De alguma forma, todas as pessoas que habitam o século XXI já entenderam que existe um mecanismo essencial relacionado à tecnologia, mesmo que não necessariamente visível a olho nu. Nesse contexto, a internet se revela apenas um meio para questões pontuais envolvendo vulnerabilidades em seus diversos e amplos formatos. Logo, a questão do potencial lesivo de cada conduta permanece como objeto de estudos no campo jurídico, uma vez que os “crimes ou delitos já velhos e conhecidos” ficam potencializados quando há a ajuda de um computador e outros meios tecnológicos.
A informação é aquilo que conseguimos compreender, seja ela uma imagem, um texto, um áudio, um vídeo, assim como todas as formas variáveis de como o ser humano se comunica, interage e vive. Na mesma linha, importantes autores aduzem que a denominada “sociedade da informação” trouxe “novos bens jurídicos”. No direito indaga-se para situações diversas: qual será a tutela adequada para esses “novos” bens jurídicos?
Em sentido análogo, DAMÁSIO[1] e MILAGRE[2] comparam o contexto da sociedade da informação com o da anarquia[3], reforçando o posicionamento de outro autor, o que faz todo o sentido, vejamos:
“A Internet é rica, e onde há riqueza, existe crime. Segundo Eric Schimidt (NERY, BITTENCOURT, AZAMBUJA, 2013, p.1), ‘a internet é a primeira coisa que a humanidade criou e não entende, a maior experiência de anarquismo que jamais tivemos’. É inegável que a globalização proporcionou profundas modificações na sociedade contemporânea. Este processo, iniciado na segunda metade do século XX, é fator no rompimento de barreiras econômicas entre os países, integrando sociedades. Vive-se em uma aldeia global, expressão criada por Herbert Marshall McLuhan (1964). Da globalização, surge a sociedade do conhecimento, ou a nova economia, ou, ainda, a sociedade da informação. Vivemos uma economia global e informacional”.
É nesse ambiente “anárquico” para a sociedade, juntamente para operadores do direito brasileiro envolvendo profissionais diversos (tais como: polícia, advogados, juízes, promotores, defensores, peritos, etc) onde ocorre um reflexo no manejo das normas com uma necessidade de distinguir questões técnicas para aplicar a legislação e desenvolver a profissionalização e a sintonia de um trabalho multidisciplinar com questões decorrentes do uso da tecnologia. Esse é o ponto crucial para evitar impunidades com qualquer bem jurídico agredido nesse contexto.
DAOUN[4] e BLUM[5] evidenciam: “As motivações que fazem um hacker ou um cracker atuar podem ser múltiplas e variadas, mas concentram-se especialmente na esfera social, técnica, política ou econômica”.
De forma geral, estamos no “tudo como dantes no quartel de Abrantes”: enquanto ocorrerem falhas graves de modo significativo com capacitação profissional, infraestrutura técnica e problemas de gestão teremos reflexos nas questões jurídicas e custos excessivos de forma a inviabilizar alguma tutela para a vítima, que, a priori deveria ser pública e gratuita.
As competências profissionais em seu aspecto multidisciplinar devem ser alinhadas para que o trabalho em conjunto agregue ao judiciário e no conhecimento. Estamos no início disso tudo, com aprimoramentos profissionais em pauta, carência de profissionais preparados juntamente com questões cruciais de infraestrutura tanto técnica quanto de gestão que precisam ser melhoradas para resultar em eficiência.
A busca por uma medida razoável ainda permanece como uma necessidade para se adequar a cada caso específico, considerando-se que o oposto disso seria a existência de lacunas favorecendo criminosos.
É grave o desajuste e envolve educação digital, juntamente com estrutura investigativa. “Em passagem que se tornou clássica, Cesare Beccaria assentou que é a clareza da punição mais do que a intensidade da pena o grande fator de prevenção de criminalidade. Não é necessário o excesso de tipificação nem tampouco a exacerbação desmedida da pena. O sistema punitivo pode e deve ser moderno. Mas tem que ser sério”.
Muito embora a nossa Constituição Federal de 88 evidencie em seu Art. 5º, X que são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurando direito a indenização por dano material ou moral causado a sua violação”, tal artigo é completamente ineficiente se não houver capacitação no manejo adequado dos crimes que envolvem esses bens jurídicos, principalmente para um cidadão comum, que em seu direito, depende de uma delegacia num primeiro passo.
MOBBING E BULLYING/CYBERBULLYING EM REDES SOCIAIS E INTERNET. MÍNIMO DENOMINADOR COMUM: CAUSAR DANO FÍSICO, PSICOLÓGICO OU MORAL
“A lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça ao direito”.
Art. 5º, XXXV, CF
O mobbing e o bullying/cyberbullying são bons exemplos de infrações decorrentes de um contexto que envolve a denominada “era tecnológica”, mesmo que a conduta exista independentemente do uso da internet e de um computador, quando atreladas às ferramentas digitais, o estrago é muito maior.
Não é à toa que as leis 12.737/12 (também denominada “Lei Carolina Dieckmann”/ Delitos informáticos), 12.965/14 (Marco Civil da Internet) e a Lei 13.185/15 (Lei de Combate ao Bullying/Intimidação Sistêmica), são diplomas com datas próximas: 2012, 2014 e 2015, indiretamente demonstrando que o uso da internet acelera no direito um reconhecimento para a busca da tutela adequada em cada caso concreto dentro de um contexto.
O mobbing (do inglês mob: bando, quadrilha) faz referência a ambientes de trabalho em que várias pessoas de forma consciente e repetitiva, com ciência ou não de superiores hierárquicos, perseguem e agridem física ou moralmente outro trabalhador através de comportamentos vexatórios. Trata-se do assédio moral em ambientes de trabalho.
O mesmo tipo de comportamento persecutório e agressivo, quando presente em ambientes escolares, denomina-se bullying. Conforme dados da American Academy of Child and Adolescent Psychiatry, pelo menos 10% são vítimas sistemáticas (de forma verbal ou física). No contexto “online”, a prática do Bullying ganha uma potência e amplifica o seu potencial de ação e lesão tanto dentro da escola, como na vida do aluno fora dela.
Crianças vítimas de bullying experimentam real sofrimento que pode interferir com seu desenvolvimento social e emocional, bem como sua performance escolar. Em alguns casos, registram-se suicídios consumados ou tentados como forma desesperada de escapar de tal prática. [6]
A Lei de Combate ao Bullying (Lei 13.185/15) define o cyberbullying como o “o bullying praticado na rede mundial de computadores por meio de ações que depreciem a violência, bem como a adulteração de fotos e dados pessoais com o intuito de constranger a vítima”. Escolas hoje possuem o dever de adotar práticas preventivas para evitar o bullying em ambiente escolar.
Tanto o mobbing quanto o cyberbullying são bons exemplos por colocarem a sociedade em cheque para pensar além de um valor unicamente econômico (dano material) e mensurar a lesão a bens jurídicos mais subjeticos que envolvem o dano moral, como a privacidade, a intimidade, a honra, etc. Isso sai daquela origem do direito que veio para tutelar bens jurídicos materiais e cria uma atenção em aspectos mais intangíveis e subjetivos do indivíduo (porém, fundamentais), desta forma, a escala psicológica humana ganha força e dimensão.
COOPERAÇÃO INTERNACIONAL E A CONVENÇÃO DE BUDAPESTE
Os anos de 2012 e 2014 são recentes e possuem apenas dois anos de diferença entre si. Em paralelo, representam também duas leis importantes (uma no âmbito cível e outra no âmbito penal) decorrentes de uma sociedade que passa por mudanças: a Lei 12.965/14 (Marco Civil da Internet), também conhecida como marco regulatório que buscou nortear a liberdade de expressão, a defesa da privacidade dos usuários, a neutralidade de rede, e outras regulamentações significativas no âmbito civil no uso da internet no Brasil e a Lei 12.737/12, conhecida como Lei Carolina Dieckman que não garante a eficiência dos problemas criminais, mas que é relevante mencionar nesse contexto de mudança.
Em âmbito local, o Brasil é imaturo e pouco reflexivo para produzir leis, precisando sempre de algum evento “midiático” ou relacionado à “sociedade do espetáculo” para acordar e fingir que possui alguma eficiência na tutela de alguém (sociedade civil). De uma forma sutil, o surgimento dessas normas mostra que as modificações sociais estão refletindo tanto na esfera cível quanto penal num intervalo de tempo paralelo.
Já, em âmbito global, a cooperação internacional para o combate a crimes cibernéticos possui sua importância na troca de conhecimentos e agregação de normas padronizadas internacionalmente como um mínimo denominador comum para os países signatários. É vista como positiva para uma melhor comunicação mundial tanto para questões judiciais como policiais. Nesse sentido, a Convenção de Budapeste é um marco desse conhecimento científico em âmbito internacional.
O Brasil não é signatário da Convenção de Budapeste[7] (ainda). Vale a transcrição do trecho do livro Manual de Crimes Informáticos, dos professores José Antônio Milagre e Damásio de Jesus, in litteris: “Importa dizer que a Rússia, por fim, não assinou a Convenção de Budapeste, que trata do combate ao cibercrime e a padronização das legislações dos estados-membros. O país categoricamente não adota a Convenção de Budapeste, especialmente em relação ao artigo 32, que trata do chamado ‘acesso transfronteiriço’, que permite que as agências de inteligência de alguns países acessem redes de computadores de outros países para realizar operações, sem o conhecimento das autoridades nacionais”.
Para que o Brasil possa fazer parte dos países incluídos na Convenção, precisa ser convidado pelo Comitê de Ministros do Conselho da Europa[8] ou mostrar algum interesse por adesão. Embora o Brasil não seja signatário da Convenção de Budapeste, é do MLAT (Mutual Legal Assistance Treaty), um decreto de 2001 que regulamenta procedimentos relacionados a carta rogatória junto com os Estados Unidos.[9]
DAMÁSIO[10] e MILAGRE[11] coadunam de que a cooperação internacional é fundamental para o combate aos crimes cibernéticos. Os autores também frisam a importância da cooperação para o Brasil, principalmente na comunicação com provedores de serviço e conexão internacional, que ultrapassam questões de jurisdição brasileira. O referido Tratado foi formulado para atender necessidades dos países do Bloco da União Europeia, mas poderia ser um plus positivo para o Brasil, que infelizmente, permanece ainda “arrumando a casa” em termos de eficiência.
Mesmo em um contexto moderno e informacional (século XXI) onde se pressupõe evolução, existem falhas graves, principalmente do Estado (polícia e órgãos públicos) juntamente com a discrepância de valores e custos para a atuação na área privada que se sobrepõem aos direitos que deveriam ser tutelados. A punição justa ainda é um processo a ser alcançado. Pontos sensíveis e deficiências permanecem na jornada.
Notas e Referências
[1] JESUS, Damásio de; MILAGRE, José António. Manual de Crimes Informáticos. Editora Saraiva. 2016, p.17.
[2] JESUS, Damásio de; MILAGRE, José António. Manual de Crimes Informáticos. Editora Saraiva. 2016, p.17.
[3] A origem do anarquismo é considerada por alguns como algo bem antigo, o que é justificado através de diversos textos de autores de um passado distante. Porém, sem dúvida, o anarquismo em sua forma moderna é bem datado, fruto do Iluminismo e especialmente das ideias do filósofo Jean Jacques Rousseau em torna da centralidade moral da liberdade. Outros intelectuais vieram depois formulando concepções políticas e econômicas do anarquismo até chegar a ideia de ausência total de um Estado e formação de sociedades voluntárias. O primeiro a efetivamente se declarar anarquista foi o filósofo francês Pierre Joseph Proudhon, considerado por algumas pessoas como fundador da teoria moderna do anarquismo. Disponível em http://www.infoescola.com/politica/anarquia/.
[4] DAOUN, Alexandre Jean; BLUM, Renato M. S. Opice. Cybercrimes. Direito & Internet: aspectos jurídicos relevantes. 2º Edição. Ed. Quartier Latin, 2005. p. 119.
[5] DAOUN, Alexandre Jean; BLUM, Renato M. S. Opice. Cybercrimes. Direito & Internet: aspectos jurídicos relevantes. 2º Edição. Ed. Quartier Latin, 2005. p. 119.
[6] A tutela aquiliana da pessoa. Revista da AJURIS, vol. 39, n 127, Setembro, 2012, p. 189.
[7] Lista de países signatários da Convenção: http://www.coe.int/en/web/conventions/full-list/-/conventions/treaty/185/signatures.
[8] Conforme artigo 37 da respectiva Convenção.
[9] Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/2001/D3810.htm.
[10] “Na Europa, o G8 (grupo dos oito países mais industrializados) concebeu e administra a rede de cooperação denominada “Rede 8x7”, expandida para outros países como o Brasil, e disponível para autoridades policiais. E-mails: cybercrime_brazil24x7@dpf.gov.br e cooperacaopenal@mj.gov.br. Em alguns casos, autoridades se valem do chamado DRCI do Ministério da Justiça, o Departamento de Recuperação de Ativos e Cooperação Internacional da entidade, que faz a intermediação entre órgãos judiciais dos países envolvidos. Neste caso, o delegado que está conduzindo, representa ao juiz, e da posse do juiz autorizando a quebra, ele entra em contato com o DRCI, que pode devolver a solicitação ao delegado para adaptações às necessidades do pais, tais como o idioma, e, posteriormente encaminhada ao país onde se buscam os dados de um criminosos digital, ou remoção de conteúdo ilícito”. JESUS, Damásio de; MILAGRE, José António. Manual de Crimes Informáticos. Editora Saraiva. 2016, p. 179.
[11] “Na Europa, o G8 (grupo dos oito países mais industrializados) concebeu e administra a rede de cooperação denominada “Rede 8x7”, expandida para outros países como o Brasil, e disponível para autoridades policiais. E-mails: cybercrime_brazil24x7@dpf.gov.br e cooperacaopenal@mj.gov.br. Em alguns casos, autoridades se valem do chamado DRCI do Ministério da Justiça, o Departamento de Recuperação de Ativos e Cooperação Internacional da entidade, que faz a intermediação entre órgãos judiciais dos países envolvidos. Neste caso, o delegado que está conduzindo, representa ao juiz, e da posse do juiz autorizando a quebra, ele entra em contato com o DRCI, que pode devolver a solicitação ao delegado para adaptações às necessidades do pais, tais como o idioma, e, posteriormente encaminhada ao país onde se buscam os dados de um criminosos digital, ou remoção de conteúdo ilícito”. JESUS, Damásio de; MILAGRE, José António. Manual de Crimes Informáticos. Editora Saraiva. 2016, p. 179.
Imagem Ilustrativa do Post: person typing // Foto de: Damian Zaleski // Sem alterações
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