Análise do discurso: corra como uma garota

02/09/2016

Por Patrícia Cordeiro e Rafaela Ghelfond Bacaltchuk - 02/09/2016

A pesquisa é realizada a partir da campanha Like a Girl, dirigida por Lauren Greenfield, idealizada para a empresa Always. Lauren buscou ressignificar a frase: “fazer algo como uma garota”, no vídeo da campanha pedia para que algumas mulheres corressem “como uma garota”, e elas imediatamente simulavam se movimentar de forma delicada. O mesmo aconteceu com os homens, imitando como uma garota supostamente lutaria, eles simulavam realizar golpes fracos e bizarros.

Buscando-se articular a discussão sobre a linguagem que constrói representações, o presente texto inicia-se abordando a importância da linguagem para a construção de sentidos e interpretações de mundo, na perspectiva de Luís Alberto Warat. Na sequência explicam-se alguns conceitos teóricos sobre a análise do discurso francesa, na ótica de Orlandi, que muito contribuiu para o entendimento do lugar discursivo onde cada sujeito se encontra, bem como possibilitou à crítica à linguagem. Por fim, realiza-se uma análise sobre a campanha Like a Girl, delineando de que forma é construído o senso comum de que fazer algo como uma garota significa agir com fraqueza e fragilidade.

A linguagem comumente passa por um caminho de não questionamento e não estudo de seus princípios e causas. Como consequências tem-se expressões, falas e atitudes que mostram fluxos pré-estabelecidos, como verdades e realidade.

Nessa situação, é necessário compreender o porquê, de quando a palavra “garota” é usada em uma frase, ela automaticamente, é levada para o lado da fragilidade e delicadeza, até pelas próprias mulheres. Fato que aconteceu na campanha Like a Girl da empresa Always, por um fator de uma memória construtiva/discursiva, agir como uma “garota” é estereotipado negativamente.

Seguindo o pensamento de Warat (1985) a linguagem é feita de representações que se distanciam da realidade, como de que o homem é prático e racional e a mulher quando possui essas características, assim age como um homem, o mesmo se aplica quando um homem demonstra mais os seus sentimentos e para a sociedade ele estará agindo como uma mulher.

Diante dessa realidade, a análise do discurso entra em cena, para mostrar que se deve ter uma relação menos ingênua com a linguagem (ORLANDI, 2009). A linguagem não pode ser vista como fechada, e sim com fatores históricos, filosóficos, do inconsciente e da sociedade. Seguindo a linha da análise do discurso, não se é indivíduo, mas sim sujeito, (assujeitado) a ideologias pré-moldadas.

Sem a análise do discurso e da linguagem, ficaria difícil perceber os moldes (característicos) que são criados para os gêneros e os aprisionamentos em enunciados dominantes, por isso se dá a importância da seguinte análise, como desvelamento do “assim posto e imposto”, sendo fundamental para a interpretação não condicionada a repetir sem perceber conceitos antes pré-estabelecidos pela linguagem da sociedade.

A importância da linguagem na construção de sentidos

“Não existem palavras inocentes. O espaço social onde elas são produzidas é condição da instauração das relações simbólicas de poder. A dimensão política da sociedade é também um jogo de significações. Isso supõe que a linguagem seja simultaneamente um suporte e um instrumento de relações moleculares de poder. Mas também um espaço nela mesma. A sociedade como realidade simbólica é indivisível das funções políticas e dos efeitos de poder das significações” WARAT, 1985, p.100.

A linguagem não é inocente, os significados e significantes não são frutos do acaso, mas de resultados de relações de poder. Mais do que descrever, a linguagem cria, modifica, desperta desejos e sentidos. Por isso, não é banal ou menos importante para se compreender o lugar discursivo em que cada sujeito se encontra.

A linguagem comumente é posta na categoria do invisível, como se não demandasse discussão, como se não existisse enquanto categoria de manifestação de poder. O resultado é a naturalização de uma linguagem forjada, que não suporta o novo, o diferente e que sem cessar instiga a manutenção de violências – simbólicas ou não. Essa análise de discurso demanda um olhar que se situe fora, a margem dessas significações postas pela linguagem dominante.

A busca por novas linguagens provoca o desvelamento de linguagens totalizantes. Cada termo carrega em si uma construção social, um significante, Warat (1995, p.15) alerta: “Na verdade, as linguagens não se esgotam nas informações transmitidas, pois elas engedram uma série de ressonâncias significativas e normatizadoras de práticas sociais”. Dito de outro modo, a linguagem diz mais do que terminologicamente está posto, às vezes diz pelo que não está posto, pela falta, por isso se constrói entre o dito e o não-dito.

Para Warat (1995) a denúncia dos discursos ocorre na aproximação da leitura contra discursiva com a semiologia, mas não aquela que se apresenta enquanto uma metalinguagem, ou seja, como uma linguagem sobre as linguagens, que impõe formas de pensar os discursos. É preciso uma nova semiologia, que problematize a estereotipação que ocorre em sociedade. Por isso, Warat (1995) propõe a semiologia do poder, que busca analisar o discurso como forma de controle social através das significações inscritas no poder, e sintetiza:

A semiologia do poder pretende articular-se em torno de uma ideia muito simples, a de que o consenso sobre a legitimidade do poder é decorrência de um trabalho discursivo, e que só é obtido quando, adequadamente, manipula-se as palavras (WARAT, 1995, p.18).

Embora cada palavra traga um significado histórico-social, esse significado é constantemente alterado e manipulado a depender do contexto e situação, por isso incide em erro buscar o “verdadeiro” significado das palavras. Logo, as palavras são mutáveis e imutáveis. Imutáveis por carregarem consigo significado histórico-social e mutáveis por serem passíveis de alterações no decorrer do tempo, sem entretanto, anular completamente a carga significativa que a compõe historicamente.

Warat (1995) afirma que o termo possui dois níveis de significação, um de base e o outro contextual. Como dito anteriormente, embora um termo carregue significado histórico, há de se considerar as mudanças que decorrem do ato comunicacional. Por isso, não é possível que um termo seja completo e se encerre em si mesmo. Não é estático e imutável. Dentre as variáveis que alteram o modo de significar estão o sujeito e o contexto. O termo é campo de sentido em aberto, esperando tradução.

Para Warat (1995) o significado base deve ser visto como uma etapa de interpretação, pois nela nunca se esgota. O sentido percorre o dito e o calado. Alerta que o significado base e a significação gramatical das palavras, podem servir para encobrir a busca de sentidos, esgotar imaginários, ignorar o sentido latente. Neste sentido, a linguagem como forma de análise do exposto e do encoberto, para chegar-se no latente.

Com isso, manipula desejos, sonhos e realidade, violência significativa, imaginária, como diz Warat (1995). Imaginária no sentido de castrar a criatividade, as possibilidades, a liberdade. A violência significativa pode ser entendida como imposição de significação totalizante, que visa manter suposta coesão e sentido. Com a violência significativa é criada uma linguagem constituída por representações que se afastam da realidade, como a de que o homem é por natureza prático e racional, e que a mulher que aja dessa forma, pensa como um homem.

Expõe Warat que as representações imaginárias limitam os desejos, sentimentos e emoções. O sujeito torna-se passivo à dominação e incapaz de notar contradições. A violência significativa através da modulação do imaginário social age diretamente nos limites éticos e passa a ditar o que é certo, justo, bom e mau. A diversidade, as diferenças são postas na categoria do invisível, e os significados postos como imutáveis. E por terem sido postas na categoria do invisível, do indizível, tornam-se “inexistentes”. Nas palavras de Warat (1995, p.111): “Um plano de captura, com imenso poder de censura sobre os pensamentos, sentimentos e atos que tendem abalar suas evidências”.

O imaginário social produz e reproduz sujeitos que veem o mundo da forma que foram instruídos a pensar, não há muito espaço para o questionamento dos significados e significantes. A instituição exerce grande relevância na produção alienada da realidade, quando impede que novas ideias se difundam, nasçam, cresça e floresçam. A busca por linguagens perdidas é também a busca por linguagens forçosamente esquecidas. A imposição de significados é útil para a dominação e adormece o sujeito, que acredita não existir outras realidades possíveis.

Através da linguagem é plenamente possível legitimar práticas arbitrárias e torná-las naturais, impedindo a alteridade de pensamentos e interpretações. Por isso a importância de reinventar a linguagem, alerta Warat (1990). O sujeito que possui sua criatividade adormecida, calada, não é democrático, por isso não aceita os diferentes e as diferenças, interiorizou valores e interpretações que o transformaram em alguém portador de certezas, triste e ilusoriamente flechados pelas certezas, que gradativamente o aprisiona em um ser que não é, mas em alguma medida se torna.

Análise do discurso – aportes teóricos

A análise do discurso tem seu início conceitual na França em 1960 com Michel Pechêux, a teoria prima ir além das teorias anteriores, levando em conta a exterioridade das questões.

De acordo com ORLANDI (2009), o que deu inicio aos primeiros estudos da análise do discurso, foi o interesse dos estudiosos nas várias maneiras de se significar. A análise do discurso, como seu nome remete, trata do discurso, da prática da linguagem e no território dessa análise do discurso, a fala do homem. “Na análise do discurso, procura-se compreender a língua fazendo sentido, enquanto trabalho simbólico [...]” (ORLANDI, 2000, p 15).

Problematizando as manifestações da linguagem, e tendo consciência de que a neutralidade não existe, se deve buscar a interpretação, afirma a autora:

Não temos como não interpretar. Isso, que é contribuição da analise de discurso, nos coloca em estado de reflexão e, sem cairmos na ilusão de sermos conscientes de tudo, permite-nos ao menos sermos capazes de uma relação menos ingênua com a linguagem (ORLANDI, 1999, P.9).

Ainda segundo ORLANDI (2009), é de suma importância saber como o discurso funciona, sua relação com a memória e esquecimentos para compreender-se a presente realidade, que se pauta na existência do homem.

A análise do discurso concebe a linguagem como mediação necessária entre o homem e a realidade natural e social. Essa mediação, que é o discurso, torna possível tanto a permanência e a continuidade quanto o descolamento e a transformação do homem e da realidade em que ele vive. O trabalho simbólico do discurso está na base da produção da existência humana (ORLANDI, 2009, p. 15).

Nessa perspectiva, a analista do discurso relaciona a linguagem com a sua exterioridade, com relações na epistemologia, história, filosofia, linguagem e ciências sociais. Outro ponto essencial é não se trabalhar com a linguagem como se ela fosse fechada (em si), mas sim com o discurso, da mesma maneira não se trabalha com a história e sociedade como se elas não dependessem uma da outra.

Também se relacionam ao tema, os conceitos de condições de produção e memória. Onde o primeiro são as circunstâncias e o contexto imediato (sócio- histórico e ideológico). Já a memória é um interdiscurso, ou seja, o que vem antes, porém que interfere no presente (ORLANDI, 2009).

A linguagem já não é mais vista como feita do “acaso”, ou independente de acontecimentos anteriores e presentes, para essa análise, não se é indivíduo, mas sim sujeito, “assujeitado” a uma ideologia.

A Análise do Discurso considera que a linguagem não é transparente e procura detectar, então, num texto, como ele significa. Ela o vê como detentor de uma materialidade simbólica própria e significativa. Portanto, com o estudo do discurso, pretende-se apreender a prática da linguagem, ou seja, o homem falando, além de procurar compreender a língua enquanto trabalho simbólico que faz e dá sentido, constitui o homem e sua história (MENDES e SILVA, 2009. P. 16).

Orlandi (2009) enfatiza que o sujeito é livre, mas também é submisso, pois ao mesmo tempo que pode dizer tudo, também se submete a língua para compreender.

Submetendo o sujeito mas ao mesmo tempo apresentando-o como livre e responsável, o assujeitamento se faz de modo a que o discurso apareça como instrumento (límpido) do pensamento e um reflexo (justo) da realidade (ORLANDI, 2009, P. 51).

Orlandi (2009) enfatiza que Pêcheux em sua teoria, deixa claro que todo enunciado é sempre suscetível a tornar-se outro por estar à tona da interpretação. Pois se trata de linguagens acarretadas por ideologias. As últimas devem ser compreendidas, vistas como existentes, para que as pessoas percebam a linguagem como ideológica e não ingênua.

A análise do discurso não procura o sentido verdadeiro, mas o real sentido em sua materialidade linguística e histórica, a ideologia não se aprende e o inconsciente não se controla com o saber. A própria língua funciona ideologicamente, tendo em sua materialidade esse jogo. (ORLANDI, 2009, P. 59).

A análise do discurso também tem bases nas ideias de Karl Marx e Althusser (conceitos como ideologia são frisados), onde essas representações de ideias podem auxiliar no controle da classe dominante para com a inferior. Através da linguagem ideológica, a classe dominante se sobrepõe.

Os discursos estão acarretados de ideologia, que se não questionados e levados em considerações, são passados como verdades indiscutíveis, o que não existe para a análise do discurso.

Corra como uma garota

A campanha Like a Girl da empresa Always e Lauren Greenfield, buscou ressignificar a frase: “Como uma garota”, no vídeo pedia-se para algumas mulheres adultas correrem “como uma garota”, e elas imediatamente simulavam correr de forma delicada, uma delas simulou a frase: “meu cabelo, oh Deus..”. O mesmo aconteceu com os homens que se pediu para lutarem “como uma garota”, eles simulavam fazer delicadamente, sem força, com gestos bizarros.

Entretanto, quando foi pedido a jovens garotas que fizessem o mesmo, o resultado foi totalmente diverso, elas faziam o melhor que podiam, uma das meninas foi questionada sobre o que significava quando diziam para ela correr como uma garota, e ela respondeu:  “Significa, correr o mais rápido que você puder.”, o vídeo continua com a pergunta: “Quando fazer as coisas ‘como uma garota’ se torna um insulto?”, umas das garotas afirma que quando dizem que alguém corre ou joga como uma garota, é como se estivessem dizendo que as meninas são fracas e não são tão boas quanto os homens.

Lauren Greenfield que dirigiu a produção do vídeo disse que um dos objetivos foi analisar como “fazer algo como uma garota” é encarado como pejorativo e interfere na autoestima das meninas, e afirmou: “[...] por vezes, o que parece pequeno, como dizer ‘Oh, você corre tipo uma menina’, são só palavras, mas eu penso que no momento em que as identidades são tão frágeis, isso pode ser verdadeiramente devastador.”. Entretanto, divergindo de Lauren, afirma-se neste trabalho que palavras não são só palavras. Pois eles produzem uma série de ressonâncias e significações socialmente construídas, como dito anteriormente as palavras não são inocentes.

A diretora destacou que pode observar na produção da campanha que a associação negativa de fazer algo “como uma garota”, surge a partir dos 12 ou 13 anos. Ela destacou que o mais emocionando foi notar que algumas mulheres após simularem correr com fragilidade e delicadeza, falavam: “espera um minuto, porquê fiz isso assim?”. A linguagem cria naturalização de pensamentos e comportamentos, de modo que dificilmente o posto e imposto é questionado.

Percebe-se que as próprias mulheres considerarem “correr como uma garota”, um ato estereotipado e fixado como delicado e fraco, o que se dá pela ideologia arraigada no termo “garota”, que frisa conceitos históricos, da submissão e dependência da mulher ao homem, conceitos também do inconsciente, pois quando a mulher corre daquela maneira ela não percebe que está “representando” discursos.

Portanto, o estudo da análise do discurso é fundamental para o desvelamento da realidade. Um discurso não é neutro, carrega em si ideologias, conceitos pré-estabelecidos e significações impostas.

Como foi demonstrado no trabalho “fazer algo como uma garota” tem contornos de fraqueza e fragilidade, significado que foi socialmente construído por uma sociedade machista e excludente. Para criar uma máscara de “obviedade” a linguagem é usada como instrumento de alienação e desconhecimento, de forma que esgota, escamoteia os questionamentos.

Portanto é imprescindível desvendar os territórios (des)conhecidos da linguagem, submetê-la às hipóteses críticas e reformular a linguagem instituída. Percorrer os caminhos do dito e não-dito, evidenciando que a linguagem por vezes ao invés de revelar, pode encobrir e ludibriar.


Notas e Referências:

ALWAYS. #TipoMenina com a diretora Lauren Greenfield. 2014, vídeo. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=LuX6dmLTRkA>. Acesso em: 02/06/2016.

GREENFIELD, Lauren. Like a girl. 2014, vídeo. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=aM-ZRggWTjw>. Acesso em: 19/06/2016.

Mendes e Silva, M. A. S. (2005). On Discourse Analysis. Revista de Psicologia da UNESP, 4(1), 16-40. Disponível em: <http://186.217.160.122/revpsico//index.php/revista/article/viewFile/30/55>. Acesso em: 26/06/2016.

ORLANDI, Eni P. Análise de discurso. Campinas: Editora Pontes, 2009. Disponível em: <https://docs.google.com/file/d/0B2wn2mmgpSR8Qm94cDdwVWY2cUU/view?pref=2&pli=1>. Acesso em: 21/06/2016.

WARAT, Luis Alberto. A ciência jurídica e seus dois maridos. Santa Cruz do Sul: Faculdade Integradas de Santa Cruz do Sul, 1985.

WARAT, Luis Alberto. Manifestos para uma Ecologia do Desejo. São Paulo: Editora Acadêmica, 1990.

WARAT, Luis Alberto. O direito e sua linguagem. 2º versão. Sergio Antonio Fabris Editor. 1995.


Patricia Cordeiro. . Patrícia Cordeiro é graduanda em Direito e Jornalismo, e membro da página Mulheres Abolicionistas (Confira aqui: https://www.facebook.com/mulheresabolicionistas). . ..   


Rafaela Ghelfond Bacaltchuk. . Rafaela Ghelfond Bacaltchuk é atriz, graduanda em Comunicação Social – Jornalismo e apaixonada por escrita e cultura. . .


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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


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