Apropriação Teórica e Cultura Política-Judiciária: O HC 152.752 enquanto uma janela para a auto-compreensão do nosso judiciário

20/04/2018

Coluna Direito e a Sociedade de Consumo / Coordenador Marcos Catalan

A polêmica em torno do uso da teoria da integridade no voto da Ministra Rosa Weber no HC 152.752 (https://www.conjur.com.br/dl/leia-voto-ministra-rosa-weber.pdf) nos dá uma excelente oportunidade para entender a forma como o nosso judiciário se percebe dentro da sociedade Brasileira. A ministra Weber usa o principio da colegialidade no contexto da teoria da integridade para proteger o interesse da integridade do STF enquanto interesse público - e parece-me que isso merece uma análise um pouco mais longa, e cuidadosa, do que as primeiras leituras da decisão da ministra ofereceram.

A primeira questão é ver como a teoria da integridade é abordada pelo Dworkin no império do Direito (LE) - e aqui a gente tem que ir com alguma calma.

Primeiro, o aspecto manifestamente político que a doutrina da integridade adquire no contexto do LE - o Dworkin está partindo do princípio que um equilíbrio ideal entre igualdade e justiça não é possível em casos concretos. Esse problema é um problema que nasce junto com o positivismo raiz (via Austin), mas vai ter suas repercussões via construtivista (no terceiro Kelsen), via positivista moderna (no Hart) e na via neo-construtivista (via Dworkin)

Na perspectiva do Dworkin isso deve ser lido, me parece, dentro da relação difícil que ele tem com o utilitarianismo do Mill, e na tentativa de superar uma saída meramente pragmática para o problema do conflito entre princípios. No Levando os Direitos à Sério, o Dworkin passa algumas paǵinas tentando resolver o problema da prioridade da liberdade no utilitarianismo do Mill, e chega até um limite para a prioridade da liberdade em casos de conflito entre liberdade e igualdade. Os primeiros ensaios do Dworkin sobre a teoria dos casos difíceis aparecem nesse contexto, que é um contexto de procura de equilíbrio entre princípios de justiça igualmente válidos, mas em conflito no caso concreto.

No Império do Direito a discussão sobre conflito entre princípios ressurge, dentro da teoria da integridade, que é sugerida como uma forma de fundamentar a interpretação sobre qual princípio deve ter prioridade em um caso concreto - a igualdade, ou a justiça? Dworkin é rápido em reconhecer que desde uma perspectiva metafísica, igualdade e justiça são fundamentos co-dependentes na ideia de Justiça com jota maiúscula, mas na vida real a coisa não é tão simples - e a gente vai ter que optar em privilegiar algum ponto de vista, com base em algum argumento normativo por A ou B.

A integridade visa dar privilégio para qualquer que seja o argumento que sustenta o bem social, ou melhor colocado, a ideia de justiça, em termos amplos - mesmo que isso implique em dano ao caso concreto. Inversamente, ela também implica em dano a uma ideia ampla de justiça em favorecimento de uma situação concreta. O fundamento da decisão por um lado ou pelo outro é dado pelo próprio juiz, na sua prerrogativa discricionária.

A Ministra Weber aplica a teoria da integridade de forma primorosa, tecnicamente falando, na decisão dela. Ela prioriza a integridade do precedente, diante do caso concreto, ela prioriza uma equidade material ampla. Mas eu acho igualmente interessante perceber algo de fundo na decisão da Ministra, que é a forma que ela usa a teoria da integridade para dar prioridade PARA O SUPREMO. O interessante é que ela não prioriza, na decisão, nem um interesse abstrato de equidade, nem um interesse concreto de justiça, mas um interesse concreto da instituição em preservar a integridade do precedente.

Isso é um uso errado da teoria da integridade? Não exatamente. Mas ele indica algo que o Dworkin fala em outros trabalhos dele, sobre a forma como as decisões de juízes denunciam o seu próprio posicionamento institucional. Em outras palavras, é muito interessante que a Ministra usa a teoria da integridade, que é um mecanismo para assegurar estabilidade institucional através de decisões judiciais, para dizer que a estabilidade do SUPREMO pode estar em jogo naquela decisão

Tem tres coisas aqui:

- O uso da teoria da integridade, agora, deve deixar a defesa do Lula bem pessimista sobre as possibilidades de uma reversão do voto da Weber, na ADC que vem pela frente nos próximos meses.

- A importação de teorias é um troço perigoso. Especialmente sem contexto. A teoria do Dworkin presume um supremo orientado imparcialmente no caso concreto, e não um supremo orientado... pelo interesse do supremo

- No entanto, talvez a Weber, ao priorizar o interesse do Supremo esteja dizendo, de verdade, que ao criar precedentes o Supremo cria segurança jurídica. E surfar no conteúdo dos próprios precedentes é causar dano a malha institucional.

Esse último ponto está totalmente alinhado com a teoria de integridade. E quem disse que não tá só tá aborrecido pq a Weber não usou o construtivismo do Dworkin da forma que seria """esperado""". Só que aqui temos um outro problema cultural: o construtivismo na teoria do direito americana é uma teoria de fundo progressista lento, e de reforma. Esperar atos bruscos desse tipo de teoria é não entender o contexto), mais ainda, a teoria da integridade visa garantir o bom andamento institucional amplo, e não restrito - ao menos no papel.

O professor Rodrigues, no como decidem as cortes (http://editora.fgv.br/como-decidem-as-cortes-para-uma-critica-do-direito-brasileiro-), fala de forma primorosa sobre a capacidade que nosso judiciário tem de capturar argumentos teóricos que deveriam causar uma mudança de postura estrutural-institucional, e usa-los para re-afirmar a própria posição estrutural-institucional tradicional da corte. Esse caso é um exemplo claro disso, em vários sentidos, primeiro porque ninguém pode discutir a habilidade técnica da Ministra Weber na leitura de Dworkin, mas é igualmente impressionante que essa leitura seja usada para re-afirmar a posição imperial-decisória do próprio supremo, enquanto uma instituição forte o suficiente para ser protegida por um mecanismo que, na teoria de Dworkin, é usado para garantir o interesse público. Que a Ministra Weber encontre no interesse do supremo pela própria integridade algo para motivar uma afirmação do interesse social, amplo, é dizer que, desde a perspectiva do supremo, as prioridades do supremo tribunal federal são fortes o suficiente para motivar uma relativização de um preceito fundamental. Essa interpretação é uma janela enorme para como o nosso judiciário  se auto-compreende, e tem consequências sistêmicas enormes para o equilíbrio entre os três poderes no Brasil, consequencias que, parece, a gente só tá começando a perceber.

 

 

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