Apontamentos sobre a “Pré - Ocupação” de Inocência

20/07/2015

Por Augusto Jobim do Amaral – 20/07/2015[*]

A teoria das presunções intervém em qual­quer controvérsia (GIL, 1984, pp. 484 ss.). Com o processo penal, não seria diferente. Se, de modo mais simples, a prova é a atividade ne­cessária para se verificar se um sujeito cometeu um delito, até que ela se produ­za mediante um juízo regular, ninguém poderá ser considerado culpado. Assim o princípio da jurisdicionalidade postula a presunção de inocência. Trata-se, para além de ser presunção “até que se prove o contrário”, de um corolário lógico-ra­cional do próprio processo penal e pri­meira garantia fundamental assegurada ao cidadão pelo procedimento (LUC­CHINI, 1899, pp. 10 e 15). Em que pese o princípio da presunção de inocência ter inicialmente sido afirmado a todos sob reflexo de uma concepção positiva e otimista do homem, respaldado por uma valoração probabilística (CARMIGNANI, 1854, p. 145), independentemente da aceitação disto no passado, atualmente é mais que isso: é estado fundamental do cidadão, retrato da opção política ín­sita ao Estado Democrático de Direito.

O substrato radical da presunção de inocência alude uma clássica opção ga­rantista de civilidade “a favor da tutela da imunidade dos inocentes, incluso ao preço da impunidade de algum culpável” (FERRAJOLI, 1995, p. 549). Razão tão bem explicada por Carrara - em prol do maior interesse que todos os inocentes sejam protegidos -, pela con­traposição entre o “mal certo e positivo” da condenação de um inocente em opo­sição ao “mero perigo” (de delitos futu­ros) representado pela absolvição de um culpável (CARRARA, 1863, p. 373). Trata-se de máxima ideal a ser trabalhada e que deveria denotar a radical inclinação de qualquer sistema processual penal. Na medida em que a falta é constitutiva, e não se alcançará a punição de todos os culpados, nem mesmo o resguardo de todos os inocentes, importará indagar, democraticamente, se é preferível ter­mos certo número de casos de culpáveis absolvidos com nenhum (ou menor) risco de algum inocente condenado ou, pendente ao au­toritarismo, aceitar-se idealmente todos os cul­pados condenados, mesmo que ao preço de algum inocente.

Alternativa política esta fundada na linha tênue do complexo nexo entre liberdade e segurança, não raro tidos como irreconciliáveis. O que avança é o enorme investimento no cerceamen­to de liberdades presente nas dinâmicas securitárias sob a promessa de menos risco, que acabam por acarretar nenhum acréscimo de segurança e, como resulta­do certo, trilham a passos largos para re­gimes autoritários (DELMAS-MARTY, 2010, p. 237). Distanciamo-nos da necessá­ria premissa, ao menos neste ponto, de que ambos os elementos devem estar implicados. Segundo Paga­no e antes ainda Montesquieu (MON­TESQUIEU, 1977, p. 217; PAGANO, 1787, pp. 27-28) porque apenas algu­ma segurança poderá ser conquistada na medida em que houver confiança na não violação da liberdade de quem quer que seja. Aqui os dois valores jamais vistos excludentemente, em que se pudesse afastar a convicção de que a segurança está as­sentada na própria liberdade política.

Neste sentido, a presunção de inocência acaba por ser não apenas uma garantia de liberdade como valor fundamental – e de que a verda­de produzida validamente no processo penal não será hipertrofiada e sujeita a qualquer preço (AMARAL, 2009, pp. 02-04) – mas de segurança e confiança dos cidadãos na prestação jurisdicional. O medo como sintoma que assola o ino­cente demonstra tão somente o compas­so da quebra da função jurisdicional e a inversão ideológica correlata às práti­cas inquisitivas de seu obscurecimento (cf. PAGANO, pp. 83-92; CORDERO, 1981, pp. 625-658; FERRAJOLI, 1995, p. 550).[1]

Diante da contraposição das hipóteses trazidas ao processo penal, é sobre a dúvida que se fala e, conse­quentemente, sobre a solução a ser esco­lhida ao final (vê-se, assim, claramente a implicação disto com a carga da prova). A presunção de inocência funciona, pois, neste diapasão, desde o mesmo operador que proíbe a gerência da prova pelo magistrado. Fun­ciona como um estabilizador de expecta­tivas que, na mesma medida que vedará o juiz de realizar qualquer diligência em caso de dúvida sobre a matéria de juízo, torna-se um instrumento pronto para atu­ar se, ao final do processo, remanescer a falta de comprovação legítima da hipótese acusatória (ao bom entendedor, nada de juízes “samambaias”, portanto!). A seu modo, a presunção de inocência não aventa apenas uma “nor­ma de tratamento” - daí se extrai como regra processual (como correlato lógico atinente ao fato de que o processado é inocente) a carga da prova atribuída à acusação (GOLDSCHMIDT, 1935, pp. 46-47 e 52-53).

Desta forma, rigorosamente falando, poderíamos chegar ao ponto extremo de, englobando a carga da prova, à for­ça obviamente apenas da sua condição de valoração radical, falar apenas da presunção de inocência (ILLUMINATI, 1984, p. 110 ss.). É desta maneira que o autor prescreve a presunção de inocência como norma de juízo, ou seja, produto da proibição de alguém ser condenado senão quando completamente provada sua culpabilidade. Isto, sobretudo, faz-nos vislumbrar a radical simetria quanto aos valores aqui envolvidos, independen­temente do viés abordado: presunção de inocência e carga da prova, intimamen­te vinculadas. A visão da presunção de inocência, sistematicamente posta como norma de tratamento, norma probatória ou norma de juízo (como fez marcante­mente MORAES, 2010, pp. 424 ss.) não afasta, muito pelo contrário, é aprofunda­da quando o que há de determinante em sua gênese deixa ultrapassar seu mero escopo jurídico: a natureza de regra de fechamento, quer dizer, horizonte de ex­pectativa a ser preenchido com a decisão política auferida na sentença quando per­sistir a dúvida a ser convertida em certe­za jurídica.

Ao que parece ser, no momento em que as presunções são informadas por operadores como a confiança (na democracia jurisdicional), aqui en­contra lugar cativo a evidência (cf. GIL, 1996), podendo ela ser usada em favor da maximização das expectativas acusa­tórias. A presunção de inocência, como retrato ao portador (do réu) da evidência (prévia escolha do terreno democrático) como aliada, tem papel central na arena do convencimento. Ela funciona, para o bem de uma lógica acusatória, como es­tabilizadora de expectativas, ademais, significando, pelo próprio mecanismo da confiança por ela desencadeado, a repre­sentação de um desejo de preenchimento de um sistema acusatório. A primazia da identidade combinada a uma certa ideia de estabilidade, irremediavelmente in­voca a base epistêmica da presunção: “a presunção é apanágio da evidência” (MARTINS, 2010, p. 10), e o problema fulcral passa a ser a gestão das expecta­tivas que nela se deposita, a cargo do magistrado democraticamente preocupado. A evidência, mesmo que devendo ser constrangida num extremo (pois dispensa a prova) – não há espaço para refletir sobre isso aqui – , não se conserva alheia ao jogo probató­rio (pois é sua base) e pode implicar, com o seu operador de confiança aplicado na presunção, hábil mecanismo de minimi­zação das pulsões punitivas.

Por seu turno, se no direito a presun­ção está a serviço da justeza do processo, que paradoxalmente é a mediação invo­cada pelo operador da prova, ela deve ser acompanhada, de uma “pré-ocupação do terreno”. Aí o nosso ponto nodal que sacamos da epistemologia de Whateley: “de acordo com o uso mais correto do termo, uma ´presunção´, em favor de qualquer suposição, significa, não (como por vezes tem sido erroneamente imaginado) uma preponderância de uma probabilidade favorável, mas uma ´pre-ocupação´ do terreno, que implica sua higidez até que alguma razão suficiente seja aduzida contra ela; em suma, que a carga da prova recaia do lado daquele que deve contestá-la.” (WHATELY, 1830, pp. 98-99).

Assim, a evidência, a bom termo exposta através da pré-ocupação de inocência, pode atuar em local especial no dispositivo proces­sual penal. À primeira vista, a evidência apenas vista como alvo a ser conti­do pela prova, passa, num primeiro plano da cena, através da pré-ocupação de inocência, exatamente a comun­gar esforços na contenção das pulsões inquisitoriais. A evidência, no campo processual penal, não pode ser eliminada, tal como a verdade, mas deverá habilmente ser canalizada – e o salto responsável aí está – como uma convidada estraté­gica atuante, quando não uma parceira da engre­nagem probatória, pronta a resguardar o regime da prova que se fixará também a partir dela. Diretamente dito: indisso­ciável será, por um lado, um regime de prova alheio ao protagonismo judicial na sua coleta, ou seja, valorizador pleno do sistema acusatório, e, por outro, o assen­timento da presunção de inocência que poderá, inclusive, defendê-lo de eventu­ais incidências ou invasões da evidência em nível de complementação probatória a cargo do magistrado. Saber atuar nes­tes jogos difíceis é propriamente ter a noção do quanto o regime da evidência deve reforçar os lastros democráticos do processo penal.


Notas e Referências:

[*] Artigo publicado no Boletim Informativo do IBRASPP (Instituto Brasileiro de Direito Processual Penal) – Ano 2 – ISSN 2237- 2012/01. Ademais, cf. o nosso “Política da Prova e Cultura Punitiva: a governabilidade inquisitiva do processo penal brasileiro contemporâneo (São Paulo: Almedina, 2014, pp. 407-430).

[1] Dado como pressuposto das demais garantias e elevado a postulado racional e jurídico fundamental da ciência processual (CARRARA, pp. 370-371), a presunção de inocência tem sido alvo, desde o XIX, sistematicamente do ataque do pensamento autoritário. Não seria necessário deflagrar uma disputa desta visão com o pessimismo antropológico fascista que inspirou o brasileiro CPP/41 diante da assunção do modelo republicano de democracia (MORAES, 2010, pp. 155 ss). Dispensável ainda no­vamente rever as odes de Alfredo Rocco (ROCCO, in MANZINI, 1931, pp. IX-X) à reação de Manzini ao Código italiano de 1930 acerca da presunção de inocência; fragilidade que impôs, segun­do o Ministro de Mussolini, tantos danos à justiça criminal - por isso seu Código centrado na incisiva intervenção capital do ma­gistrado e seu protagonismo combinado ao menosprezo a este princípio (MANZINI, 1929, p. 22 e MANZINI, 1931, pp. 175-184). Para chegar aos adágios fascistas de Manzini, foi antes na Escola Positivista italiana que o arsenal foi montado para poder munir a autoridade e o golpe decisivo sobre ela dado pelo Código Rocco de 1930. Estratégia central da toada fascista que se transportou incólume à legislação brasileira juntamente com a centralidade e controle do magistrado sobre a prova. Ambos os corolários – desprezo pela presunção de inocência e gestão da prova sobre a égide do juiz – podem ser dispostos como faces do mesmo centavo (cf. GAROFALO, 1893, pp. 394-395 e FERRI, 2006, pp. 241-242). Os dois, em paralelismo notável, procuraram atacar a medula que erige não apenas um sistema acusatório, mas a disputa pela arte do verossímil (GIL, 2001, p. 74).

AMARAL, Augusto Jobim do. “Algumas (Re)Descrições sobre a Verdade no Processo Penal”. In: BOLETIM (Publicação Oficial do IBCCrim), ano 17 – nº 202 – setembro/2009, pp. 02-04.

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Sem título-23

Augusto Jobim do Amaral é Doutor em Altos Estudos Contemporâneos (Ciência Política, História das Ideias e Estudos Internacionais Comparativos) pela Universidade de Coimbra (Portugal); Doutor, Mestre e Especialista em Ciências Criminais pela PUCRS; Professor da Faculdade de Direito da PUCRS.

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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


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