Na última sexta-feira, dia 1 de junho, tomaram posse na Defensoria Pública do Estado de Santa Catarina 19 cronópios, como costumo me referir a quem escolhe essa que vai muito além de uma carreira e se caracteriza como uma verdadeira missão.
Em abril de 2013, haviam sido empossados os primeiros membros da instituição. Não se tratava de um desejo do Estado de Santa Catarina – muito embora o povo, sem nem sequer saber que poderia existir instituição como a Defensoria Pública, carecesse muito de sua atuação –, mas de uma determinação do Supremo Tribunal Federal, para que se cumprisse – pasmem – a Constituição. Foi assim que, passados 25 anos da promulgação da Constituição da República Federativa do Brasil – que determinou a existência e o funcionamento daquela que seria expressão e instrumento do regime democrático, responsável pela orientação jurídica, pela promoção dos direitos humanos e pela defesa dos direitos individuais e coletivos, integral e gratuitamente (apropriando-me da redação conferida ao artigo 134 pela Emenda Constitucional 80/04), às pessoas em situação de vulnerabilidade(s) – instalou-se no território barriga-verde esta instituição que é uma verdadeira ferramenta de transformação social.
À época, as/os empossadas/os estavam cheias/os de incertezas, especialmente diante do caráter “precário” da instituição, em um local em que a resistência à prestação de um serviço de qualidade à população tinha intensidade diretamente proporcional aos fortíssimos interesses políticos e econômicos que envolviam o antigo modelo – a nomeação de dativos. Ainda sem que a redação constitucional consignasse expressamente o caráter permanente da instituição – o que se deu apenas em junho de 2014, embora sua caracterização estivesse implícita na própria missão conferida pelo Constituinte –, com uma Administração Superior totalmente integrada por pessoas estranhas à carreira e – pior – vinculadas de uma forma ou de outra àquelas autoridades que ocupavam o espaço de resistência à Defensoria, sem qualquer espécie de apoio interno, depararam-se os novos membros com salas vazias – nos locais em que já havia salas –, sem móveis, sem material de expediente, sem computadores etc. Não parecia apenas descaso com a novel instituição, mas que inclusive desejavam assustar os seus presentantes, de modo que desistissem de representar a luta por justiça e igualdade em solo catarinense.
Isso não foi, no entanto, suficiente para diminuir o sonho e a força daqueles que eram verdadeiramente vocacionados para buscar uma sociedade mais humana e capaz de enxergar “o outro” como um sujeito de direitos. Cinco anos se passaram em um piscar de olhos e, apesar de todos os contratempos, de muito enfrentamento por parte de outras instituições, órgãos estatais e autoridades desavisadas (para não falar daquelas de má-fé), assim como de muito trabalho – judicial e extrajudicial –, conseguimos evoluir muito. É fato que muito ainda nos falta. Nossa autonomia não é completamente respeitada. Nossas prerrogativas, embora tenham previsão legal, são por vezes desconhecidas até por juízes e promotores de justiça – que deveriam, no mínimo, conhecer a lei – e, quando conhecidas, deliberadamente desrespeitadas – como se fosse necessário “conquistar” o respeito à legislação. Com frequência ficamos sem material de expediente ou mesmo de limpeza. Mas há fila para fazer estágio na Defensoria Pública. Alunas/os de faculdades conhecem a instituição e defendem a atuação defensorial. Outras instituições reconhecem a qualidade dos serviços prestados. Mas, acima de tudo, a população já sabe o que esperar da Defensoria Pública. Sabe que, por meio dos seus membros, servidoras/es e estagiárias/os, existe a possibilidade de concretizar direitos que eram com frequência relegados ao papel.
O povo catarinense hoje sabe que, quando todos as portas se fecham (ou apenas as da prisão se abrem), as da Defensoria estarão escancaradas para prontamente prestar um serviço de qualidade, efetivando direitos e permitindo que a ideia de democracia se aproxime da nossa realidade. Com sangue verde, escreve-se uma nova história catarinense, em que há espaço para pessoas em situação de vulnerabilidade(s), em que essas pessoas têm voz.
E, agora, com o ingresso de mais 19 colegas, certamente a luta ficará ainda mais forte. Todas/os carregam suas crenças e seus ideais. Mas acredito serem poucas as profissões que permitam atuar em prol dessas mesmas crenças e desses mesmos ideais. Defensorar nos permite, por meio da missão que nos é constitucionalmente atribuída, batalhar por aquilo em que efetivamente acreditamos, combater injustiças e desigualdade, lutar por um mundo mais humano, ser resistência. É o melhor trabalho que qualquer pessoa pode ter. Não existe realização maior do que perceber que se faz alguma diferença em um contexto desolador como o do nosso país, que se promove alguma espécie de mudança em favor de pessoas que nem sequer eram vistas até então.
É evidente que muitos não conseguem ver com clareza a situação. Ainda acreditam em falácias como a tal meritocracia ou em uma invenção chamada racismo reverso. Por isso nos considero cronópios, me apropriando da expressão de Julio Cortázar. Seres verde, idealistas, sensíveis e ingênuos. Precisamos de todas essas características para exercer o mister defensorial.
Por meio deste texto, parabenizo as/os novas/os Defensoras/es Públicas/os, agora cronópios catarinenses, desejando muito sucesso nessa nova fase. Que o sangue verde continue a correr em suas veias; que cada injustiça apenas os estimule a continuar; que as dificuldades apenas os façam reconhecer ainda mais como tudo vale a pena; que os confortos, privilégios e vantagens que muitas vezes a vida nos proporciona não os façam esquecer do que os trouxe até aqui. Que tenhamos também união, porque certamente juntos somos mais fortes. Enfim, que comece a luta!
Imagem Ilustrativa do Post: 3D Judges Gavel // Foto de: Chris Potter // Sem alterações
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