Coluna Espaço do Estudante
Faculdade e Universidades. O que temos é um processo de aprendizado e criação ou um processo de domesticação?
Turma lotada, gente correndo quase em devaneio, poderia até ser o retrato de um recreio - ensino médio -, mas não! Agora são outros rumos. Primeiro dia de aula, gente desconhecida, rostos que nunca vira em toda sua existência, mas há algo em comum com todas essas caras – esses caras pálidas! –, não só você, mas os outros também, ninguém se conhece. Talvez haja mais algo em comum, algo, além dos laços do desconhecimento, que os atam, algum desejo que vibra incandescente e indecentemente.
Primeiro dia de aula. Primeira aula e está lá, escrito em letras grandes na lousa (ou slide) “IED (Introdução ao Estudo do Direito)”. Novo mundo; tudo novo, sente-se arder no peito, até mesmo do mais desinteressado, uma brasa – labaredas! - de Justiça. Professores, geralmente no primeiro mês, já os entregam o memorável texto de Rui Barbosa, o grande Oração aos Moços[1]. Tens, ali, o que almeja, a justiça materializada em palavras, tem-se a vontade de colocar o coração à frente da busca acadêmica e do lugar no mundo, mas não digo um coração comum, digo o coração que Rui falara quando fazia dos glóbulos brotarem rios ao dizer que “ coração não é tão frívolo, tão exterior, tão carnal quanto se cuida. Há, nele, mais que um assombro fisiológico: um prodígio moral. É o órgão da fé, o órgão da esperança, o órgão do ideal. Vê, por isso, com os olhos d’alma, o que não vêem os do corpo.”[2]
Esse sentimento, brotado no seio da Universidade, pode crescer ou apodrecer, causado por fatores da própria instituição que oferecera esse sentimento. Há toda uma máquina, um engenho feito a talhar o indivíduo, algo que, em outro contexto, porém não em outro mundo, Foucault chamou de disciplina[3]; é um poder que trabalha em cima dos “corpos acadêmicos”, com a necessidade de fabricar o estudante perfeito, o papagaio do direito[4] com seu papel adequado, é necessário tornar os corpos dóceis, para então serem úteis, talvez seja algo herdado da filosofia benthamiana, afinal um acadêmico que decora e não pensa, que vomita as resposta e não sabe os fundamentos, que se submete e não critica, que prefere os plastificados – esquematizados, sistematizados e resumidos – e odeia os Tratados e todo conteúdo de peso teórico, tal aluno não insurge, não reage, continua na maré mansa, e isso (em termos utilitários) é bom, menos gente se sentirá incomodada, menos algazarra, menos contestação, enfim, uma maior felicidade para um maior número de gente.
Percebe-se que os corpos estão sendo domesticados, não para haver uma consciência crítica, mas para não ser um ser incômodo; produz-se um ser doméstico, dócil, que após cumprir o papel atribuído a si, que após submeter-se à máquina de poder (leia-se Universidade) tem-se como resultado um ser adequado ao sistema, um ser pronto para lançar ao mercado, às harpias. A adequação ao meio, a promessa de bons salários, de fortuna, é a ração que tenta alimentar, é o objeto de troca que faz o aluno de Direto se submeter às regras de adestramento.
Mas há outro caminho, pode ser que nessa rota – sem roteiro, apenas entrada - o ser não deixe adoecer aquele sentimento brotado na alma, aquele sentimento que foi dito no começo desse texto, pode ser que nesse caminho a Oração aos Moços, do Rui, prevaleça sobre o Advogado do Diabo, na figura do Reeves.
Nietzsche e seu Übermensch[5] (além-do-homem) que dizia de um ser maior, um ser que saiu da condição de verme, que superou a condição do humano. Pode ser que haja um aluno que para manter o espírito vivo e ser o dono de si, vá para além das máquinas de adestramento, que deixará a vontade de potência[6] - ou como diz Clóvis de Barros o tesão pela vida - ser a seiva bruta para o agir, expandir-se-á como um big-bang, buscando o profundo, buscando ser a originalidade e a diferença.
O dever a ser assumido no Direito, é um dever que tem como reflexo o seu papel nas relações intersubjetivas; reitero o “tem como reflexo”, pois o objeto em que se trabalha é o próprio indivíduo; os deveres assumidos são independentes e incondicionados, é um dever que o ser, com liberdade de consciência, assume consigo, somente após esse “pacto” – feito consigo mesmo – o indivíduo poderá refletir, com autonomia, nas relações intersubjetivas. Ou seja, aquele aluno (do começo do texto) com o sentimento que se acendeu em seu espírito, tem a plena liberdade – de consciência - para escolher os rumos pelos quais irá seguir, somente ele pode insurgir contra a máquina de poder que, de vária formas, tenta o docilizar e, por vezes, bestializá-lo, através dos constantes mecanismos de disciplina[7]. O que poderá guiar, nessa aurora que começa a reluzir na vida do recém-acadêmico, é o compromisso feito consigo mesmo.[8]
Quando se tem um sentimento de justiça, o que é comum na Faculdade de Direito, é imprescindível o uso da razão nas escolhas e o cuidado com os sentimentos e as promessas feitas consigo mesmo, ao escolher uma trajetória é necessário pensar e pesar nas e as motivações. Dizia Nietzsche “Pode-se prometer atos, mas não sentimentos; pois estes são involuntários. Quem promete a alguém amá-lo sempre, ou sempre odiá-lo ou ser-lhe sempre fiel, promete algo que não está em seu poder; mas ele pode prometer aqueles atos que normalmente são consequência do amor, do ódio, da fidelidade, mas também podem nascer de outros motivos.”[9] Um ser pode não conseguir cumprir a promessa de amar a humanidade e com isso ser justo, poderá fazer da tua promessa o motivo que conduzirá aos atos de um amor humano.
Pode ser que no futuro, após resistir a muita coisa, aqueles alunos da disciplina de IED tenham em si um sentimento mais puro e concreto; talvez assim: assumindo uma consciência de si; negando a submissão a essa máquina de poder disciplinar que busca domesticar, docilizar e mecanizar os “corpos acadêmicos”, fazendo seres autômatos; buscando ser algo além-do-homem, além do comum, algo original, autêntico até no que for igual. Talvez, assim, esses estudantes sejam resistentes às adversidades e poderão ver alguma razão em Rui quando orava que “legalidade e liberdade são as tábuas da vocação do advogado. Nelas se encerra, para ele, a síntese de todos os mandamentos.”[10]
Notas e Referências:
[1] Discurso que Rui escrevera para ser proferido em 1921, perante a turma de 1920 da Faculdade de Direito de São Paulo. Editado em 1956. Reeditado em 1997, edição a qual foi usada.
[2] BARBOSA, Rui. Oração aos moços. Edição popular anotada por Adriano da Gama Kury. – 5. Ed. – Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, 1997. P. 13
[3] Foucault, Michel. Vigiar e Punir: nascimento da prisão; tradução de Raquel Ramalhete. 40 ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2012. P. 131 e ss.
[4] Termo proveniente do texto de autoria do Luccas Tartuce, disponível em <http://emporiododireito.com.br/os-papagaios-do-direitoea-sociedade-dos-poetas-mortos-por-luccas-tartuce/ >.
[5] NIETZSCHE, Friedrich. Assim falava Zaratustra: um livro para todos e para ninguém. Tradução de Mário Ferreira dos Santos. 3. Ed. – Petrópolis, RJ: Vozes, 2014. P. 14. Ver também: TRINDADE, Rafael. NIETZSCHE – O ALÉM-DO-HOMEM [OU, O SUPER-HOMEM]. Disponível em: <http://razaoinadequada.com/2014/03/08/nietzscheoalem-do-homem-ouosuper-homem/>
[6] LINGIS, Alphonso. "The will to power". In:David B. Allison (Org.). The new Nietzsche. Cambridge: MITPress, 1985. P. 37-45. Tradução de Tomaz Tadeu.
[7] Foucault, Michel. Op. Cit., p. 137 e ss.
[8] NALINI, José Renato. Ética Geral e Profissional. 10. Ed. – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais. 2013. P. 531.
[9] NIETZSCHE, Friedrich. Humano, demasiado humano: um livro para os espíritos livres. § 54.
[10] BARBOSA, Rui. Oração aos moços. Edição popular anotada por Adriano da Gama Kury. – 5. Ed. – Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, 1997. P. 46/47
BARBOSA, Rui. Oração aos moços. Edição popular anotada por Adriano da Gama Kury. – 5. Ed. – Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, 1997.
Foucault, Michel. Vigiar e Punir: nascimento da prisão; tradução de Raquel Ramalhete. 40 ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2012.
LINGIS, Alphonso. "The will to power". In:David B. Allison (Org.). The new Nietzsche. Cambridge: MITPress, 1985. P. 37-45. Tradução de Tomaz Tadeu.
NALINI, José Renato. Ética Geral e Profissional. 10. Ed. – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais. 2013.
NIETZSCHE, Friedrich. Assim falava Zaratustra: um livro para todos e para ninguém. Tradução de Mário Ferreira dos Santos. 3. Ed. – Petrópolis, RJ: Vozes, 2014.
NIETZSCHE, Friedrich. Humano, demasiado humano: um livro para os espíritos livres.
PICOLI, Rogério Antonio. Utilitarismos, Bentham e a história da tradição. “Existência e Arte” – Revista Eletrônica do Grupo PET – Ciências Humanas, Estética e Artes da Universidade Federal de São João Del-Rei – Ano V– Número V – Janeiro a Dezembro de 2010.
TRINDADE, Rafael. NIETZSCHE – O ALÉM-DO-HOMEM [OU, O SUPER-HOMEM].Disponível em: < http://razaoinadequada.com/2014/03/08/nietzscheoalem-do-homem-ouosuper-homem/ >
TRINDADE, Rafael. NIETZSCHE – VONTADE DE POTÊNCIA. Disponível em: <http://razaoinadequada.com/2013/07/15/nietzsche-vontade-de-potencia/>
Mateus P. Gomes é graduando de Direito, da Faculdade Católica do Tocantins. . . .
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