Nas aulas em que trato de temas sobre interpretação e aplicação do direito, costumo analisar com os alunos os problemas de validade da seguinte disposição em um testamento hipotético: “deixo toda a parte disponível de minha herança para Paulo, pois meu outro filho, João, é homossexual”. As reações e as respostas fornecidas são particularmente interessantes: intuitivamente, a maioria expressiva dos estudantes considera a disposição imoral ou injusta; contudo, não são poucos os alunos que entendem ser esta disposição, juridicamente, válida.
De fato, como em muitas outras questões, encontraremos divergências dentro da dogmática. As dificuldades maiores com o caso residem na apresentação expressa do motivo da disposição. Afinal, tratando-se da parte disponível da herança, poucos questionariam a validade desta disposição se fosse feita de forma pura e simples, mesmo que beneficiando apenas um dos filhos[1]. Mas não é este o caso, em que é certa (e registrada) a motivação homofóbica do testador[2].
De acordo com o Código Civil, as hipóteses de invalidade do testamento constam, tipicamente, no art. 1.900 (casos de nulidade) e no art. 1.909 (casos de anulabilidade – erro, dolo e coação). Nenhum deles contempla a análise das motivações do testador. Contudo, se recorrermos ao regime geral da validade dos negócios jurídicos, encontraremos duas normas interessantes: o art. 140 e o art. 166. A primeira, relacionada ao erro ou ignorância do agente, afirma que “o falso motivo só vicia a declaração de vontade quando expresso como razão determinante”. Curiosamente, esta norma poderia contemplar o caso se a homossexualidade de João se provasse falsa.
Vamos supor, entretanto, que João seja gay assumido. Assim, só nos restaria o previsto no art. 166, inciso III: o negócio jurídico será nulo quando “o motivo determinante, comum a ambas as partes, for ilícito”. Mas tal norma se aplica aos testamentos? Como pontua Marcos Bernardes de Mello, o testamento é negócio jurídico unilateral, e a expressão “comum a ambas as partes” deixaria evidente a posição do legislador de que tal nulidade só incide em negócios jurídicos bilaterais[3]. Não surpreende, portanto, a dificuldade que muitos alunos encontram para defender a invalidação do dispositivo em tela, ainda que o considerem injusto[4].
Logo, não parece haver uma resposta clara, a ser aplicada por simples subsunção, dentro de nossa legislação civil. A pergunta sobre a validade deste dispositivo testamentário envolve, antes de tudo, saber se um indivíduo pode dispor de seu patrimônio de forma discriminatória – entendendo-se a discriminação, no caso, como expressão de preconceito ou repulsa a certos indivíduos ou grupos sociais. Neste ponto, a tendência doutrinária é considerar que somente uma manifestação textual inequívoca de natureza discriminatória, no próprio testamento, poderia eivá-lo de invalidade; do contrário, abrir-se-ia espaço para valorações incompatíveis com a liberdade de testar, fundada na primazia da vontade do testador[5].
Embora esta conclusão possa levantar outras dificuldades[6], o objetivo deste texto é mais modesto. Meu argumento é de que a vedação aos testamentos discriminatórios pode ser encontrada em uma teoria da justiça, o que precede considerações de direito positivo. Trata-se de uma reflexão ainda inaugural, e que certamente poderá ser aprofundada.
Acompanhando José Reinaldo de Lima Lopes, entendo haver uma ligação conceitual entre direito e justiça. Na realidade, não há como conceber a própria vida social, marcada por partilhas e comunhões, sem uma noção prévia de justiça[7]. É óbvio que as pessoas podem divergir com relação ao que entendem ser justo ou injusto, mas disso não se segue que devemos assumir certo relativismo moral, tão em voga no Brasil[8]. E, em sentido contrário às perspectivas céticas ou relativistas sobre a justiça, temos a teoria de Ronald Dworkin.
Conhecido por suas duras críticas ao positivismo jurídico e por sua teoria do direito como integridade, Dworkin também desenvolveu uma interessante teoria da justiça – e é com base nela que baseio minhas reflexões. Refiro-me, particularmente, às ideias apresentadas pelo autor em sua obra Justice for Hedgehogs[9]. Em apertada síntese, Dworkin defende a tese de que há continuidade e interdependência entre valores éticos (os quais, segundo o autor, se relacionam ao modo como vivemos nossa própria vida) e valores morais (que dizem respeito ao modo como devemos tratar outras pessoas).
Dentro do campo ético, Dworkin ressaltará que somos responsáveis pela forma como vivemos, o que nos conduz a uma concepção de dignidade baseada em dois princípios. O primeiro é o princípio do respeito a si próprio: devemos levar nossas vidas a sério, aceitando que é importante que nossa vida seja uma realização bem-sucedida, e não uma oportunidade perdida. Por este princípio, o respeito à dignidade envolve o reconhecimento de que nossa vida tem valor intrínseco. O segundo princípio é o da autenticidade: cada um tem a responsabilidade especial e pessoal de gerir a própria vida, considerando a narrativa ou estilo que julgar correto. Ou seja, aquilo que consideramos valioso decorre de uma construção pessoal, e não de algo imposto ou referente a terceiros.
Mas não somos átomos soltos pelo mundo. Relacionamo-nos com outras pessoas, e somos capazes de perceber que os outros, assim como nós, se esforçam para viver uma vida valiosa. Dessa maneira, somos capazes de expandir nossas responsabilidades para com nossas próprias vidas para incluir responsabilidades para com os demais – e é aí que ficará evidente, no raciocínio dworkiniano, a continuidade entre a ética e a moral. A partir da noção de respeito a si próprio, que é compartilhada por todos, chegamos à igualdade como valor político, o que significa dizer que não é apenas a nossa vida que é valiosa, mas todas as demais. De outro lado, partindo da autenticidade, reconhecemos que devemos respeitar as escolhas individuais que as pessoas fazem para suas próprias vidas. Há, portanto, um espaço de independência ética, na qual cada pessoa deve ser deixada livre para cultivar a vida como bem entender (escolhendo, por exemplo, com quem se casar, ou qual profissão exercer, ou se pretende ou não seguir uma religião etc.).
É notável como estas ideias se relacionam com o que Dworkin denomina concepção liberal de igualdade: o dever estatal de tratar a todos com igual consideração e igual respeito. O Estado e o direito devem reconhecer cada vida como intrinsecamente valiosa, o que significa que não pode distribuir bens e oportunidades de forma desigual, entendendo que alguns cidadãos seriam merecedores de maior consideração. Por outro lado, o igual respeito implica em considerar a independência ética de cada pessoa ao decidir como leva a própria vida, o que significa que o Estado não pode restringir liberdades por entender que as concepções valorativas de algum cidadão ou grupo são mais nobres ou superiores às dos demais – de onde se infere a ideia, tipicamente liberal, da neutralidade estatal[10].
Considerando todos estes pontos, o leitor atento possivelmente chegará à seguinte questão: se, no pensamento dworkiniano, há uma continuidade entre ética e moral, e considerando a relação destas ideias com sua concepção liberal de igualdade, seria possível afirmar que o dever de tratar a todos com igual consideração e igual respeito não é apenas um dever estatal, mas um dever de todos os indivíduos?
Certamente, a resposta para a questão precisa levar em conta outros elementos. Afinal, é certo que este dever é muito mais exigente quando pensamos no Estado e no direito. Como o próprio Dworkin reconhece, não haveria como exigir que um pai tratasse outras crianças com a mesma consideração que guarda por seus próprios filhos; mas disso não se segue que não deva reconhecer a importância objetiva da vida destas outras crianças, ainda que lhe sejam estranhas[11].
De qualquer sorte, o que desejo ressaltar com estas observações é que a teoria da justiça dworkiniana abre espaços importantes para pensar em um dever de não-discriminação que vincula não somente o Estado e o direito, mas qualquer indivíduo. Logo, entendo haver responsabilidade, por parte do testador, no modo como constitui e expressa suas vontades, não se deixando levar por meros preconceitos ou caprichos. O testamento é, certamente, a expressão da vontade de alguém – mas não é toda vontade que será justa e adequada, o que se torna ainda mais relevante quando constatamos as consequências patrimoniais envolvidas[12]. Se mesmo em vida encontramos limitações importantes com relação ao que fazemos com nosso próprio patrimônio, com maior razão há limites que poderão ser impostos considerando situações que ultrapassam nossa vida.
Os contornos propriamente jurídicos para tratar da validade do testamento hipotético mencionado no começo deste texto são, como visto, complexos. Como muitos civilistas alertam, se ampliarmos as circunstâncias de invalidação dos testamentos, o fazemos sob o risco de intervenções judiciais inadequadas, com juízes tentando impor, no lugar do testador, o que entendem ser a melhor destinação para a herança. Mas isso não é o mesmo que dizer que toda intervenção será inadequada ou indevida. É preciso refletir sobre os possíveis critérios que autorizariam a invalidação de disposições testamentárias discriminatórias. Contudo, se estamos nos guiando por determinadas concepções de justiça, a questão não será mais “se” tais disposições podem ser invalidadas, mas sim em quais circunstâncias.
[1] Contudo, mesmo em casos assim, é possível encontrar divergências. Tornou-se emblemática a decisão prolatada em 2018 por juiz da comarca de Guaxupé (MG), “incluindo” duas netas no testamento da avó, que deixara a parte disponível de seu patrimônio para cinco netos. O juiz entendeu que a testadora não contemplou suas duas netas porque estas seriam fruto de relacionamento não-matrimonial de seu filho – embora não haja, no testamento, qualquer indicação expressa neste sentido. Partindo desta percepção, o juiz argumentou que o princípio constitucional que impede a discriminação dos filhos se estenderia aos netos, o que invalidaria a disposição testamentária feita apenas em benefício de alguns. A decisão foi duramente criticada por José Fernando Simão, que além de defender a compatibilidade entre a igualdade constitucional da filiação com a autonomia do testador sobre a parte disponível de seu patrimônio, afirmou que “o motivo, as razões para se celebrar um contrato ou se fazer um testamento são irrelevantes para o sistema. E nem poderia ser diferente. A razão ou motivo, apenas quando declarada como razão determinante do negócio jurídico, é o motivo de invalidade por erro (a antiga falsa causa do Código Civil de 1916 e atualmente o falso motivo)”. SIMÃO, José Fernando. O testamento magistral: uma nova figura criada em Guaxupé. Consultor Jurídico, agosto de 2018. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2018-ago-12/processo-familiar-testamento-magistral-figura-criada-guaxupe-parte-2/. Acesso em: 23 ago. 2023.
[2] É importante notar que o caso hipotético poderia ser alterado para incluir outras formas de discriminação, sem alterar sua problemática central, como racismo (e.g., “pois João é negro”), religião (e.g., “pois João é crente”), origem da filiação (e.g., “pois João é adotado”), dentre outros.
[3] MELLO, Marcos Bernardes de. Teoria do fato jurídico: plano da validade. 14ª ed. São Paulo: Saraiva, 2015, p. 166. Importante ressaltar que o autor entende não haver razão que justifique não se estender, ao negócio unilateral, a hipótese de nulidade por ilicitude de motivo.
[4] Há quem defenda que se aplica ao caso o disposto no inciso II do art. 166: quando for ilícito, impossível ou indeterminável o objeto do negócio jurídico. Neste sentido, cf. NEVARES, Ana Luiza Maia. Função promocional do testamento. Rio de Janeiro: Renovar, 2009, p. 230. O problema é que esta posição acaba por tomar como objeto do negócio aquilo que, na realidade, é sua motivação. O próprio art. 166 trata expressamente da motivação no inciso III. No mais, sobre as confusões entre objeto e motivo do negócio jurídico, em particular feitos pela jurisprudência anterior ao Código Civil de 2002, cf. AZEVEDO, Antônio Junqueira. Negócio jurídico: existência, validade e eficácia.4ª ed. São Paulo: SaraivaJur, 2017, p. 105-111.
[5] Dando conta de todas estas questões, merece destaque a dissertação de mestrado de Maria Beatriz de Miranda Toledo, analisando, em profundidade, o tema das nulidades das disposições testamentárias. Cf. TOLEDO, Maria Beatriz de Miranda. Nulidade das disposições testamentárias. Dissertação (Mestrado em Direito Civil) – Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. 221p. São Paulo, 2020.
[6] Como na hipótese em que a motivação conste em outros fatos inequívocos, e não de modo expresso no testamento. Retomando o caso hipotético, o testador poderia deixar toda sua parte disponível para seu filho Paulo, de forma pura e simples, tendo também deixado uma carta ou mensagens em que assevera ter sido a homossexualidade de João o que o motivou. Também se pode pensar na situação em que tenha feito o testamento um dia após expulsar João de casa, quando este se assumiu gay. Ainda que sejam relevantes as preocupações com excessos judiciais na interpretação e integração de testamentos, estabelecer como parâmetro para eventual invalidação apenas o que constar expressamente no testamento parece-me arbitrário. Até porque, na prática, e sendo minimamente orientado, dificilmente alguém incluiria motivações preconceituosas em seu testamento. Disso se segue que a invalidação atingiria apenas os testamentos de tolos ou desavisados – como se o direito pudesse admitir ações claramente discriminatórias, desde que não tenham sido textualmente mencionadas.
[7] LOPES, José Reinaldo de Lima. Justiça em MURATA, Daniel Peixoto; MORBACH, Gilberto. Curso de filosofia do direito contemporânea. São Paulo: Editora Dialética, 2024, p. 505-506.
[8] É comum, entre os juristas brasileiros, o entendimento de que não há objetividade em valores, ou no próprio direito, até porque se costuma pensar na objetividade apenas por contornos científicos, em analogia a outros campos do conhecimento cujo objeto não é, propriamente, a ação humana. Sobre a questão, cf. LOPES, José Reinaldo de Lima. Justiça em MURATA, Daniel Peixoto; MORBACH, Gilberto. Curso de filosofia do direito contemporânea. São Paulo: Editora Dialética, 2024.
[9] DWORKIN, Ronald. Justice for hedgehogs. Cambridge: Harvard University Press, 2011.
[10] DWORKIN, Ronald. Taking rights seriously. Cambridge: Harvard University Press, 1977, p. 272-273. Ressalte-se que, justamente em razão da importância dada por Dworkin à relação entre ética e moral, sua visão de neutralidade estatal é em muitos pontos distinta da apresentada por outros liberais igualitários, como John Rawls. Neste sentido, cf. DWORKIN, Ronald. Sovereign virtue: the theory and practice of equality. Cambridge: Harvard University Press, 2000, p. 138.
[11] DWORKIN, Ronald. Justice for hedgehogs. Cambridge: Harvard University Press, 2011, p. 274.
[12] Não é sem razão que outros autores têm se dedicado às questões de justiça envolvendo o direito sucessório e as heranças em particular. Neste sentido, merece destaque o trabalho de Arthur Cristóvão Prado, que analisa os problemas da legitimidade da transmissão hereditária de grandes patrimônios no Brasil, país profundamente desigual. Cf. PRADO, Arthur Cristóvão. Herança, desigualdade e tributação: o que há de errado com a transmissão hereditária de grandes patrimônios? São Paulo: Revista dos Tribunais, 2022.
Imagem Ilustrativa do Post: Capture 2017-04-06T13_56_54 // Foto de: blob rana // Sem alterações
Disponível em: https://www.flickr.com/photos/143045315@N03/33030523904
Licença de uso: http://creativecommons.org/licenses/by/4.0/legalcode