, identifica-se no juiz (e também no promotor) um sujeito moldado especialmente pela dominação tradicional – e um pouco da carismática também –, de sorte que, de tantas pessoas (demais servidores, advogados, cidadãos) o tratarem como um “senhor patriarca”, acaba crendo, ainda que inconscientemente, ser mesmo uma santidade, o que não lhe permite compreender qualquer questionamento, se tornando um completo alienado.

Desta forma que:

“(...) o juiz delinquente dá presença, em audiência, a um promotor delinquente que está ausente na solenidade, com a conivência de um advogado delinquente; e nenhum deles (ou seja, nós) é delinquente, delinquente é o réu que furtou alguma coisa em algum supermercado – a hipocrisia em seu grau máximo.” (CARVALHO, 2013, p. 41)

Com efeito, não por outra razão que nos sistemas inquisitivos quem sofre as consequências são os mais vulneráveis, os excluídos da sociedade, já que, por estes critérios, é mais fácil escolher quem não consegue questionar do que quem tem voz ativa.

Por isto que, como lembra Coutinho (2009, p. 106), o sistema inquisitório reforça a seletividade penal, a tal ponto que, no Brasil, quase a integralidade dos presos são pobres, uma verdadeira exclusão social.

Contudo, se nós advogados começarmos a deixar de sermos submissos e questionarmos referidas fraudes nas audiências (que afetam inclusive nossas prerrogativas), naturalmente, tal tipo de dominação (tradicional) perderá a “legitimidade”.

Enfim, nosso problema, antes de ser normativo, é cultural!


Notas e Referências:

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp n.º 1259482/RS. Relator: Marco Aurélio Bellizze. Diário de Justiça Eletrônico, Brasília, 04 out. 2011. Disponível em: <http://www.stj.jus.br/SCON/jurisprudencia/doc.jsp?livre=1259482&b=ACOR&p=true&l=10&i=4>. Acesso em: 30/01/2016.

CARVALHO, Amilton Bueno de. Direito Penal a Marteladas: algo sobre Nietzsche e o direito. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2013.

COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Sistema acusatório: cada parte no lugar constitucionalmente demarcado. In: Revista de Informação Legislativa. Brasília, nº 183, 2009, p. 103-117.

NUNES, Dierle José Coelho. O Princípio do Contraditório: uma garantia de influência e de não surpresa. In: DIDIER JR, Fredie. (org.) Teoria do Processo: panorama doutrinário mundial. Salvador: Jus Podium, 2007, v.1, p. 151-174.

WEBER, Max. Os Três Tipos Puros de Dominação Legítima. In: COHN, Gabriel (org.) Max Weber: sociologia. 7. Ed. São Paulo: Editora Ática, 2004, p. 128-141.


Núbio Pinhon Mendes Parreiras. Núbio Pinhon Mendes Parreiras é Especialista em Ciências Penais, IEC-PUC Minas. Secretário-Geral da Comissão de Direitos e Prerrogativas do Advogado da 34ª Subseção da OAB/MG - Itaúna. Advogado. E-mail: nubiomendes@yahoo.com.br . .


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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


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