Apesar de votos de ano novo, 2017 já começou velho: sobre o massacre em Manaus e como são tratados os presos (pobres) no Brasil

05/01/2017

Por Jorge Coutinho Paschoal - 05/01/2017

“O ideal, na verdade, seria reduzir o âmbito de aplicação das penas privativas de liberdade, de efeitos sabidamente deletérios; privilegiando-se as penas alternativas. No entanto, enquanto houver pena de prisão; enquanto esse tipo de pena tiver larga aplicação, como ocorre no país, não é possível continuar a fingir que os presídios não existem, que as pessoas que se encontram dentro dos presídios não existem; e mais, que essas pessoas não irão sair. O ser humano tem a tendência a fugir da realidade, afastando de si tudo aquilo que lhe parece feio. Assim, bairros e cidades mobilizam para não receberem presídios ou unidades da Febem, quando deveriam buscar aproximação e, consequentemente, a integração que a pena privativa de liberdade, por si só, não é capaz de propiciar. A questão da segurança passa pela assunção de responsabilidade e, principalmente, pela admissão de que fingir que os problemas não existem ou fingir que são apenas uma questão de Estado não ajuda a solucioná-los. Talvez a grande atribuição do Estado nessa nova forma de luta contra a violência seja assumir a sua insuficiência para enfrentar o problema; e ter coragem para suscitar o debate sobre o papel da sociedade nessa seara[1].

Muitos queriam um Ano (realmente) Novo, contudo 2017 mal começou e já se mostrou velho (e triste!). No dia 1º de janeiro ocorreu um levante de detentos, em Manaus, acarretando a morte de 60 (sessenta) pessoas. O motivo imediato decorreu de uma briga entre duas facções criminosas, mas, como sabemos, essa tragédia (por que não dizer anunciada) – assim como tantas outras similares do passado recente - tem como seu pano de fundo a situação lamentável e caótica do sistema carcerário brasileiro.

Sempre a cada tragédia desse tipo é comum surgirem dois tipos de avaliações: (i) a primeira de que deve haver um maior endurecimento da lei penal, tratando-se os presos com (ainda) um maior rigor, prendendo-se mais e mais; a segunda consideração é (ii) de que o sistema é, em si, falho, sendo que, por isso, deveriam ser soltos todos os presos, abolindo-se o cárcere como modalidade de sanção penal. As duas, a meu ver, mostram-se equivocadas.

De certa forma, chegamos a esse ponto, pois a prisão, em nosso país, é aplicada em larga escala e sem quaisquer critérios, seja pelo legislador, que prevê penas prisionais para crimes que não deveriam acarretar segregação (em regra, infrações sem violência), seja pelo juiz, o qual - ainda quando a lei busque impedir a prisão - não raro encontra subterfúgios para aplicá-la...

Por outro lado, pensar em se abolir a prisão, em todo e qualquer caso, sobretudo aos crimes mais graves, como homicídios, estupros, latrocínios, lesões, fraudes, corrupção, não se mostra uma solução factível, pois, nesses casos, mostra-se bem difícil o dialogo com entre os envolvidos e a população em geral; ademais, se já não há um controle do crime pelo Estado com a prisão, que se dirá ao se pretender instituir outro tipo de modelo sancionador, sem uma maior vigilância?

A solução, como sempre, estaria no equilíbrio entre essas opções radicais. A princípio, poderia parecer simples, ao se conciliar a necessidade de punição (legítima) em casos mais excepcionais, desde que houvesse a humanização das penas, ao se respeitarem os presos, reservando-se a segregação (tanto a definitiva quanto a cautelar) em último caso.

Como fala Raúl Cervini, este é um fenômeno conhecido como “desinstitucionalização”, pois “começa a ganhar força uma corrente reformadora que tende a desinstitucionalizar, ou seja, a ter a menor quantidade de presos possível, e a institucionalizar somente em casos extremos (ex: grandes furtos, homicídios, roubos)[2].

Trata-se de conscientização já não tão nova, sendo aplicada em diversos países, mas que tem sido olvidada no Brasil. Convenhamos, verdade seja dita: nos últimos 20 anos, nunca se prendeu tanto como no Brasil. Somos hoje a quarta população carcerária em nível global. Um verdadeiro absurdo. O ponto é: assim não dá para continuar!

Embora em alguns crimes a prisão seja necessária, a sua larga aplicação, como panacéia para todos os males - ainda mais sem uma efetiva política penitenciária adequada (ou melhor, humana!) - não vai resolver os problemas da criminalidade.

Ocorrerá, justamente, o contrário. Afinal, foi por se prender demais (leia-se, de forma ilegal e desnecessariamente!) e pela consequente falta do Estado (não há Estado que dê conta de uma população carcerária de mais de 500 mil presos) - aliado ao pensamento burro e desumano de que presos não deveriam ser tratados como gente, podendo ser trancados, amontoados e esquecidos nas prisões (como se de lá não fossem sair...) - que as facções e organizações criminosas dominaram os presídios, ao desempenhar papel de proteção e garantia à vida do preso, o qual deveria ser do Estado.

A realidade da prisão é (ainda) muito pior do que se imagina, tendo o detento que se submeter a “códigos internos”[3], que imperam nos sistemas prisionais.

São muito mais banais do que pensamos os diversos casos de violência que ocorrem nos presídios, sejam eles cometidos pelos agentes públicos ou pelos próprios detentos.

E os agentes penitenciários não têm como controlar rebeliões tampouco têm capacidade para garantir proteção à integridade física de quem quer que seja - inclusive a deles. Assim, uma vez que o indivíduo ingressa nesse sistema, tem de procurar proteção entre os próprios presos, aderindo a determinado grupo, ou a dada organização, à qual terá que pagar favores, inclusive depois de solto ou cumprida a pena.

Para ele, inexiste proteção do Estado, mesmo porque se alguém lhe causar algum mal, impera a lei do mais absoluto silêncio.

Como bem já ensinava Heleno Cláudio Fragoso: “a prisão constitui um sistema de convivência anormal e violento, sujeito a pressões intoleráveis. As rebeliões são fatos comuns nas prisões e se devem ao ambiente autoritário e opressivo. O mau comportamento pode ser revelação do caráter e da dignidade do preso e o bom comportamento pode indicar apenas deformação da personalidade, adaptada a padrões carcerários (prisionização)”[4].

Importante, neste aspecto, aduzir ainda acerca da problemática em se admitir que a pena tenha um fim teleológico de recuperação do preso, transferindo-se a análise quanto à necessidade da pena, com base em critérios mais objetivos, como na ideia de retribuição pela conduta culpável praticada, que confere proporcionalidade ao seu cumprimento, para critérios um tanto quanto subjetivos e – por que não dizer – arbitrários.

Além do mais, é pertinente a seguinte indagação: como pretender ressocializar “alguém que por razões conjunturais de desemprego, greve crise econômica, etc., comete um delito contra a propriedade, enquanto tais razões de desocupação e crise econômica continuam existindo?”[5] Segundo o próprio Claus Roxin, ao tratar da ressocialização no cárcere: “dificilmente se compreende uma educação para uma vida legal, na liberdade de um Estado de Direito, através da supressão de todas as liberdades”[6].

Agrava a situação do preso o caráter estigmatizante da condição de egresso, uma vez que o indivíduo, na condição de ex-presidiário, dificilmente conseguirá um emprego, sendo induzido “à busca de um grupo em circunstâncias semelhantes à sua, e por isso costumam tomar parte de subculturas, nas quais terá normas, valores e formas de comportamento exigidos por outros membros desse grupo, mas geralmente condenados pela sociedade global. Isso tende a reafirmar seu comportamento desviante”[7].

Visto tudo isso, a aplicação de pena privativa é, sem dúvida, um mal, que, por isso mesmo, deve ser prevista e aplicada em último caso.

Ainda que seja, em alguns casos, necessária, não se justificam as inúmeras e reiteradas arbitrariedades que ocorrem na prisão no Brasil.

O condenado deve ser punido, mas nos limites da lei, jamais devendo ser submetido a escracho cotidiano, ao ser confinado em celas superlotadas e a todo tipo de humilhação e tratamento desumano. Esses tratamentos desumanos - sob os aplausos de muitos - apenas fortalecem o crime organizado, ao jogarem os presos em suas mãos.

Por fim, repita-se: o problema disso não reside só na lei, como se aponta, às vezes, nas análises que são feitas, mas na mentalidade dos aplicares do Direito.

Com raras exceções, como é o caso da atuação do juiz Valois, as autoridades públicas fazem de tudo para postergar (indevidamente) a saída de presos (frise-se, ainda quando a liberdade é devida e medida de direito e rigor), prolongando um inferno desnecessário.

Prova também do exposto é a própria Lei de Execuções Penais, que é uma lei ótima no papel, com a previsão de uma série de direitos e garantias aos presos, mas que, contudo, na realidade, não é (nem nunca foi) aplicada, sendo uma piada (de mau gosto), pois só se garantem direitos no papel. Sequer tratamento “humano” é dispensado ao preso.

Os direitos dos presos só são respeitados se estes forem pessoas provenientes de certa classe social. Anotem aí: não veremos um grande empresário ou um político cumprindo pena na Lava Jato e submetidos a condições desumanas com que é tratada a esmagadora maioria da população carcerária no Brasil. E tomará que não sofram mesmo tamanhas barbaridades, pois NINGUÉM merece esse tratamento. É nosso papel (e dever) lutar por condições humanas e dignas para TODOS dentro dos presídios. Se essa é uma bandeira que não se empunhas por ideologia, deve ser levantada por inteligência!


Notas e Referências:

[1] PASCHOAL, Janaina Conceição. Segurança pública – poder e dever de todos.  In: Das políticas de segurança pública às políticas públicas de segurança. São Paulo, Ilanud, 2002, pp. 83-84.  

[2] CERVINI, Raul. Os processos de descriminalização. São Paulo: RT, 2002, pp. 78-79.

[3] Assim, nas fala Raúl Cervini: “...na prisão coexistem dois diferentes sistemas de vida: o oficial, representado pelas normas legais que disciplinam o cotidiano no cárcere e o não-oficial, que realmente rege a vida dos internos e as relações entre eles, uma espécie de ‘código do interno’, segundo o qual esse não deve jamais cooperar com os funcionários e muito menos facilitar-lhes informações que possam prejudicar um companheiro” (Os processos...  p.47).

[4] FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de direito penal: parte geral. FRAGOSO, Fernando (rev.) Rio de Janeiro, Forense, 2003, pp. 360-361.

[5] CERVINI, Raúl. Os processos...  p.42.

[6] ROXIN, Claus. Política criminal e sistema jurídico–penal. GRECO, Luís (trad.). Rio de Janeiro, Renovar, 2002, pp.21-22.

[7] Os processos...  p.51. Nesse mesmo sentido, pondera Aury Lopes Júnior: “O sistema é autofágico. Ele se alimenta de si mesmo. Primeiro vem a exclusão (econômica, social, etc.), depois o sistema penal seleciona e etiqueta o excluído, fazendo com que ele ingresse no sistema penal. Uma vez cumprida a pena, solta-o, pior do que estava quando entrou. Solto, mas estigmatizado, volta às malhas do sistema, para mantê-lo vivo, pois o sistema penal precisa deste alimento para existir. É um círculo vicioso, que só aumenta a exclusão social e mantém a impunidade dos não excluídos (mas não menos delinqüentes)” (Introdução crítica ao processo...  p.18).


jorge-coutinho-paschoal. . Jorge Coutinho Paschoal é Advogado e Mestre em Direito Processual Penal pela Universidade de São Paulo (USP). . .


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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


 

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