Foi lançado no último de 15 de julho o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, estudo periodicamente publicado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, analisando-se inúmeros indicadores para melhor compreender o processo de acentuada violência no país, sendo um amplo retrato da questão da segurança pública brasileira. Trata-se, sem dúvidas, como já ocorrera em anos anteriores, de uma ferramenta importante para a promoção da transparência e da prestação de contas na área da segurança pública no Brasil, contribuindo para a melhoria da qualidade dos dados, produzindo conhecimento, incentivando a avaliação de políticas públicas e promovendo o debate de novos temas na agenda do setor.[1]
A pesquisa, baseada em informações fornecidas pelas secretarias de segurança pública estaduais, pelas polícias civis, militares e federal, entre outras fontes oficiais da Segurança Pública, mostra que em 2020 houve um crescimento de 4% em relação ao ano anterior e a taxa de mortes violentas intencionais no Brasil foi de 23,6 por 100 mil habitantes.
Observa-se, desde logo, que na última edição do Anuário, publicada em outubro de 2020, já havia sido feita uma análise do perfil dos grupos de risco das mortes violentas intencionais do país; nesta nova edição, a mesma metodologia foi utilizada para a construção do banco de microdados composto pelos fatos de 2020, possibilitando observar as continuidades e as variações em relação ao período anterior.
Assim, segundo os pesquisadores Renato Sérgio de Lima e Rafael Alcadipani e a pesquisadora Samira Bueno, “no ano passado, o país não só teve que conviver com a dor das milhares de mortes por Covid-19, mas com a retomada do crescimento das mortes violentas intencionais, categoria que soma homicídios dolosos (83% do total da categoria em 2020), latrocínios (2,9% da categoria em 2020), lesões corporais seguidas de morte (1,3% da categoria em 2020) e mortes decorrentes de intervenções policiais (12,8% da categoria em 2020).”
Essa mais recente edição do Anuário mostra, conforme observação da pesquisadora Betina Warmling Barrosa, “a correlação entre a discriminação racial que estrutura as relações sociais brasileiras e a maior proporção de pessoas pretas e pardas, sobretudo homens”, razão pela qual “a disparidade entre a distribuição populacional do país em termos de raça/cor e aquela verificada entre as vítimas de mortes violentas intencionais é um indicativo que merece toda a atenção das políticas públicas de segurança, afinal, enquanto os negros são 56% da população brasileira, continuam a representar, ano após ano, pelo menos 70% do total de vítimas de mortes violentas no país.”
Chama a atenção que em 2020 o Brasil “atingiu o maior número de mortes em decorrência de intervenções policiais desde que o indicador passou a ser monitorado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública.” Assim, com 6.416 vítimas fatais de intervenções de policiais civis e militares da ativa, em serviço ou fora, “as polícias estaduais produziram, em média, 17,6 mortes por dia, um crescimento da ordem de 190%, desde 2013, primeiro ano da série monitorado pelo Fórum Brasileiro de Segurança, o que precisa ser matizado pela melhoria da informação e da transparência a partir da cobrança da sociedade civil.”
Destaca-se, ainda mais, “o crescimento das mortes por intervenções policiais em um ano marcado pela pandemia, pela reduzida circulação de pessoas, pela redução expressiva de todos os crimes contra o patrimônio, e pela queda de 31,8% nas mortes por intervenções policiais no Rio de Janeiro, que passaram de 1.814 em 2019, maior número da série histórica, para 1.245 em 2020, número ainda elevado, mas que passou a cair a partir do meio do ano quando da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 635, que limitou operações policiais nas comunidades cariocas.”
Ressalta-se que “as mortes decorrentes de intervenção policial registradas ocorreram, majoritariamente, em serviço e com participação de policiais militares.” Assim, conforme notam os pesquisadores, “se é fato que a essência do mandato policial reside na possibilidade de uso da força, inclusive a letal quando necessário, isto não deve ser visto como um cheque em branco ou de total discricionariedade aos agentes policiais. Neste sentido, assim como não é correto afirmar que toda ação policial que resultou em morte é ilegal ou ilegítima, tampouco é prudente afirmar que todas as ações foram legais sem que tenham sido devidamente apuradas.”
Analisando-se tais números, a pesquisa concluiu “que 78,9% das vítimas eram negras, percentual semelhante ao encontrado em 2019, quando 79,1% das vítimas eram negras. A estabilidade da desigualdade racial inerente à letalidade policial ao longo das últimas décadas retrata de modo bastante expressivo o déficit de direitos fundamentais a que está sujeita a população negra no país.” O número de vítimas negras é em muito superior à composição racial da população brasileira, o que demonstra “uma sobrerrepresentação de negros entre as vítimas da letalidade policial. Enquanto quase 79% das vítimas de mortes violentas intencionais são negras, os negros correspondem a 56,3% do total da população brasileira.”
Aliás, conforme o estudo, “desigualdades semelhantes são verificadas nas mortes violentas intencionais em geral e no perfil da população prisional do país, tornando-se evidente que a segurança pública é um dos campos fundamentais de atuação – social e estatal – para que sejam corrigidas as desigualdades raciais que mais vulnerabilizam os negros no Brasil.”[2]
Diante do quadro demonstrado pelos números apresentados, os pesquisadores David Marques e Dennis Pacheco e a pesquisadora Samira Bueno, alertam para a necessidade urgente de aperfeiçoar “o controle da atividade policial, sobretudo no que se refere ao uso da força letal por parte de policiais.” Neste sentido, dizem que “mecanismos tecnológicos, do sistema de justiça criminal (Judiciário e Ministério Público) e de controle social/comunitário, articulados, são fundamentais neste processo, sendo possível construir estratégias de controle da atuação policial que permitam o enfrentamento de abusos e arbitrariedades ao mesmo tempo em que contribuam com a melhoria dos indicadores de violência focalizando tais concentrações.”
Além da violência (letal) racial, também foi objeto da pesquisa a LGBTFobia, demonstrando-se, a partir de números e do texto do pesquisador Dennis Pacheco, que os crimes de ódio, cada vez mais cotidianamente rotineiros, “partem de um padrão de assassinatos de pessoas LGBTQI+ caracterizados por práticas de tortura e requintes de crueldade, sinaliza para a disposição aniquiladora dos que anseiam ser reconhecidos enquanto homens pelo recurso à violência letal.”
Fazendo um pertinente e necessário paralelo entre o bolsonarismo e a lgbtfobia, ele cita muito apropriadamente a pesquisa “Política e fé entre os policiais militares, civis e federais do Brasil”, produzida em 2020 pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, indicando “alta incidência de comportamento LGBTfóbico entre policiais militares nas redes sociais, mesmo grupo em que foi detectado maior apoio ao presidente e à ruptura institucional, por vezes tendo como proxy, ou símbolo, o antagonismo em relação ao STF.”
Evidentemente, e ainda em suas palavras, “não se trata de uma coincidência, pois o núcleo rígido do autoritarismo no Brasil tem a LGBTfobia e a ideologia de gênero como importantes pontos de apego. Que parte significativa das polícias esteja contaminada pelo anti-institucionalismo é tão absurdo quanto sintomático de um autoritarismo que suplanta (porque não é devidamente enfrentado pelas cadeias de comando) a Segurança Pública enquanto política de Estado.”
Ele observa que “a inexistência de políticas públicas de promoção de direitos LGBTQI+ em larga escala contribui para o quadro de mortalidade violenta intencional incontida do segmento no Brasil”, alertando que “a baixa qualidade dos registros não permite afirmar com precisão se o aumento dos registros é de fato um aumento do número de casos ou um aumento na capacidade e nos esforços de identificação e notificação”, razão pela qual “as contagens realizadas por organizações da sociedade civil buscam preencher esse vácuo deixado pelo Estado, mas precisam recorrer a métodos menos abrangentes de contabilizar os casos.”
Em outro capítulo, a pesquisa debruçou-se sobre os casos de violência doméstica e sexual; neste tópico, as pesquisadoras Samira Bueno, Marina Bohnenberger e Isabela Sobral, observam que, “apesar do número elevado de casos no país, a pandemia parece ter contribuído para a redução dos registros de violência sexual, o que não necessariamente significa a redução da incidência, pois os crimes sexuais apresentam altíssima subnotificação, e a falta de pesquisas periódicas de vitimização tornam ainda mais difícil sua mensuração.”
Ademais, quando se trata de crime sexual, especialmente o estupro, é preciso atentar que são delitos “cerceados por ambientes de coerção e intimidação, seja da relação da vítima com o agressor ou do momento da comunicação do fato às autoridades policiais, quando a vergonha e o medo podem ser obstáculos, suscitando uma reflexão a respeito das condições de possibilidade das vítimas de dizerem não a seus algozes, de modo que o consentimento não pode ser tomado como uma ação passiva.”
Neste ponto, as pesquisadoras notam que os números “evidenciam ainda mais o recorte etário infantil das vítimas: 60,6% tinham no máximo 13 anos quando sofreram violência, perfil que vem se confirmando ano após ano, significando que os estupros que a grande maioria dos estupros que chegam até as autoridades policiais no Brasil são de crianças, o que representa um desafio extra tanto em relação à responsabilização do autor, como em relação à proteção da vítima.”
O estudo também traz um panorama sobre as armas de fogo no Brasil, a partir de um levantamento feito junto aos órgãos oficiais de segurança e defesa para 2020, mostrando empiricamente que o Brasil vive uma verdadeira corrida armamentista.
Nesta mais recente edição do Anuário, nota-se o crescimento expressivo do número de armas em circulação, estimando-se que teríamos 1.840.822 armas nas mãos de cidadãos comuns do Brasil em 2020. Apenas no SINARM, o registro de posse de armas cresceu 100,6% desde 2017; os dados do Exército também mostram crescimento do número de registros de CAC (caçadores, atiradores e colecionadores) da ordem de 29,6. Os registros de armas cresceram 97,1% apenas de 2019 para 2020, com 186.071 novas armas apenas no sistema da Polícia Federal, e duplicaram-se as autorizações para importação de armas longas, chegando a 7.625 novas armas apenas em 2020.
Neste ponto da pesquisa, Isabel Figueiredo e Ivan Marques anotam que em dezembro do ano passado “o país contava com 2.077.126 armas em arsenais particulares, incluindo as categorias especiais de atirador desportivo, caçador e colecionador e armas particulares de policiais, demais profissionais da segurança pública e militares do Exército, sendo possível dizer que em cada grupo de 100 brasileiros há ao menos uma arma particular disponível, mostrando que houve aumento de registros ativos - pessoas físicas registrando sua primeira arma ou renovando o registro anterior de armas que já possuem - em todos os estados brasileiros, sem exceção.”
Segundo eles, os indicadores “chamam atenção tanto pelo aumento expressivo do número de armas que entraram em circulação nas mãos de particulares e a velocidade que isso vem acontecendo, como pela flagrante deterioração dos mecanismos de controle de armas ilegais. Em outras palavras, enquanto alguns segmentos da população brasileira se armam de modo acelerado, o Estado vem diminuindo sua capacidade de mitigar os efeitos nocivos destas mesmas armas gerando toda sorte de violências.” Assim, concluem que “os números mostram que uma parcela da população atendeu ao chamado do Presidente da República aumentando o arsenal civil com a aquisição de armas novas.”
Também foi abordado em um capítulo específico o sistema prisional em 2020/2021, especialmente frente à crise da Covid-19; neste aspecto, Betina Warmling Barros afirma, a partir dos números levantados na pesquisa, que “as péssimas condições estruturais dos presídios brasileiros, os altos níveis de superlotação e a circulação no ambiente externo por parte de funcionários e familiares, possuíam potencial para gerar surtos de propagação do vírus dentro do sistema penitenciário brasileiro, já tão castigado por décadas de abandono do poder público.”
Assim, “o avanço da pandemia durante todo o ano de 2020 e no primeiro semestre de 2021, levando a mais de 500 mil óbitos de brasileiros pelo vírus, também continuou a produzir efeitos no sistema prisional. Com base nos dados informados pelo Boletim CNJ de Monitoramento Covid-19 na edição de 17/05/2021, ficou mais claro que não era apenas a população carcerária que estava exposta aos riscos do corona-vírus, já que foram principalmente os agentes penitenciários e demais funcionários do sistema as maiores vítimas da pandemia dentro das prisões brasileiras.”
Constatou-se, então, 57.619 casos confirmados de coronavírus entre presos e 21.419 entre servidores do sistema, significando “uma taxa de incidência de 7.642 casos a cada 100 mil presos e de 18.323 a cada 100 mil funcionários do sistema de privação de liberdade, enquanto, nessa mesma data, a taxa de incidência geral do país era de 7.394 casos por 100 mil habitantes. Ou seja, a taxa de presos infectados por Covid-19 foi 3,3% mais alta do que a verificada no país, enquanto a taxa de funcionários infectados foi 147,8% maior. Significa dizer, portanto, que em média 18,3% do total de funcionários do sistema de privação de liberdade1foram infectados pela doença, o que é um número muito elevado e que mereceria a total atenção dos gestores de prisões no país.”
De toda maneira, segundo ela, “para além das particularidades impostas pela pandemia de coronavírus, as demais questões que caracterizam o sistema prisional, como a superlotação, o alto índice de presos provisórios e o perfil da população carcerária, persistem, pois os dados referentes ao primeiro semestre de 2020 indicam um novo aumento no total de pessoas privadas de liberdade que passou de 755.274, em 2019, para 759.518. Esse valor considera aqueles que cumprem regime fechado, semiaberto e aberto, além dos sentenciados ao cumprimento de medidas de segurança e presos em Delegacias de Polícia.”
A violência contra crianças e adolescente também mereceu destaque na pesquisa, sendo o resultado analisado pela pesquisadora Sofia Reinaché e pelo pesquisador Fernando Burgos, demonstrando-se “que mais da metade das vítimas de violência sexual que chegam até as delegacias de polícia tinham 13 anos ou menos e entre as vítimas de 0 a 19 anos, o percentual de crimes com vítimas de até 13 anos subiu de 70% em 2019 para 77% em 2020.” Dessa maneira, “a cada ano que passa, as vítimas de estupro no Brasil são mais jovens. O percentual de vítimas de 0 a 9 anos que era de 37,5% (das vítimas de 0 a 19) em 2019, passou a ser de 40%. Ou seja, apesar de a subnotificação causada pela pandemia, não permitir afirmar que houve aumento dos estupros de 2019 para 2020, é possível afirmar que em 2020 as vítimas de estupro e estupro de vulnerável no Brasil são, em média, mais novas do que o perfil das vítimas apresentados em 2019.”
Notam, ademais, que “além da violência sexual, a violência física é um problema que atinge de forma recorrente as crianças e adolescentes brasileiros. Uma parcela desse tipo de violência se agrava e pode levar à morte. No Brasil, em 2020 mais de 170 crianças de 0 a 4 anos foram mortas de forma violenta intencional. A vigilância e olhar atento para as crianças e adolescentes de diferentes atores na sociedade é uma das principais formas de se prevenir um cenário tão devastador que marca a infância e adolescência no Brasil.”
Assim, “os dados apresentados anteriormente já são alarmantes mesmo sem considerar a subnotificação. Se a invisibilidade da violência doméstica já era grande, com a pandemia, ela aumentou ainda mais. Isso porque as necessárias medidas de isolamento social fizeram com que equipamentos públicos como escolas, centros para crianças e adolescentes, Centros para Juventude, e outros, fossem fechados, interrompendo suas atividades. E essa interrupção das atividades gerou a interrupção do convívio diário que, por sua vez, gerou a redução da identificação de casos de violência por parte de professores e professoras. Afinal, professores capacitados podem identificar casos a partir de sinais físicos ou mudanças de comportamento das crianças, já que eles possuem convivência diária com os alunos. Crianças mais caladas do que o normal ou marcas pelo corpo, podem ser um indício de que algo esteja ocorrendo.”
Enfim, eis um resumo do trabalho realizado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública. A pesquisa é muito longa e os números são os mais variados. É uma investigação que deve ser levada em consideração quando se tratar de violência no Brasil. Ela mostra, à saciedade, a nossa estúpida desigualdade racial, econômica e social, gênese de vários dos problemas brasileiros. Também demonstra que a liberalização do uso das armas de fogo será desastrosa para a nossa sociedade.
Como afirma Pedro Ferreira de Souza, “no Brasil, a concentração de renda entre os ricos não sairá da agenda teórica, empírica e política no curto e médio prazos. Esperar que o crescimento puro e simples resolva nossa questão distributiva não funcionou no passado e dificilmente funcionará no futuro.”[3]
Portanto, é preciso que estejamos atentos para que os oportunistas não se aproveitem da insegurança na qual vivemos no cotidiano e possam pautar as suas bandeiras totalitárias e fascistas. Estudos como esse devem servir de base para que a sociedade discuta com racionalidade uma questão tão séria como a violência, sem demagogia e sem tergiversações.
Notas e Referências
[1] Disponível em: https://forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2021/07/anuario-2021-completo-v4-bx.pdf. Acesso em 15 de julho de 2021.
[2] O estudo mostra que a taxa de letalidade policial entre negros é de 4,2 vítimas a cada 100 mil, já entre brancos ela é de 1,5 a cada 100 mil, o que equivale a dizer que a taxa de letalidade policial entre negros é 2,8 vezes superior à taxa entre brancos.
[3] SOUZA, Pedro H. G. Ferreira. Uma História de Desigualdade: A concentração de renda entre os ricos no Brasil – 1926/2013. São Paulo: Hucitec Editora, 2018, p. 382.
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