Apaga esse sorriso da cara: estudar sem esforço para concurso, um objetivo impossível (Parte 4)

08/06/2018

 

“La vida no vale nada si no tienes una obsesión”. John Waters 

  1. Personalidade autotélica

Em seu livro «The courtier and the heretic. Leibniz, Spinoza, and the Fate of God in the Modern World», Matthew Stewart recorda que alguns filósofos simplesmente expõem suas filosofias; quando acabam suas disquisições, penduram suas ferramentas de trabalho, voltam para casa e se permitem os bem merecidos prazeres da vida privada. Outros filósofos vivem suas filosofias. Têm por inútil toda filosofia que não determine a maneira como empregam seus dias, e consideram absurda qualquer parte da vida que não inclua sua filosofia. Estes filósofos nunca voltam à casa.

Estou convencido que os melhores estudantes são os que pertencem ao segundo destes grupos. Aqueles que fazem da solitária viagem individual de descobrimento, da curiosidade temerária, do cultivo da mente e da paixão não contida pelo conhecimento uma forma de vida. Nada é o bastante quando o objetivo é converter-se na melhor versão de si mesmo.  

Desgraçadamente, aqueles que não tem esses valores e propósitos, que estudam visando apenas “ser aprovado”, não somente cultivam esta atividade (estudar) como um apego romântico ao “sacrifício necessário”, senão que se tornam cúmplices (e vítimas) de uma prática malfeita, desapaixonada e descomprometida. Não aprendem a desfrutar daquilo que fazem, são incapazes de estabelecer e perseguir suas próprias metas, e estão dotados de uma fraqueza (ou ligeireza) de espírito que faz com que a atividade de estudar não valha a pena fazê-la por si mesma, não se valore por si mesma e/ou esteja sempre pendente de suas consequências ou de qual seja o resultado obtido.

Já os indivíduos que desfrutam daquilo que fazem, que não deixam de aprender e melhorar suas capacidades, que estão tão decididos a alcançar seus objetivos (por difíceis que sejam) e que são capazes de afrontar as adversidades e obstáculos com essa implicação e entusiasmo, são os que logram uma personalidade verdadeiramente autotélica: pessoas dedicadas a uma atividade que vale a pena fazê-la por si mesma, porque vivê-la é sua principal finalidade. Uma personalidade que permite um estado de concentração ou atenção sem esforço e tão profundo que perdem seu sentido de tempo e de si mesmos, e olvidam seus problemas. [1]

Este fluir, segundo Mihály Csíkszentmihályi, separa nitidamente as duas formas de esforço: a concentração em uma tarefa e o domínio deliberado da atenção. Em um estado de fluir (próprio de uma personalidade autotélica), no qual se mantém a atenção concentrada em uma atividade que nos absorve, não se requer exercer qualquer tipo de autocontrole, pois se liberam espontaneamente os recursos (cognitivos e emocionais) precisos para a tarefa.

Por certo que esse tipo de personalidade não garante que tudo sairá bem. Mas, seguramente, serve para apreciar muito mais da atividade enquanto a realizamos e para aprender muito mais sobre o que estudamos do que quando o fazemos mirando apenas um anelado resultado. Quero dizer: tendo em conta que uma eventual aprovação é algo que escapa ao nosso controle direto e imediato (é uma lástima que a realidade não tenha nem a mais ligeira obrigação de ser amigável ou reconfortante com nossos desejos, preferências e conveniências), há que esforçar-se por ou aprender a deleitar do processo, posto que sem este não desenvolvemos a capacidade de introspecção para questionar e sair de nossa zona de mediocridade, nem tampouco da experiência de reflexão para processar a informação e transformá-la em conhecimento, para filtrar o que importa e o que não, para fazer nosso ou assimilar em nossa bagagem pessoal o que é verdadeiramente relevante. 

Resumindo, se um indivíduo, com toneladas de determinação, fortaleza mental e autêntica tenacidade, estuda realmente porque deseja aprender para saber, se entende o que quer e quer o que faz, se tem esse objetivo que considera como próprio e ao que quer dedicar-se por si mesmo (e não somente por seu valor instrumental), então esse estudo/aprendizado passa a ser parte integral de sua personalidade, a ser sua própria pessoa, com um compromisso de eficácia, nobreza e aperfeiçoamento pessoal. Aspira, segundo o modelo antigo, ao «otium studiosum», para encontrar-se a si mesmo, para conhecer-se, para automodelar-se.[2]

E aqui vai outro conselho para quem ainda conserva um inconsciente analógico: não descuidar que para ser excelente em algo há que ser inteiro, ser tudo em cada coisa, pôr quanto somos no mínimo que façamos; ou, como diria Montaigne: “Quando bailo, bailo; quando durmo, durmo”. Este, e somente este, é o comportamento típico daquele estudante que “nunca volta à casa”.

Notas e Referências

[1] Nota bene: Atividade ou ação autotélica é uma atividade livre, voluntária e não motivada por interesses de outra ordem ou forçada por uma circunstância, posição ou necessidade pessoal; uma atividade que traz a recompensa em si mesma, nos próprios meios ou no processo de sua execução; uma atividade que compensa a quem a realiza e que, por isso mesmo, proporciona inestimáveis retribuições internas. Estas são as atividades ou ações que se valoram por si mesmas, que vale a pena fazê-la por si mesma, independentemente de suas consequências, e nas quais a típica relação meio/fim com que se soe descrever a ação humana não vige: a ação autotélica traz a recompensa em si mesma, nos próprios meios. O processo é o que conta, o caminho é a meta ou a parte essencial da meta (a meta é apenas um estado mental). Um exemplo importante – ademais de clássico – é o do trabalho. O jovem Karl Marx condenava a alienação do trabalho baixo os regimes econômicos de propriedade privada precisamente porque impediam que fosse uma atividade autotélica, quer dizer, “una actividad que tiene algún fin en sí misma. Al contrario: para el grueso de la población, trabajar significa sudor, lágrimas, y muchas veces, sangre”. (A. Domènech)

[2] https://www.researchgate.net/publication/284004034_Estudar_para_qu_(Parte_1); https://www.researchgate.net/publication/284009046_Estudar_para_qu_(Parte_2)

 

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