Aprende - se pelo amor, não pela dor: sobre a confusão entre “limite” e “não

21/12/2015

Por Maíra Marchi Gomes -21/12/2015

Porque se chamava moço Também se chamava estrada Viagem de ventania Nem se lembra se olhou pra trás Ao primeiro passo, aço, aço Aço, aço, aço, aço, aço, aço

Porque se chamavam homens Também se chamavam sonhos

E sonhos não envelhecem Em meio a tantos gases lacrimogênios Ficam calmos, calmos Calmos, calmos, calmos

E lá se vai Mais um dia

E basta contar compasso E basta contar consigo Que a chama não tem pavio De tudo se faz canção E o coração na curva De um rio, rio, rio, rio, rio

E lá se vai Mais um dia

E lá se vai Mais um dia

E o rio de asfalto e gente Entorna pelas ladeiras Entope o meio-fio Esquina mais de um milhão Quero ver então a gente, gente Gente, gente, gente, gente, gente

E lá se vai Vai Vai Vai

Milton Nascimento

Já muito se debateu neste espaço, por vários autores, a respeito do tom repressivo/punitivista do Direito ocidental contemporâneo. Um tom presente não apenas no Direito Penal, mas nele por excelência. A ponto de, por exemplo, o Direito Penal ter-se tornado uma espécie de ícone do Direito ocidental contemporâneo. Ou, em outros termos, sua caricatura.

Respostas deste teor repressivo/punitivista são apresentadas por nosso Direito, portanto, não apenas aos conflitos, mas a todas as questões da vida. E os fundamentos deste tipo de resposta são, como não poderia deixar de ser, do senso-comum. Evidentemente que não se considera que o senso-comum seja algo do campo da ingenuidade. É, sim, do campo da alienação. Alienação, melhor explicando, a interesses político-econômicos.

O fato é que o senso-comum cria uma autonomia perante estes próprios interesses. A ponto de, como um ventríloquo, em certo momento passar a tomar, aos olhos daquele que o manipula, vida própria. Interesses político-econômicos criam determinado senso-comum para se justificar, mas ao mesmo tempo atender o senso-comum é o que move o interesse político-econômico. Daí é que não se sabe o que vem primeiro: interesses político-econômicos, ou o senso-comum presente numa certa mídia, na maioria das plataformas político-partidárias ou na conversa de elevador.

Aqui procurarei discorrer sobre o senso-comum, tão por vezes colocado numa posição de vítima irresponsável. Fá-lo-ei tendo por foco o tão propagado discurso que demanda “limites”. Aquele discurso que acredita piamente, por exemplo, que é a “falta de limites” que leva alguém a cometer crimes e que, portanto, “limites” é o que faz alguém deixar de cometer crimes. E aqui é importante dizer, para melhor caracterizar tal discurso, que ele também crê de maneira inabalável que “limite” é sinônimo de “não”. E, ainda, que “não” é sinônimo de repressão.

Refiro-me, ainda mais especificamente, à pedagogia tirana que leva adultos a despejarem “nãos” às crianças frente às suas expressões de que são crianças. Por exemplo:

* a proibição de que corram, sendo que a psicomotricidade dela exige que ocupem o espaço de maneira diferente da de um adulto. E como se não fossem necessários algumas quedas, esbarrões e outros acidentes para que se desenvolva uma noção adulta do espaço corporal;

* a proibição de que gritem, como se as crianças devessem ser como adultos vigiados por um outro fantasmático e persecutório, que se contêm para não fazerem aquilo que imaginam que incomodarão alguém antes mesmo deste alguém manifestar seu desagrado. Talvez fosse interessante permitir que as crianças vivenciem o outro dizendo diretamente a ela de seu desagrado perante, por exemplo, seus gritos. Ou até ensinar às crianças que nem sempre precisamos agradar o outro;

* a proibição de que interrompam conversas adultas para compartilharem algo que consideraram interessante (como se elas devessem, como nós adultos, não se alegrar com pouca coisa) ou simplesmente para interromper uma situação que para elas é entediante (conversas de adultos);

* a proibição de que peçam diversos objetos em locais como shoppings e supermercados, que, por si, são inundados de estímulos.  Como se crianças já devessem ter conquistado uma defesa  madura frente às garras do capitalismo. Neste particular, há os adultos que não se satisfazem com o cumprimento pela criança da regra por eles imposta de, por exemplo, escolher um único objeto. Estes chegam também a se incomodar com a dúvida da criança sobre qual objeto escolher, bem como sobre uma eventual tentativa de negociar a dita regra;

* a exigência de que comam em determinados horários e determinados alimentos, como se nossa saúde dependesse apenas de aspectos externos. Como se não fizesse muito mais mal colocar seja lá o que for, no horário em que for, num corpo nauseado de tristeza e revolta. E, ainda, como se adultos sempre comessem bem;

* a proibição de que mintam para os cuidadores ou os desobedeçam, como não se fosse fundamental ao desenvolvimento psíquico desafiar a lei pronunciada pelos cuidadores para, num outro momento, compreender que há uma lei que transcende os próprios cuidadores;

* a proibição de que crianças revelem que possuem sexualidade, como se isto sinalizasse alguma anormalidade. Trata-se da repressão, por exemplo, da masturbação infantil, sendo que o adequado seria apenas ensinar que esta ação não precisa ser feita perante os olhos alheios, até porque o outro não necessariamente deseja presenciar. Ou, até, de que a criança fique em poses que aos olhos dos adultos são sensuais, sente de perna aberta, deixe à mostra as roupas íntimas, etc[1].

Na verdade o que se procura com a repressão da sexualidade infantil é manter a repressão que o adulto faz da própria sexualidade, projetada na criança. Dela se espera sentir culpa, que é o que o adulto sente sobre si mesmo.

Sobre este particular, Freud (1898, p.305) já alertava sobre os danosos resultados de uma falta de liberdade por parte dos adultos em encararem a sexualidade infantil. Melhor dizendo, sobre a influência deste tabu sobre a sexualidade infantil no desenvolvimento de neuroses.

É preciso romper a resistência de toda uma geração de médicos que já não conseguem lembrar-se de sua própria juventude; o orgulho dos pais, que não se dispõem a descer ao nível da humanidade ante os olhos de seus filhos, precisa ser superado; e o puritanismo insensato das mães deve ser combatido — das mães que consideram um golpe incompreensível e imerecido do destino que “justamente os filhos delas sejam os que se tornam neuróticos”. Mas, acima de tudo, é necessário criar um espaço na opinião pública para a discussão dos problemas da vida sexual. Tem que ser possível falar sobre essas coisas sem que se seja estigmatizado como um arruaceiro ou uma pessoa que tira proveito dos mais baixos instintos (Freud, 1898, p.305)

Como se percebe, há uma ploriferação de normas criadas com o único propósito de fundamentar “nãos”. Uma necessidade de adultos que, de maneira análoga ao pássaro quero-quero, reproduzem de maneira autômata uma palavra (no caso, o “não”) porque a ela reduzem toda a sua comunicação. Adultos que querem ser os pronunciadores da lei, que invejam o gozo infantil, e que em nome disto procuram “adultizar” as crianças.

Àqueles sinceramente dispostos a bem cuidarem de crianças, um alento: a vida, por si, já ensinará a criança a se frustrar. Ela já é demasiado dura. O convívio em grupos, aquilo de que a natureza é capaz, e nosso próprio corpo nos ensinam desde muito cedo que não somos nós quem mandamos (Freud, 1930). Por que tornar pior a vida das crianças? Por que fazê-las imaginar um futuro pior do que ele já será, ou pelo menos antes do que ele virá a ser?

É a vida que deve ser o Outro para qualquer criança, e não seu cuidador. A Lei é a da vida, e não a do cuidador. Mas a pedagogia do terror talvez seja o que possibilita a expressão por parte destes adultos de sua precária elaboração dos limites que a eles a vida apresentou. Afinal, é uma oportunidade de se identificar com o vulnerável, e fazê-lo sofrer aquela dor que sofreu. Daí a tentativa, pelas mais estapafúrdias (porque irreais) formas, de fazê-lo sofrer. Cria-se, nesta direção, “nãos” como política de prevenção frente a perigos abstratos.

Santos (2005) já nos falou, a propósito dos países periféricos, de uma política penal substituta de uma política criminal. Também já discorreu sobre um Direito Penal com função de política social, e da participação dos símbolos de “iminência de perigo” neste processo. Porém, uma discussão que pode complementar esta análise é esta: como estes mecanismos expressam-se nos lábios que entendem que sua função é justificar mãos que apertam e chacoalham crianças, e nos olhos que se vangloriam por deles saírem palavras ameaçadoras.

O que está claro é que a função da repressão não é ajudar a criança a melhor viver, mas sim ajudar o adulto a lidar com o seu mal viver.

A supressão forçada de fortes instintos por meios externos nunca produz, numa criança, o efeito de esses instintos se extinguirem ou ficarem sob controle; conduz à repressão, que cria uma predisposição a doenças nervosas no futuro. A psicanálise tem freqüentes oportunidades de observar o papel desempenhado pela severidade inoportuna e sem discernimento da educação na produção de neuroses, ou o preço, em perda de eficiência e capacidade de prazer, que tem de ser pago pela normalidade na qual o educador insiste. E a psicanálise pode também demonstrar que preciosas contribuições para a formação do caráter são realizadas por esses instintos associais e perversos na criança, se não forem submetidos à repressão, e sim desviados de seus objetivos originais para outros mais valiosos, através do processo conhecido como “sublimação”. Nossas mais elevadas virtudes desenvolveram-se, como formações reativas e sublimações, de nossas piores disposições. A educação deve escrupulosamente abster-se de soterrar essas preciosas fontes de ação e restringir-se a incentivar os processos pelos quais essas energias são conduzidas ao longo de trilhas seguras (Freud, 1913. p.225)

Lembrei dos índios brasileiros, que

  • não se cansam de rir ao acompanharem à distância a correria e gritaria das crianças;
  • compreendem que a função de estarem ao alcance de crianças ininterruptamente é que elas encontrem braços abertos quando até eles elas correrem após algum acidente;
  • não deixam de afagar as crianças quando perto deles elas chegam;
  • têm clareza de que não devem levar crianças a todas as situações adultas (a começar porque para elas é chato aquilo de que não compreendem);
  • não xingam ou ameaçam crianças, soberbamente proferindo etiquetamentos e profecias tenebrosas;
  • por vezes deixam as crianças sozinhas quando estão fazendo coisas de crianças (a sabedoria lembrada por Winnicott (1983) de o cuidador ser desnecessário);
  • humildemente acreditam que é a criança quem dirá quando já for adulta, a partir de como ela consegue (ou não) executar ações adultas. Logo, a elas gradativamente é permitido arriscar, por exemplo, andarem de barco e caçarem sozinhas. Até porque os adultos não têm medo de chegarem ao tempo em que elas já possuem muitas habilidades adultas e, portanto, que já não precisam ser plenamente submetidas a adultos.

A mim parece que eles melhor entenderam que “limite” é muito mais uma demarcação de possibilidades que “não”. Pensemos numa linha que não se pode ultrapassar. Tem-se basicamente duas possibilidades de lidar com ela: lamentar que não se pode ter o que (imaginariamente) está após ela, ou ser criativo frente ao que se pode fazer antes ou ao lado dela. Talvez o desafio de viver em civilização seja, ao lado de lidar com as restrições que ela impõe, bem saber qual restrição de fato é necessária. E ainda, quando ela é justificável, considerar que a dor pela perda daquilo que o sujeito abdica não pode ser maior que a felicidade que ganharia junto ao social[2].

não podemos perceber por que os regulamentos estabelecidos por nós mesmos não representam, ao contrário, proteção e benefício para cada um de nós. Contudo, quando consideramos o quanto fomos malsucedidos exatamente nesse campo de prevenção do sofrimento, surge em nós a suspeita de que também aqui é possível jazer, por trás desse fato, uma parcela de natureza inconquistável — dessa vez, uma parcela de nossa própria constituição psíquica. Quando começamos a considerar essa possibilidade, deparamo-nos com um argumento tão espantoso, que temos de nos demorar nele. Esse argumento sustenta que o que chamamos de nossa civilização é em grande parte responsável por nossa desgraça e que seríamos muito mais felizes se a abandonássemos e retornássemos às condições primitivas. Chamo esse argumento de espantoso porque, seja qual for a maneira por que possamos definir o conceito de civilização, constitui fato incontroverso que todas as coisas que buscamos a fim de nos protegermos contra as ameaças oriundas das fontes de sofrimento, fazem parte dessa mesma civilização (FREUD (1930 [1929], p.105)

Recordei por fim de uma menina de onze anos encharcada de repressões por todas as direções. Sofreu violência física e psicológica, sendo que quando questionada pelos motivos alegados pelos adultos para com ela daquela forma agirem, respondia que não sabia, ou que ela merecia.

Nada sabia dizer sobre seu futuro, e em determinado momento no qual narrava sua história já longa de vida, disse “muita coisa aconteceu na minha frente!”.  Só enxergava linhas de ultrapassagem interditada, porque foram muitas ou muito fortes. Foi uma presa do “não”.


Notas e Referências:

[1] Desnecessário lembrar que esta repressão é maior no caso das meninas. [2] Um questionamento que se pode aplicar à ploriferação de ações incondicionadas.

FREUD, S. (1898). A Sexualidade na Etiologia das Neuroses. In_____.(1996) Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, v. III.

FREUD, S. (1913). O Interesse Científico da Psicanálise. In_____.(1974) Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, v. XIII.

FREUD, S. (1930). O Mal-Estar na Civilização. In_____.(1974) Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, v. XXI.

SANTOS, J.C. dos. (2005). Teoria da Pena: Fundamentos políticos e Aplicação judicial. 21.ed. Curitiba: ICPC/Lúmen Júris.

WINNICOTT, D.W. (1983). O ambiente e os processos de maturação: estudos sobre a teoria do desenvolvimento emocional. São Paulo: Artmed.


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Maíra Marchi Gomes é doutoranda em Psicologia, mestre em Antropologia pela Universidade Federal de Santa Catarina e Psicóloga da Polícia Civil de SC.  

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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


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