APESAR DOS PESARES, O ART. 600, § 4º, DO CPP, SOBREVIVE

25/10/2019

Coluna Isso Posto / Coordenadores Ana Paula Couto e Marco Couto

O art. 600, § 4º, do CPP, é claro: Se o apelante declarar, na petição ou no termo, ao interpor a apelação, que deseja arrazoar na superior instância serão os autos remetidos ao tribunal ad quem onde será aberta a vista às partes, observados os prazos legais, notificadas as partes pela publicação oficial.

O mencionado dispositivo é antigo. Embora não tenha constado no texto original do Código de Processo Penal, a norma foi incluída no mencionado código por força da Lei 4336/64, que entrou em vigor no dia 4 de junho de 1964. Portanto, o ordenamento jurídico brasileiro permite que o apelante apresente as suas razões recursais na segunda instância há mais de 55 anos e, ainda assim, se questiona, nos dias de hoje, a sua aplicação.

Vale uma explicação preliminar. Na nossa coluna escrita semanalmente no site Empório do Direito, no dia 14 de setembro de 2019, abordamos as apelações monofásica e bifásica. Naquela oportunidade, distinguimos as realidades existentes na Lei 9099/95 e no Código de Processo Penal.[1]

É que no sistema dos Juizados Especiais Criminais, excepcionando a regra geral aplicável ao processo penal, o apelante deve apresentar, no mesmo momento, a sua petição de interposição e as suas razões recursais. Há uma única fase. Por outro lado, a regra geral, em se tratando de recurso de apelação, consiste na apresentação de uma petição de interposição, em um primeiro momento, e na apresentação das razões recursais, em um segundo momento. Há, portanto, duas fases.

Como pretendemos abordar o art. 600, § 4º, do CPP, nesta coluna, estamos falando da regra geral, segundo a qual a petição de interposição da apelação e as razões recursais são apresentadas em momentos distintos.

Pois bem. O problema é que, em geral, a petição de interposição e as razões recursais são apresentadas perante o juiz que proferiu a sentença, e não perante o tribunal que julgará o recurso de apelação.

Vale o exemplo. Se o juiz da 1ª Vara Criminal de Jacarepaguá profere uma sentença condenatória, a defesa deve apresentar a petição de interposição da apelação na primeira instância. Uma vez recebido o recurso, em regra, as razões recursais também são apresentadas na primeira instância.

Eis a regra. Todavia, o art. 600, § 4º, do CPP, autoriza que o apelante opte por apresentar as suas razões recursais diretamente na segunda instância, ou seja, perante o órgão do tribunal responsável pelo julgamento do recurso.

Mas qual seria a lógica disso? Em se tratando de uma norma tão antiga, apenas uma explicação histórica é capaz de revelar o motivo que fez o legislador inserir tal dispositivo no Código de Processo Penal. O Professor Fernando da Costa Tourinho Filho vai no ponto e explica que a ratio essendi de tal dispositivo é o fato de advogados que atuam em grandes centros serem poupados de viajar até as comarcas do interior, sobretudo as mais distantes, apenas para entregar as suas razões recursais.[2]

É muito provável que tal norma fizesse todo o sentido no momento em que entrou em vigor, há mais de 55 anos. Não se pode negar o tamanho do território brasileiro, assim como não se pode ignorar o fato de algumas comarcas ainda se situarem em locais muito distantes dos grandes centros. Como atuamos em nossas carreiras, basicamente, no Rio de Janeiro, não vivenciamos isso de forma significativa. Mas não é difícil imaginar o que ocorre nos outros estados da federação, sobretudo naqueles com grandes extensões territoriais.

Mesmo considerando tais peculiaridades, é inegável que o avanço da tecnologia facilitou, em muito, a vida dos advogados, ao menos no sentido de que possam protocolar as suas petições de uma maneira muito mais fácil, Vale o exemplo. Os advogados podem protocolar no fórum da capital do Rio de Janeiro uma petição dirigida para outros fóruns, dispensando o seu deslocamento. Isso sem falar nas comarcas atingidas pelo processamento eletrônico, o qual dispensa até mesmo a saída dos advogados de seus escritórios ou de suas residências. Portanto, a rigor, em muitos casos, a justificativa histórica para evitar o deslocamento dos advogados não faz mais sentido.

Mas por que alguns advogados insistem na aplicação do art. 600, § 4º, do CPP?

É preciso, desde logo, registrar que, estando o dispositivo em vigor, a sua aplicação passar a ser opção dos advogados, não se podendo criticá-los por isso. Mas é possível verificar, no mínimo, duas razões de ordem estratégica que justificam tal opção.

A primeira razão de ordem estratégica decorre do fato de os advogados ganharem mais tempo para a elaboração de suas razões recursais. Isso é inegável. É certo que esse lapso temporal era muito maior quando não se tinham tantas facilidades tecnológicas. É que a vinda dos autos de uma comarca longínqua até a sede do tribunal, a sua distribuição para um relator, o seu despacho provocando a vinda das razões recursais e a respectiva intimação dos advogados, por vezes, demoravam semanas ou, em uma cenário mais dramático, demoravam meses.

Hoje em dia, isso ocorre com muito mais celeridade, mas, ainda assim, é certo que os oito dias previstos no art. 600, caput, do CPP, são ultrapassados. Com a implantação do processo eletrônico, a tendência é que esse prazo fique cada vez mais próximo dos referidos oito dias, diante da rapidez com a qual os autos são processados.

A segunda razão de ordem estratégica decorre do fato de os advogados apresentarem as suas razões recursais após saberem quem será o relator no julgamento da apelação e quais serão os julgadores que participarão do julgamento. É claro que isso não faz sentido se o órgão do segundo grau já estiver prevento, por exemplo, por força de algum habeas corpus impetrado ou por força de algum recurso interposto antes da prolação da sentença. Mas, se não houver tal prevenção, a aplicação do art. 600, § 4º, do CPP, acaba permitindo que os advogados obtenham essas importantes informações que podem orientá-los na elaboração das razões recursais.

Apenas para que não se alegue que o art. 600, § 4º, do CPP, anda esquecido pela jurisprudência, convém lembrar um caso relativamente recente submetido ao Superior Tribunal de Justiça.[3]

Ao receber o recurso de apelação, o juiz da 2ª Vara da Comarca de Canarana, no Estado do Mato Grosso, assim registrou: Desde já indefiro eventual pedido de apresentação das razões e/ou contrarrazões na instância recursal, pela inconstitucionalidade do disposto no artigo 600, parágrafo 4º, do Decreto-Lei nº 3689, de 03 de outubro de 1941 (Código de Processo Penal brasileiro), por entender que tal dispositivo legal não fora recepcionado pela nova ordem constitucional, mormente quando em colisão com o princípio da duração razoável do processo insculpido no artigo 5º, inciso LXXVII, da Constituição Federal, acrescentado pela Emenda Constitucional nº 45, de 30 dezembro de 2004.

O apelante apresentou as suas razões recursais na primeira instância e, como preliminar, sustentou a violação ao princípio da ampla defesa, o que foi rejeitado pelo Tribunal de Justiça do Mato Grosso, chegando o caso ao Superior Tribunal de Justiça através do habeas corpus de nº 437.030/MT.

Em decisão proferida pelo Ministro Félix Fischer, no dia 1º de agosto de 2018, o processo foi anulado a partir da decisão que recebeu a apelação, afirmando-se o seguinte: agiu o Magistrado em contrariedade com o que dispõe a lei que, enquanto não modificada, deve ser observada pelos operadores do Direito, pois o exercício do direito processual de apresentar suas razões de apelação na instância recursal, tal como previsto no supracitado dispositivo, não pode ser subtraído da parte.

Entendemos que a razão está com o Superior Tribunal de Justiça na medida em que, embora seja possível fazer críticas à aplicação do art. 600, § 4º, do CPP, o mesmo ainda está em vigor, não havendo, verdadeiramente, qualquer inconstitucionalidade nele contida a ser reconhecida. Enquanto o dispositivo referido não for revogado, restarão apenas as mencionadas críticas. Em outras palavras: no nosso entendimento, o art. 600, § 4º, do CPP, sobrevive.

 

Notas e Referências

[1] COUTO, Ana Paula; COUTO, Marco. As apelações monofásica e bifásica. Empório do Direito. Disponível em: < https://emporiododireito.com.br/leitura/as-apelacoes-monofasica-e-bifasica >. Acesso em: 14 set. 2019.

[2] TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo Penal. Vol. 4. São Paulo: Editora Saraiva, 2011, p. 467.

[3] ROVER, Tadeu. STJ garante a réu direito de apresentar razões recursais em segundo grau. Consultor Jurídico. Disponível em: < https://www.conjur.com.br/2018-ago-13/stj-garante-direito-apresentar-razoes-recursais-segundo-grau>. Acesso em: 12 set. 2019.

 

Imagem Ilustrativa do Post: Lady Justice // Foto de: Dun.can // Sem alterações

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