ARTIGO: O julgamento do REsp. 1.810.444/SP e o negócio jurídico processual: deve haver limites quanto à escolha das regras do jogo?  

07/05/2021

No mês de fevereiro deste ano, em sede de recurso especial, ​​a Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) entendeu que no negócio jurídico processual, não é possível às partes convencionar sobre ato processual regido por norma de ordem pública, cuja aplicação é obrigatória[1]

Em síntese, no caso em questão, uma empresa recorreu de acórdão do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) que considerou nula a convenção firmada em contrato de compra e venda entre ela e uma outra empresa cliente. Pelo acordo entre as partes, a credora estaria autorizada a obter, liminarmente, o bloqueio dos ativos financeiros da parte devedora sem que esta fosse ouvida e sem a necessidade de prestação de garantia.

A empresa fornecedora alegou que a convenção, devidamente registrada no contrato, baseou-se no princípio da livre manifestação de vontade das partes, prestigiado pelo novo CPC.

Corroborando o entendimento de primeira instância, o TJSP consignou que a forma de solicitação de providências judiciais para constrição do patrimônio do devedor – liminarmente – interferiria no poder geral de cautela do julgador, uma vez que o deferimento de tutela provisória de urgência, antes mesmo da citação do executado, é ato privativo do magistrado, sendo, portanto, inviável convenção privada acerca da questão.

Buscando contemplar o princípio da autonomia também no direito processual e proporcionar o autorregramento do litígio de forma mais ampla, o Código Processual de 2015 tratou de alterar o paradigma de que, por se tratar de norma referente ao direito público, seria inadmissível a alteração do procedimento contido em lei, confirmando a ideia de que não apenas o direito material pode ser objeto de consenso entre as partes, mas também as regras processuais, por meio da utilização do instituto dos negócios jurídicos processuais atípicos.

Não obstante, vale citar que o negócio jurídico tem suas origens no Direito Civil, e tal releitura é necessária uma vez que, compulsando o ordenamento jurídico brasileiro, veremos que muito recentemente, com o advento do novo Código de Processo Civil, o debate sobre os negócios jurídicos ganhou novo ar, tendo em vista que a nova legislação transpõe a figura do negócio – oriundo do Direito Civil – para a esfera processual.

Sob este prisma, o negócio jurídico é fonte de norma jurídica processual e assim vincula o órgão julgador que, em um Estado de Direito, deve observar e fazer cumprir as normas jurídicas válidas, inclusive as convencionais. O estudo das fontes da norma jurídica processual não será completo, caso ignore o negócio jurídico processual[2].

Porém, apresar do instituto ganhar maior credibilidade em 2015, principalmente por transpor de forma mais ampla o princípio da autonomia, importante ressaltar que os negócios jurídicos processuais não foram criados em 2015 e inseridos na legislação somente com o advento do “novo CPC”.

No Código de 73 já era possível, com uma ressalva: apenas era autorizada a celebração de negócios processuais típicos, ou seja, aqueles em que a autorização para modificar o procedimento constava expressa em lei, como por exemplo, nos artigos 111 (eleição consensual do foro judicial), art. 265, II (suspensão convencional do processo), art. 333 parágrafo único (alteração consensual sobre a distribuição do ônus da prova), dentre outros.

Podemos afirmar que é perceptível uma estrutura maciça no Código Processual Civil de 1973, onde as partes eram obrigadas a obedecer devotadamente ao que dispunha a lei, necessitando de autorização judicial se porventura desejassem alterar o procedimento, o que tornava o sistema um tanto quanto inflexível.

Os chamados negócios processuais atípicos, advindos do Código Processual Civil de 2015, vem gerando certa polêmica no cenário jurídico. Com previsão no art. 190[3], trazem como novidade a possibilidade de celebração de cláusula geral de negociação pelas partes, reproduzindo o que ocorre, por exemplo, no procedimento da arbitragem[4].

Tal novidade pode ser considerada, nas palavras do Professor Luiz Rodrigues Wambier, ao lado do procedimento comum e dos procedimentos especiais trazidos pelo CPC de 2015, “procedimentos especialíssimos” à luz de técnicas já utilizadas na seara arbitral[5], ou seja, um procedimento não ditado pela lei, mas sim escolhido pelas partes envolvidas no processo, as quais possuem a liberdade de definir aquilo que irão enfrentar no decorrer da lide, tornando o procedimento previsível para todos os envolvidos.

No acórdão aqui brevemente analisado, o relator ministro Luis Felipe Salomão afirmou que ganha destaque a sistematicidade com que o novo CPC articulou uma cláusula geral de negociação, consagrando a atipicidade como meio apto à adequação das demandas às especificidades da causa e segundo a conveniência dos litigantes, moldada pelos limites impostos pelo ordenamento jurídico.

Conforme mencionado no início, pelo acordo entre as partes, a credora estaria autorizada a obter liminarmente o bloqueio dos ativos financeiros da parte devedora sem que esta fosse ouvida e sem a necessidade de prestação de garantia, o que significa dizer que o acordo possibilitaria uma liminar para penhora de bens da empresa em razão da falta de pagamento voluntário da obrigação.

Cabe aqui verificar se podemos aplicar a mesma ideia que já defendemos para o processo de conhecimento, autorizativa dos negócios jurídicos (in dubio pro libertate); ou se haveria alguma característica da execução que nos levasse a concluir pela inadmissibilidade ou pela maior dificuldade de celebração de negócios jurídicos processuais atípicos. O cerne do debate volta, como era esperado, à tensão entre publicismo e privatismo[6].

Neste sentido, deparamo-nos com dois princípios jurídicos: autonomia da vontade e contraditório.

Em nosso sentir, um não exclui o outro. Da mesma forma que é de suma importância assegurar o contraditório às partes para se obter o melhor desfecho possível na lide, não se pode admitir que a autonomia da vontade - em um processo que trata de direito contratual – seja desconsiderada, até mesmo porque o fato de haver penhora sobre algum bem do devedor não quer dizer que aquele bem foi retirado de sua esfera patrimonial. A penhora visa particularizar, judicialmente, os bens do executado que deverão se sujeitar, em ato posterior, à expropriação ou adjudicação.

Em outras palavras, a penhora é o ato inicial destinado a definir o bem do devedor que irá se submeter à expropriação judicial, é o primeiro ato expropriatório da execução através do qual se individualiza e afeta o bem (ou os bens) – entre todo o universo patrimonial do executado (devedor ou responsável) -, sobre os quais o ofício executivo deverá atuar para dar satisfação ao credor e submetê-los materialmente à transferência coativa[7].

Entre os atos da penhora e da expropriação, é permitido ao devedor defender-se, a fim de impedir a retirada do bem de sua esfera patrimonial, o que certamente não ensejaria, de plano, prejuízos ao seu patrimônio, caso o juiz entenda que a expropriação não seria a melhor medida para o caso.

De logo cabe fazer uma advertência: a validade dos negócios processuais atípicos na execução não escapa ao regramento geral previsto no art. 190 do CPC. A doutrina brasileira já tem produzido muita coisa sobre os limites dessa negociação atípica, tudo isso aplicável aos negócios processuais na execução[8].

Devemos, ainda, lembrar que a atividade executiva é permeada pela autonomia das partes, moldada na síntese do princípio dispositivo e do princípio do debate, indicando uma prevalência dos interesses privados sobre os interesses públicos, o que conspira a favor da permissibilidade à vontade das partes para conformar, em alguma medida, as formas e atos da execução.

Por outro lado, a atividade executiva, tradicionalmente referida como “execução forçada”, traz forte caráter público e cogente no sentido de que serve para o Estado, com seu poder de império, impor o cumprimento das suas decisões e dos demais títulos executivos em geral. O interesse público seria prevalente pela intensidade de interferência no patrimônio – e até mesmo na liberdade – do executado.

Por ser “forçada”, a execução significaria a frustração do adimplemento voluntário. Sem consenso, a atividade executiva se estruturaria num feixe de relações jurídicas públicas, que justificaria o uso da força estatal em favor do exequente, com o ingresso forçado no patrimônio e na liberdade do executado. E essas relações jurídicas seriam diversas daquelas existentes entre exequente e executado (ou entre credor e devedor), que podem ser de natureza privada. Nessa ordem de ideias, seria de rejeitar-se uma “execução negociada”[9].

No caso em questão, as partes decidiram que a “execução forçada”, ou seja, o ato da penhora, poderia ocorrer em sede de liminar, acordo este que fora acatado tanto pelo credor como pelo devedor, o que nos leva a imaginar que existiu previsibilidade em relação ao procedimento, ou seja, o devedor estava ciente do que aconteceria no curso da ação executiva, vez que este consentiu o procedimento negociado.

Entendemos que, na execução, não há uma hierarquia entre interesses públicos e privados; tampouco uma preordenação entre autonomia das partes e atuação estatal. Deve ser lembrado que, desde o limiar da Idade Contemporânea, a humanização da execução fez com que os poderes do Estado e a visão autoritária do indivíduo como objeto da atividade estatal fossem abandonados na execução, numa virada da tutela executiva mais orientada para as partes, não para o Estado.

E, como dito anteriormente, a execução é pautada pelo princípio dispositivo, verificando-se diversas faculdades de disposição para o exequente. A autonomia dos litigantes, que também se projeta na execução, engloba a possibilidade de definir negocialmente efeitos jurídicos, moldando o procedimento de acordo com as prioridades e interesses dos acordantes[10].

Dessa forma, a adaptabilidade das medidas executivas às necessidades dos litigantes trata-se de prerrogativa de adaptar as formas do processo executivo, o que pode representar um ganho procedimental em termos de efetividade, além da previsibilidade que as partes terão quanto ao que ocorrerá no curso do processo, minimizando riscos, o que é bom para todos os litigantes[11].

Cabe salientar ainda, que a negociação processual na execução é importante para o tráfego das relações comerciais, porque fomenta a consensualidade, importando na manutenção da capacidade econômica das partes para todas as demais relações de direito material entre elas, atuais e futuras.

Nesse sentido, os negócios jurídicos entabulados dentro do ambiente processual atendem a interesses tanto do exequente como do executado, podendo ser mecanismos úteis para equilibrar as exigências processuais da execução com a manutenção dos laços sociais estremecidos com o conflito[12].

 

Notas e Referências

AMARAL, Paulo Osterneck. Provas: atipicidade, liberdade e instrumentalidade – São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015.

DIDIER, Jr. Fredie. Ensaios sobre os negócios jurídicos processuais – Salvador: Jus Podivm, 2021.

DIDIER, Jr. Fredie. Negócios jurídicos processuais atípicos no código de processo civil de 2015. Revista Brasileira da Advocacia. São Paulo: Thomson Reuters, 2017. Disponível em < http://www.mpsp.mp.br/portal/page/portal/documentacao_e_divulgacao/doc_biblioteca/bibli_servicos_produtos/bibli_boletim/bibli_bol_2006/RBA_n.01.04.PDF > Acesso em 20/04/2021. 

DIDIER, Jr. Fredie; CABRAL, Antônio do Passo. Negócios jurídicos processuais atípicos e execução. Revista do Ministério Público do Rio de Janeiro, n. 67, jan./mar. 2018, p. 140. Disponível em < http://www.mprj.mp.br/documents/20184/1245317/Fredie_Didier+Jr_%26_Antonio_do_Passo_Cabral.pdf > Acesso em 04/05/2021.

SAAD, Camila Chagas. A penhora de dinheiro e penhora on-line como meio de garantia da efetividade da execução. Revista de Processo. São Paulo: Revista dos Tribunais. Vol. 289/2019, p. 191 – 224.

STJ, Negócio jurídico processual não pode dispor sobre ato regido por norma de ordem pública. Disponível em < https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias/25022021-Negocio-juridico-processual-nao-pode-dispor-sobre-ato-regido-por-norma-de-ordem-publica.aspx > Acesso em 20/04/2021.

[1] STJ: Negócio jurídico processual não pode dispor sobre ato regido por norma de ordem pública. Disponível em < https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias/25022021-Negocio-juridico-processual-nao-pode-dispor-sobre-ato-regido-por-norma-de-ordem-publica.aspx >

[2] DIDIER, Jr. Fredie. Ensaios sobre os negócios jurídicos processuais – Salvador: Jus Podivm, 2021, p. 25.

[3] Versando o processo sobre direitos que admitam autocomposição, é lícito às partes plenamente capazes estipular mudanças no procedimento para ajustá-lo às especificidades da causa e convencionar sobre os seus ônus, poderes, faculdades e deveres processuais, antes ou durante o processo.

[4] DIDIER, Jr. Fredie. Negócios jurídicos processuais atípicos no código de processo civil de 2015. Revista Brasileira da Advocacia. São Paulo: Thomson Reuters, 2017.

[5]  Palestra proferida no 2º Encontro de Processualistas sobre o Novo Código de Processo Civil promovido pelo IDC.

[6] DIDIER, Jr. Fredie; CABRAL, Antônio do passo. Negócios jurídicos processuais atípicos e execução. Revista do Ministério Público do Rio de Janeiro, n. 67, jan./mar. 2018, p. 140.

[7] SAAD, Camila Chagas. A penhora de dinheiro e penhora on-line como meio de garantia da efetividade da execução. Revista de Processo. São Paulo: Revista dos Tribunais. Vol. 289/2019, p. 02.

[8] DIDIER, Jr. Fredie. Op. cit., 2021, p. 68.

[9] DIDIER, Jr. Fredie. Op cit., 2021, p. 71

[10] DIDIER, Jr. Fredie. Op cit., 2021, p. 72

[11] DIDIER, Jr. Fredie. Op cit., 2021, p. 73

[12] DIDIER, Jr. Fredie. Op cit., 2021, p. 74

 

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