Coluna Vozes-Mulheres / Coordenadora Paola Dumont

Desde o julgamento do habeas corpus nº 126.692/SP pelo Supremo Tribunal Federal, muito já foi dito e escrito sobre a conformidade da execução provisória da pena com o princípio da presunção de inocência insculpido no artigo 5º, inciso LVII, da Constituição da República. A conclusão compartilhada por grande parcela dos profissionais e acadêmicos do direito não poderia ser outra: o texto constitucional é claro ao condicionar a culpabilidade ao trânsito em julgado da sentença penal condenatória. E onde a regra é clara, o espaço para a interpretação é limitado. Em síntese, a execução da pena antes do advento de decisão definitiva não se coaduna com o princípio da presunção de inocência, nos moldes trazidos pela Constituição de 1988.

Porém, como dizem os versos de um belo samba de Paulinho da Viola, “as coisas estão no mundo só que eu preciso aprender”[1]. E nosso papel, nesse imbróglio jurídico que tem se formado acerca do tema, é duplo: de um lado, manter a crítica e lutar, de todas as formas possíveis, para que o entendimento prevalente no Supremo Tribunal Federal seja alterado; de outro, tentar entender e lidar, nas situações práticas, com o que foi assentado até então.

No presente texto, atemo-nos a algumas questões operacionais, pontuais, que têm suscitado dúvidas sobre a execução provisória da pena. Sem pretensão de esgotar a temática, pretendemos apontar algumas dificuldades enfrentadas na compreensão e operacionalização da execução provisória e que, em última instância, revelam mais uma vez a inconsistência teórica dos argumentos utilizados por ministros do Supremo Tribunal Federal para sustentar seus posicionamentos, favoráveis a essa nova categoria do processo penal.

O primeiro questionamento a ser realizado é sobre a natureza jurídica da prisão decorrente de execução provisória da pena. Afinal, trata-se de prisão cautelar ou prisão pena? A distinção é fundamental para elucidar outras indagações que serão colocadas adiante, notadamente os pressupostos autorizadores da execução provisória e o tratamento dado outros efeitos da condenação.

A resposta, porém, não é fácil. Ao mesmo tempo em que fala de execução antecipada da pena – o que levaria a crer que se trata de prisão pena, e não cautelar – o Supremo Tribunal Federal faz referências a elementos típicos da prisão preventiva, não permitindo elucidar precisamente a natureza jurídica desta prisão.

No voto proferido no HC nº 126292/SP, o Ministro Teori Zavascki – relator – afirmou que “é no âmbito das instâncias ordinárias que se exaure a possibilidade de exame de fatos e provas e, sob esse aspecto, a própria responsabilidade criminal do acusado”. Faria sentido, por isso, negar efeito suspensivo aos recursos especial e extraordinário e permitir a execução da pena na pendência de tais recursos.

No mesmo julgamento, o Ministro Roberto Barroso asseverou que “no momento em que se dá a condenação do réu em segundo grau de jurisdição, estabelecem-se algumas certezas jurídicas: a materialidade do delito, sua autoria e a impossibilidade de rediscussão de fatos e provas”. Assim como no trecho do voto anteriormente citado, é possível inferir que os ministros consideram se tratar de um efetivo cumprimento de pena, e não de prisão cautelar. Curiosamente, o Ministro Barroso, para assentar a possibilidade da prisão, afirma que “neste cenário, retardar indefinidamente a prisão do réu condenado estaria em inerente contraste com a preservação da ordem pública (...)”, sendo certo que a garantia da ordem pública é um dos pressupostos legais da prisão preventiva.

A dúvida persiste quando se analisam diversos julgados que vieram após o julgamento do habeas corpus acima mencionado. No julgamento do HC nº 148.569/RR, o Ministro Ricardo Lewandowiski – que, sabe-se, tem posicionamento pessoal contrário à possibilidade de execução provisória da pena – deferiu medida liminar sob o argumento de que “o julgamento do HC nº 126.292/SP, não legitimou toda e qualquer prisão decorrente de condenação de segundo grau. Nós admitimos que seja permitida a prisão a partir da decisão de 2º grau, mas não dissemos que ela é obrigatória”. Na apreciação de liminar no HC nº 152.752/PR, o Ministro Gilmar Mendes asseverou que “em momento algum daquele julgamento [HC nº 126.292/SP] foi dito que, confirmada a condenação em segunda instância, o início do cumprimento da pena privativa de liberdade seria impositivo”.

Ora, se se trata de execução antecipada da pena – e não prisão cautelar –, qual o sentido de se autorizar em determinados casos e não outros? Se o acórdão condenatório permite concluir pela culpabilidade, conforme apontado por alguns ministros, como distinguir as hipóteses em que a culpabilidade supostamente formada autoriza desde já e execução da pena daquelas em que não é cabível a antecipação?

A dificuldade não para por aí. No HC nº 147.452/MG, o Ministro Celso de Mello deferiu medida liminar para suspender execução provisória da pena determinada por decisão que se limitava a fazer referência à jurisprudência sobre o tema, sem apresentar fundamentação idônea. No mesmo sentido, a decisão liminar deferida pelo Ministro Ricardo Lewandowiski no HC nº 148.569/RR, para quem “a decisão, que apenas faz remissão a julgado deste Tribunal para decretar a prisão do paciente, não se afigura revestida de motivação hábil (...)”.

Aqui também persiste a dúvida: na medida em que se trata de execução de pena, a fundamentação necessária não se confunde com os fundamentos do acórdão condenatório? Demonstrada a autoria, a materialidade e realizada a individualização da pena não estaria definida a responsabilidade penal?

A única certeza possível de se delinear é que ao decidir pela compatibilidade da execução provisória da pena com o princípio da presunção de inocência, o Supremo Tribunal Federal não se atentou às categorias jurídicas das prisões, criando uma anômala modalidade de prisão-definitiva-provisória. Ou cumprimento cautelar de pena. Ou qualquer outra categoria estapafúrdia que despreza a lógica jurídica e se apega somente a apelos populistas-punitivos. Estabelecido o caos, muitas perguntas ficam sem resposta, como algumas outras que serão apresentadas a seguir.

Sobre as penas restritivas de direitos. Poderão elas ser executadas provisoriamente?

Voltamos à discussão anterior. Em tese, se o cumprimento da pena antes do trânsito em julgado da sentença condenatória é compatível com o princípio da presunção de inocência, seria razoável entender que é possível executar qualquer pena, quanto mais não restritivas de liberdade. Afinal, quem pode o mais – executar uma privação de liberdade – deveria poder o menos – executar uma restrição de direito.

Todavia, recente decisão do Superior Tribunal de Justiça seguiu caminho diverso.

Quando do julgamento do HC nº 458.501/SC, a Ministra Laurita Vaz deferiu em pedido liminar a suspensão de execução antecipada de pena restritiva de direitos, sob o argumento de que a terceira seção da Corte já teria fixado entendimento quando do julgamento do recurso especial n.º 1.619.087/SC, no sentido de não ser possível a execução provisória em razão do disposto no artigo 147 da Lei de Execuções Penais. Além disso, ao debater o tema da execução provisória, o Supremo Tribunal Federal não teria se manifestado especificamente sobre a execução de penas restritivas de direito, ou seja, não afirmou de forma expressa que a execução antecipada destas penas seria compatível com o princípio da presunção de inocência.

Assim, de acordo com o entendimento firmado pelo Superior Tribunal de Justiça, em que pese a decisão do STF autorizando a execução provisória da pena privativa de liberdade, não seria possível executar penas restritivas de direitos antecipadamente.

O primeiro fundamento de tal decisão se dá em razão da falta de manifestação expressa da Corte Superior quando da análise do HC nº 126.692/SP sobre esse tipo de pena em específico. Esse argumento empregado pela Ministra Laurita Vaz é muito significativo: o Supremo Tribunal Federal ainda não se posicionou sobre o tema. Mostra um apego à autoridade da decisão, não aos argumentos jurídicos.

O segundo argumento empregado pela ministra – cumprimento da norma contida no art. 147 da LEP - reforça o que foi dito anteriormente e contrasta com a argumentação exarada pela corrente majoritária no HC nº 126.292/SP. Isso porque, se analisarmos o conteúdo inserido na Lei de Execução Penal podemos perceber similitude com o artigo 283 do Código de Processo Penal, sendo que ambos reproduzem o teor da garantia da presunção de inocência insculpida no art. 5º, LVII, da CR/88.

De acordo com a letra de lei, tanto na Constituição da República de 1988 como na Lei de Execução Penal, somente é possível dar início ao cumprimento de pena após o trânsito em julgado de sentença penal condenatória.

Ainda que se argumente que as penas restritivas de direito têm regramento jurídico próprio, não devemos nos esquecer que o Código de Processo Penal prevê expressamente, no artigo 283, o trânsito em julgado da sentença condenatória como pressuposto para a execução provisória da pena privativa de liberdade.

Paira, então, a dúvida: como o argumento de que a necessidade de se aguardar o trânsito em julgado, porquanto expressamente previsto na legislação infraconstitucional, vale para a pena restritiva de direitos, mas não vale para a pena privativa de liberdade, já que, quanto a esta, também há expressa disposição legal?

Influenciados pelo apelo popular e demonstrando claramente o decisionismo, os Tribunais Superiores ora decidem que a execução provisória da reprimenda deve se iniciar com o trânsito em julgado de sentença penal condenatória (Medida Cautelar no HC nº 153.431/SP), ora decidem que é possível executar a pena com a condenação em segunda instância (HC nº 126.292/SP), ora decidem que é possível executar provisoriamente a pena, mas não quaisquer, somente aquelas que aquele Tribunal julgador entender conveniente. Logo, não há resposta juridicamente adequada para a pergunta formulada acima.

Dando seguimento à proposta do texto, destacamos outro ponto sobre o qual pairam dúvidas após a decisão do STF no HC nº 126.692/SP, desta vez relacionado à suspensão dos direitos políticos em razão de condenação criminal, prevista no artigo 15, inciso III, da Constituição da República de 1988. A questão adquire maior relevância na medida em que estamos em ano eleitoral e, inclusive, há um pré-candidato à Presidência em regime de execução provisória de pena.

O dispositivo legal, inicialmente, não representaria maiores dificuldades para compreensão, sendo suficiente, para sua análise, uma interpretação literal de seu conteúdo. O imbróglio se instaura com a relativização, pelo Supremo Tribunal Federal, do conceito de trânsito em julgado, cabendo investigar se a flexibilização se estende também à hipótese de suspensão dos direitos políticos.

Os acórdãos do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça não têm feito menção expressa acerca do tema. É possível concluir, então, que por não haver determinação de imediata suspensão dos direitos políticos, estes são mantidos inclusive quando iniciado o cumprimento da pena de prisão em caráter provisório, seguindo a mesma lógica estabelecida no cumprimento das penas restritivas de direitos.

Dessa forma, mesmo diante da execução provisória da pena privativa de liberdade conserva-se o direito de votar e ser votado. Lembre-se que a Resolução nº 23.461/2015, do Tribunal Superior Eleitoral, prevê a implantação de seções eleitorais especiais em unidades prisionais e estabelecimentos de internação de adolescentes, de modo a garantir a viabilidade do direito ao voto dos presos provisórios – definidos pela Resolução (art. 2º, I) como pessoas recolhidas em estabelecimento prisional sem condenação criminal transitada em julgado – e adolescentes internados.

É importante não confundir o direito de ser votado em razão da não-suspensão dos direitos políticos com a hipótese de inelegibilidade por condenação criminal prevista na Lei Complementar nº 64/90 (alterada pela Lei Complementar nº 135/2010 - Lei da Ficha Limpa). Esta é mais restrita, por ser consequência da condenação por crimes previstos em rol taxativo (artigo 1º, I, e, itens 1 a 10 da LC nº 64/90). Além disso, a inelegibilidade é matéria a ser conhecida e declarada pela Justiça Eleitoral, ao contrário da suspensão dos direitos políticos prevista na Constituição, que é determinada pelo juiz criminal. Assim, não existe, a priori, impedimento para que indivíduos em situação de execução provisória da pena lancem-se como pré-candidatos a cargos eletivos, participem de atos eleitorais compatíveis com a restrição de liberdade e solicitem registro de candidatura. O deferimento – ou não – do registro será analisado pela Justiça Eleitoral a partir da Lei Complementar já mencionada.

Por fim, não é possível analisar a questão aqui tratada sem fazer referência ao contexto carcerário em que estamos inseridos. Diante de uma cultura que se demonstra exaustiva e diuturnamente em prol do encarceramento em massa – com toda a violação de direitos que isso implica -, caberia ao Supremo Tribunal Federal fazer coro ou manifestar-se como efetivo guardião da Constituição da República de 1988?  Ou seja, se é evidente que se prende muito e mal, deveríamos prender ainda mais e ainda pior, negando ideais essencialmente democráticos?

Para dizer o mínimo, é irresponsável violar o princípio da presunção de inocência sob o pretexto de garantia da ordem pública ou da incapacidade do judiciário em garantir o princípio da razoável duração do processo (prevista no art. 5º, LXXVIII, da CR/88). Esse posicionamento formaliza que, em razão da ineficiência do sistema judiciário e do clamor público forjado por uma mídia que vende temor e sensação de impunidade[2], mais garantias e direitos fundamentais devem ser relativizados.

Isso, por si só, já seria barbárie o suficiente para um Estado que se diz ou se pretende democrático. Se considerarmos a população carcerária atual, o índice de seu crescimento e a incapacidade de criação de vagas no sistema carcerário, o posicionamento ora debatido assume contornos torturantes. Há, de fato (e cada vez mais), um grupo de punidos e mal pagos, como já exposto por Nilo Batista[3].

Estamos falando de uma população de 726.712 pessoas presas, com um déficit de 358.663 vagas, e que aumenta em relação ao número de habitantes no país. A taxa de pessoas presas por grupo de 100 mil habitantes em 2014 era de 306,22 e em 2016 passou para 353. Mais que isso, falamos de uma maioria negra de 64% e de 75% que, quanto à escolaridade, não chegou ao ensino médio. Cabe falar ainda que 40% das pessoas presas estão na condição de presas provisórias.[4]

Ao analisar o encarceramento, a professora Camila Caldeira Nunes Dias chama atenção para uma crise que abarca os três poderes, não apenas o judiciário. A autora aponta a divergência dos discursos e das propostas apresentadas pelos mesmos e o resultado gerado por eles. De acordo com Dias, a "crise carcerária" figura como um projeto político, uma vez que o Estado - através de suas várias instituições - permanece criando as condições para a permanência e o agravamento da 'crise prisional' - atuando de forma direta e inconteste na produção dos elementos que são constitutivos desta crise[5].    

Ao que parece, é esse o cenário que o STF, encabeçando o Judiciário, pretende perpetuar. Prender cada vez mais pessoas e com cada vez menos condenações transitadas em julgado, ainda que os ministros que compõem o STF tenham a consciência de que várias decisões de segunda instância são reformadas nos tribunais superiores.

Além disso, parece não haver qualquer preocupação sobre as condições em que essas prisões vão ocorrer ou se tal situação geraria violação de direitos e garantias ou, ainda, se implicaria em insegurança jurídica através de malabarismos argumentativos que não guardam fundamentação teórica sólida.

O judiciário nega, assim, o exercício de sua função contramajoritária, que seria retirar a vingança das mãos dos cidadãos e garantir que a resposta às condutas desviantes ocorresse nos moldes definidos por lei. Há, portanto, uma postura que ignora e contraria os limites necessários a um Estado Democrático de Direito.

O julgamento do HC 126.962/SP escancara um judiciário que responde de diferentes maneiras a situações semelhantes, a depender da conclusão que pretende alcançar. As anomalias geradas, a partir de uma interpretação que ora se direciona à prisão cautelar e ora à antecipação da pena, demonstram que o caminho determinado pelas regras processuais e pelas balizas estabelecidas por princípios e garantias fundamentais não é o que tem sido trilhado pelos Tribunais Superiores em suas decisões sobre execução provisória da pena.   

 

Notas e Referências

BATISTA, Nilo. Punidos e mal pagos: violência, justiça, segurança pública e direitos humanos no Brasil de hoje. Rio de Janeiro: Revan, 1990.

DIAS, Camila Caldeira Nunes Dias. Encarceramento, seletividade e opressão: a "crise carcerária" como projeto político. In Revista Análise, nº 28, 2017. Friederich-Ebert-Stiftung: São Paulo, 2017

GOVERNO FEDERAL. Ministério da Justiça. DEPEN.  Disponível em: <http://www.justica.gov.br/news/ha-726-712-pessoas-presas-no-brasil>. Acesso em 28 jul. 2018.

[1]Coisas do mundo, minha nêga. Composição de Paulinho da Viola lançada em seu primeiro álbum (Paulinho da Viola), em 1968, pela gravadora Odeon.

[2] CARVALHO, Salo de. O papel dos atores do sistema penal na era do punitivismo (o exemplo privilegiado da aplicação da pena). Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 14.

[3] BATISTA, Nilo. Punidos e mal pagos: violência, justiça, segurança pública e direitos humanos no Brasil de hoje. Rio de Janeiro: Revan, 1990.

[4] Informações obtidas através do último Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias - INFOPEN, publicado em dez/2017 e que contém dados de jun/2016.

[5]DIAS, Camila Caldeira Nunes Dias. Encarceramento, seletividade e opressão: a "crise carcerária" como projeto político. In Revista Análise, nº 28, 2017. Friederich-Ebert-Stiftung: São Paulo, 2017

 

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