ANÁLISE DE DISCURSO: LEI DE ABUSO DE AUTORIDADE E DISCURSO TRANSVERSO

08/06/2020

No dia 05 de setembro de 2019, foi publicada no Diário Oficial da União a Lei nº 13.869/2019, conhecida como Lei de Abuso de Autoridade. Essa Lei tem como foco a punição de condutas ilícitas cometidas por agentes públicos, e possui aplicabilidade em todo o território nacional desde 05 de janeiro de 2020 (ou seja, 120 dias após sua publicação, conforme determinou o artigo 45 da Lei).

Destaca-se que diversos Juízes do Brasil prolataram decisões criticando essa nova Lei, como foi o caso da Juíza Pollyanna Cotrim, de Pernambuco, que ordenou a soltura de 12 acusados que respondem processo por tráfico de drogas, causando impacto midiático. Na fundamentação, a juíza afirmou que ao juiz não compete ter desejos, sendo limitado a aplicar. Disse ainda que: “Assim, diante da imposição da soltura por força da Lei aprovada pelo Congresso Nacional, expeça-se o competente alvará de soltura em favor dos acusados". Ocorre, entretanto, que a Lei ainda não estava em vigor, não havendo como se falar da referida imposição de soltura em razão da Lei de Abuso de Autoridade.

Em outros casos, Magistrados se recusaram a realizar penhora, em processos de execução, afirmando que temer serem punidos pela Lei de Abuso de Autoridade, prática se multiplicou por todo o Brasil, sendo objeto de recurso por parte dos advogados. O Desembargador da 30ª câmara de Direito Privado do TJ/SP, julgou um desses recursos e em sua fundamentação afirmou que:

Tudo indica que o magistrado, descontente com a aprovação da nova lei de abuso de autoridade, resolveu se utilizar do processo para promover uma ação revoltosa totalmente infantil, transformando a relevante atividade do exercício da jurisdição em paspalhice política, a revelar sua total imaturidade para o exercício da função judicante (Andrade Neto, 2019).

O Desembargador afirmou ainda, que a atitude do Magistrado de primeiro grau, ao invocar a Lei de Abuso de Autoridade para justificar suposto perigo real de imputação de crime, se traduz em alegação não apenas desarrazoada, mas insensata e irresponsável.

Diversos órgãos públicos manifestaram desaprovação à Lei, como o Ministério Público Federal (MPF), a Associação Nacional dos Magistrados Estaduais (ANAMAGES) e a Frente Associativa da Magistratura e do Ministério Público – FRENTAS (que tem a seguinte composição: Associação Nacional dos Procuradores do Trabalho – ANPT, Associação dos Magistrados Brasileiros – AMB, Associação Nacional dos Membros do Ministério Público – CONAMP, Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho – ANAMATRA, Associação dos Juízes Federais do Brasil – AJUFE, Associação Nacional dos Procuradores da República – ANPR, Associação Nacional do Ministério Público Militar – ANMPM, Associação do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios – AMPDFT e Associação dos Magistrados do Distrito Federal e Territórios – AMAGIS/DF).

Dito isso, surge o problema de pesquisa: quais os efeitos de sentidos presentes nos discursos transversos dessas notas de repúdio. A perspectiva teórica utilizada no trabalho é a Análise de Discurso Francesa (Michel Pêcheux), especialmente o conceito de discurso transverso. Tem-se como corpus de pesquisa, as notas de repúdio produzidas pelo Ministério Público Federal (MPF), pela Associação Nacional dos Magistrados Estaduais (ANAMAGES) e pela Frente Associativa da Magistratura e do Ministério Público – FRENTAS.

O objetivo é analisar as notas de repúdio produzidas pelos órgãos citados, observando quais os discursos transversos presentes e quais seus efeitos de sentidos. Quanto à abordagem, a pesquisa é qualitativa, buscando-se analisar, acerca do material selecionado, seus efeitos de sentido em perspectiva discursiva materialista, considerando, dessa forma, as condições de produção. 

 

1 Aportes teóricos

No fim de década de 60, surge na França a Análise de Discurso cunhada por Michel Pêcheux e seu grupo de estudos. “Convencionou-se chamar a essa abordagem de escola francesa de análise de discurso, a qual tem em Michel Pêcheux seu principal formulador” (Ferreira, 2010, p. 4).

Ferreira (2010), no texto intitulado “Análise do Discurso e suas interfaces”, afirma que a linguística, o materialismo histórico e psicanálise fazem parte da construção da Análise de Discurso pecheuxtiana, expondo que a Análise de Discurso surge como uma intervenção transformadora ao excessivo formalismo linguístico, objetivando desautomatizar as relações com a linguagem.

Assim, Ferreira (2010) demonstra que a Análise de Discurso pecheuxtiana foi fundamental para deslocar e repensar os conceitos de língua, historicidade e sujeito, que até o momento não tinham sido profundamente trabalhados, e ressalta:

A AD caracteriza-se, como se vê, desde o seu início, por um viés de ruptura a toda uma conjuntura política e epistemológica e pela necessidade de articulação a outras áreas das ciências humanas, especialmente a linguística, o materialismo histórico e a psicanálise (Ferreira, 2010, p.2).

A Análise de Discurso pecheuxtiana reconceitua os conceitos da psicanálise, linguística e materialismo histórico, fazendo os deslocamentos necessários para definir os limites dessa teoria, por isso, não é considerada interdisciplinar.

Para Magalhães e Mariani (2010), o sujeito é constituído pelo esquecimento daquilo que o determina, de forma que ele não tem consciência e não se dá conta como é construído no processo discursivo, no funcionamento da linguagem. Há um apagamento das condições histórico-sociais, políticas, jurídicas de sua constituição enquanto sujeito, e da determinação sobre o que pode e deve ser dito, dentro de determinada formação discursiva (dentro de uma formação ideológica).

Dito isso, cabe analisar, através da Análise de Discurso pecheuxtiana, os dizeres e efeitos de sentido das notas de repúdio emitidas pela Magistratura e Ministério Público referente à Lei de Abuso de Autoridade.

No Brasil, a Lei 13.869/2019 revogou a Lei 4.898/1965 e dispositivos do Decreto-Lei nº 2.848 (Código Penal), além de alterar a Lei nº 7.960/1989, a Lei nº 9.296/1996, a Lei nº 8.069/1990, e a Lei nº 8.906/1994e dispositivos do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal). A nova Lei foi motivo de elogios e críticas por parte de diferentes setores jurídicos. E motivo de notas de repúdio por parte do Ministério Público e Magistratura.

Antes de adentrar na análise das notas, destaca-se que, de acordo com a Conjur (2019) diversos outros países possuem punição para o crime de abuso de autoridade cometido por membro do poder público, senão vejamos:

Na Alemanha, a legislação tipifica o crime de “violação ou torsão do Direito”. Ela proíbe a conduta do magistrado ou membro do Ministério Público que, na condução ou decisão de uma questão jurídica, “viole ou vergue” o Direito ou as regras legais. A pena é de um a cinco anos de prisão, com possível perda do cargo.

Em Portugal, a discussão sobre abuso de autoridade também anda acalorada e a realidade é parecida com a do Brasil. “Nossa cultura tem um traço muito peculiar. A maneira como vemos a "autoridade" tem algo de reverencial que só tem no terceiro, quarto e quinto mundos. Você não vê nos Estados Unidos ou na Europa carros de polícia sobre calçadas, praças ou esquinas de padarias onde é proibido estacionar. O curioso não é a autoridade abusar, mas a naturalidade como que convivemos com esses abusos. Isso condiciona tudo”, comenta o jurista e o professor catedrático de Direito Constitucional da Universidade de Lisboa, Carlos Blanco de Morais. As penas previstas na legislação sobre abuso de autoridade estão descritas nos artigos 377 e 382 A do código penal português. As punições variam de multas a suspensões e podem chegar a até oito anos de prisão.

Nos Estados Unidos, o código criminal prevê crimes de oficiais públicos federais em geral. Um item específico trata do crime de “privação de direitos de cidadãos” e pode ser aplicado também na atuação de magistrados.

[...] Na França, o código penal é bastante rigoroso com autoridades públicas que cometem abuso de poder. Os crimes estão descritos dos artigos 432-4 ao 432-9 e abarcam práticas como prolongamento indevido de prisão, atos que atentem contra a inviolabilidade de domicílio e até quebra de sigilo de correspondência (CONJUR, 2019).

A nota pública contra a Lei de abuso de autoridade divulgada pelo Ministério Público Federal (MPF), afirma, entre outras coisas, que a instituição é contra a lei “por representar risco à atuação séria do Ministério Público” (grifo dos autores). Ao que parece, “atuação séria” é uma atuação diferenciada que precisa ser marcada pelo termo “séria” (e que possui alguma evidência entre os membros do Ministério Público), de modo que a Lei de Abuso de Autoridade é tomada como um obstáculo para essa chamada “atuação séria”. E diante disso, é preciso muita atenção sobre as proibições das leis, pois elas revelam as condutas necessárias para uma “atuação séria”, que não seria possível respeitando a Lei de abuso de autoridade, a considerar a nota emitida pelo MPF (ou pelo menos, a Lei dificultaria essa dita atuação).

Essa ilusória “evidência” de sentido acerca do que seria uma “atuação séria”, apresenta efeitos de obviedade para quem lhe emprega, possuindo necessariamente cunho ideológico, de modo que essa “evidência” é construída pelo próprio funcionamento da ideologia. Mas o sentido das palavras não possui existência por si mesmo (na Análise de Discurso, o sentido não é único e sempre pode ser outro), sendo determinado pela posição ideológica e pelos processos de produção sócio-históricos. Há modificação do sentido a depender de quem o emprega (Pêcheux, 2014, p. 146).

Neste ponto, é importante relembrar Pêcheux:

É a ideologia que fornece as evidências pelas quais “todo mundo sabe” o que é um soldado, um operário, um patrão, uma fábrica, uma greve etc., evidências que fazem com que uma palavra ou um enunciado “queiram dizer o que realmente dizem” e que mascarem, assim, sob a “transparência da linguagem”, aquilo que chamaremos o caráter material do sentido das palavras e dos enunciados (2014, p. 146).

Explica-se que já era esperado que Magistratura e Ministério Público, inclusive juntos, a exemplo da FRENTAS (Frente Associativa da Magistratura e do Ministério Público), se posicionariam contra a Lei de Abuso de Autoridade, em razão da formação discursiva a que estão filiados (dentro de uma formação ideológica). Assim como também era esperado que a OAB[1] se posicionaria favoravelmente à aludida Lei.

Isso, porque há uma determinação do que pode e deve ser dito dentro de uma formação discursiva, ainda que sempre seja possível a falha dessa determinação, falha que envolve o fato de o processo de assujeitamento ser sempre incompleto/inacabado, não-todo (inexistindo ritual sem falhas). Contudo, em regra, a determinação da formação discursiva se realiza, confirmando-se acerca da materialidade analisada.

Sobre o conceito de formação discursiva na Análise de Discurso, destaca-se:

Chamaremos, então, formação discursiva aquilo que, numa formação ideológica dada, isto é, a partir de uma posição dada numa conjuntura dada, determinada pelo estado da luta de classes, determina o que pode e deve ser dito (articulado sob a forma de uma arenga, de um sermão, de um panfleto, de uma exposição, de um programa etc). (Pêcheux, 2014, p. 147).

Diante do corpus de pesquisa, que abrange notas de repúdio produzidas pelo Ministério Público Federal (MPF), pela Associação Nacional dos Magistrados Estaduais (ANAMAGES) e pela Frente Associativa da Magistratura e do Ministério Público – FRENTAS), optou-se por trabalhar, especialmente, com o conceito de discurso-transverso, por razões que ficarão mais claras propriamente na análise.

Nesse momento, se faz importante abordar o conceito de discurso transverso, de modo a construir o caminho para a análise. Isso dito, pontua-se que Pêcheux (2014, p. 153) afirma o seguinte sobre o discurso-transverso:

Observemos que o “discurso-transverso” remete à aquilo que, classicamente, é designado por metonímia, enquanto relação da parte com o todo, da causa com o efeito, do sintoma com o que ele designa etc. Vemos, ao mesmo tempo, que o que chamamos anteriormente “articulação” (ou “processo de sustentação”) está em relação direta com o queacabamos agora de caracterizar sob o nome de discurso-transverso, uma vez que se pode dizer que a articulação (o efeito de incidência “explicativa” que a ele corresponde) provém da linearização (ou sintagmatização) do discurso-transverso no eixo do que designaremos pela expressão intradiscurso, isto é, o funcionamento do discurso com relação a si mesmo (o que eu digo agora, com relação ao que eu disse antes e ao que eu direi depois; portanto, o conjunto dos fenômenos de “correferência” que garantem aquilo que se pode chamar o “fio do discurso”, enquanto discurso de um sujeito)

O discurso-transverso é da ordem dos dizeres que atravessam, sustentam e constituem determinado discurso. Quando, por exemplo, o Ministério Público Federal (MPF), defende que, com a aprovação da Lei de Abuso de Autoridade haverá risco à atuação séria do Ministério Público, há um discurso-transverso em funcionamento, trazendo efeitos de sentido de que a atuação séria depende de algumas ações que agora foram tipificadas como abuso de autoridade; revelando, também, que “atuação séria” possui diferença acerca de só “atuação”, tendo fronteiras diversas e exigindo comportamentos diversos do agente público.

Feitas essas considerações teóricas, passa-se ao capítulo seguinte, incumbido da análise e discussão do referido corpus.

 

2. Análise e discussão

Na nota pública divulgada pelo Ministério Público Federal (MPF), contra a Lei de Abuso de Autoridade, chama a atenção, além da já destacada “atuação séria”, o seguinte trecho:

Nos termos em que o PL foi aprovado, poderão ser consideradas abuso de autoridade e, portanto, crime, diversas ações cometidas por agentes e membros dos três poderes, do Ministério Público, dos tribunais e conselhos de contas, das Forças Armadas, das polícias, da Receita Federal, do IBAMA, bem como de outros agentes públicos que realizam fiscalização e prevenção, por atuarem no exercício de suas atribuições legais e constitucionais. Entre os pontos abordados pelo projeto, destacam-se a criminalização do agente por abuso de autoridade que começar processo penal, civil ou administrativo sem justa causa fundamentada; que mantenha presos de ambos os sexos na mesma cela ou espaço de confinamento; que proceder à obtenção de prova, em procedimento de investigação ou fiscalização, por meio manifestamente ilícito; que induzir ou instigar pessoa a praticar infração penal com o fim de capturá-la em flagrante delito, fora das hipóteses previstas em lei; que prestar informação falsa sobre procedimento judicial, policial, fiscal ou administrativo com o fim de prejudicar interesse do investigado; que impedir encontro reservado entre preso e seu advogado; bem como condena o agente infrator ao pagamento de indenização, inabilitação para o exercício do cargo, mandato ou função, além de perda do cargo.

O MPF manifesta inconformidade com proibições, como manter presos de ambos os sexos na mesma cela ou espaço de confinamento, sendo que isso, por si só, já não corresponde a uma conduta pautada na legalidade, visto que fere o princípio da dignidade humana previsto no artigo 1º, inciso III, da Constituição Federal.

Há insurgência ainda, com a obtenção de provas por meios manifestamente ilícitos, o que também é vedado pela Constituição, conforme o artigo 5º, inciso LVI, que consigna que são inadmissíveis, no processo, provas obtidas de forma ilícita. E por fim, acerca desse trecho, cumpre destacar a insurgência sobre a proibição de prestar informações falsas para o fim de prejudicar os interesses do acusado.

A preocupação com a criminalização dessas condutas, já notoriamente proibidas pela Constituição Federal, expõe o funcionamento do seguinte discurso-transverso: existem processos iniciados sem justa causa fundamentada;  ocorre o confinamento de presos de ambos os sexos no mesmo ambiente; procede-se a obtenção de provas por meios manifestamente ilícitos; se induz e instiga pessoa a praticar infração penal com o objetivo de realizar a captura em flagrante; são prestadas informações falsas com o intuito de prejudicar o acusado e são impedidos encontros reservados entre o acusado e seu advogado. São esses (não só) os dizeres transversos presentes na nota pública do MPF.

 Já a Frente Associativa da Magistratura e do Ministério Público – FRENTAS, demonstrou em sua nota pública preocupação com a produção de “uma lei subjetiva, vaga e repleta de imperfeições”. A FRENTAS afirma sobre a Lei, que defende o aperfeiçoamento, contudo, sem “açodamento e sem gerar o alto potencial de criminalização da regular atuação de juízes e membros do Ministério Público”.

Além disso, a FRENTAS afirmou ao final da nota que: “buscarão uma regulamentação precisa dos termos vagos e imprecisos previstos na lei, na busca por dar respaldo e segurança jurídica à atuação de Magistrados e membros do Ministério Público em todo o país”.

Cabe explicar que a FRENTAS não está necessariamente errada quando aponta a ocorrência de termos vagos e subjetivos na Lei, que abrem espaço para um grande potencial de criminalizações. Ocorre que essa preocupação com termos vagas e subjetivos não é a mesma quando os alvejados são outros (muito pelo contrário).

Sobre isso, vejamos o extremamente vago e subjetivo exemplo da prisão por “ordem pública”, que consta no artigo 312 do Código Penal como algo possibilitador da prisão preventiva:

Art. 312.  A prisão preventiva poderá ser decretada como garantia da ordem pública, da ordem econômica, por conveniência da instrução criminal, ou para assegurar a aplicação da lei penal, quando houver prova da existência do crime e indício suficiente de autoria.

Esse é o exemplo, talvez, do termo mais vago e subjetivo de todo o sistema penal brasileiro, e sem que ocorra nenhuma nota pública da Magistratura ou da Promotoria em sua oposição, bem como sem existir nenhuma grande mobilização no sentido de apontar a vagueza e subjetividade produtora de abusos, acerca das criminalizações fundamentadas nesse sobremaneira vago e subjetivo artigo do Código Penal.  

Inclusive, muito pelo contrário, os dados do sistema penal brasileiro demonstram que ambos seguem pedindo e decretando prisões preventivas com base nesse “fundamento”, e isso sem nenhum incômodo/constrangimento, muito menos notas públicas.

Frisa-se, para fins de compreensão do alcance desse exemplo de termo demasiado vago e subjetivo, que, em consulta ao site do Jusbrasil, digitando as palavras “prisão preventiva ordem pública” e selecionando o filtro “Jurisprudência”, o sistema mostra mais de um milhão e setecentos mil resultados de prisões que mencionam a ordem pública como fundamento, explicitando a gravidade da situação.

Ou seja, a acentuada subjetividade da Lei que permite que milhões de pessoas sejam criminalizadas, já existe como regra no Brasil, quase como um interdiscurso existe, independentemente e em outro lugar. Mas agora, a crítica da vagueza foi “descoberta” por outra classe da sociedade, a dos Juízes e Promotores, que, em suas posições dentro do sistema, estruturalmente jamais precisaram se preocupar com o risco de criminalizações, que recaem majoritariamente sobre as classes baixas.

Curiosamente, com essa “descoberta” da crítica da vagueza, tem-se que o “crime” deixou de ser tomado como um ente ontológico, e se passou a apontar a obscuridade e arbitrariedade dos processos de criminalização, coisa que historicamente é o papel da defesa.

Há, então, um deslocamento do “crime” para o “processo de criminalização”. Em outras palavras, o “crime” é tomado como algo não natural, fruto de um processo, surgindo o receio por parte dos que produziram notas, de os processos de criminalização serem “injustos” contra eles.

Note-se que esse é o temor estruturalmente experimentado por uma outra classe, que ocupa majoritariamente as prisões brasileiras, e que não é a classe dominante. Mas, no dia-a-dia, esse temor não é “levado a sério” pela classe dominante, sendo apagado com o ditado de que “quem não deve não teme”.

Agora, os que emitiram notas é que suportam o peso desse pressuposto, de modo que também “descobriram” os processos de criminalização (e justamente quando podem ser alvejados). Em um só momento, ocorrem essas “descobertas” (que não são nada novas na crítica criminológica), que, no entanto, são recalcadas/apagadas quando os potenciais alvejados são outros, eles.

Associando com a atuação histórica da defesa, faz sentido esse conteúdo recalcado ser lembrado nas notas, na medida em que existe agora um comportamento defensivo contra as próprias possibilidades de serem criminalizados, atrelado a um discurso crítico dessas criminalizações.

E, como não é possível segurar o sentido, a Lei não é vaga e subjetiva somente nos pontos elencados pela FRENTAS, mas o é também quando afirma no artigo 1º, §2º, que: “A divergência na interpretação de lei ou na avaliação de fatos e provas não configura abuso de autoridade”.

Essa afirmação abre precedente para qualquer defesa contra uma acusação de abuso de autoridade, um “Az” que pode ser invocado e acatado a depender dos interesses em jogo.  Esse é o funcionamento ideológico, que produz a evidência de que sequer há subjetividade, ambiguidade ou termos vagos quando a Lei é aplicada em benefício deles. É também o esquecimento nº 2 em funcionamento, pois há uma zona de rejeição que gera efeito de ocultação parcial, constituindo o universo do selecionado e do rejeitado, sem que o sujeito se dê conta desse processo (Pêcheux e Fuchs, 1997, p. 176).

A Associação Nacional dos Magistrados Estaduais (ANAMAGES) se opôs à Lei de Abuso de Autoridade, afirmando, em síntese, que a Lei acaba “invertendo os valores dos bens jurídicos a serem protegidos em um Estado Democrático de Direito, protegendo aqueles que tanto mal e prejuízo têm dado ao Brasil”.

Os implícitos desse discurso se fundamentam na alegação de que a Lei, que tramitava há mais de dois anos, teve sua aprovação de forma acelerada nos últimos tempos, em razão de processos em curso contra acusados de crimes de corrupção. Esse fato faz parte da memória discursiva desse discurso, definida por Pêcheux (2015, p. 46) como: “A memória discursiva seria aquilo que, face a um texto que surge como acontecimento a ler, vem restabelecer os ‘implícitos’ (quer dizer, mais tecnicamente, os pré-construídos, elementos citados e relatados, discursos-transversos, etc.)”.

Não é totalmente equivocada a hipótese de que em virtude do alcance criminal de outras classes, a Lei teve sua aprovação acelerada, entretanto, é preciso ponderar que a Lei irá refletir para todos os acusados, e que o conteúdo se trata de garantias mínimas de qualquer pessoa.

Em resumo, o que a Lei de Abuso de Autoridade fez, foi tipificar como crime atos já manifestamente ilegais, já vedados pela Constituição Federal. Mas, com isso, emergiram diversos discursos, e com eles dizeres transversos que acabaram por explicitar o funcionamento da chamada “Justiça” no país, que não existe sem a realização de atos ilegais.

Considerações Finais

A Lei de Abuso de Autoridade e os discursos produzidos antes e após a sua publicação, revelaram as práticas do sistema de justiça brasileiro, quando órgãos, a exemplo do MPF, se insurgiram abertamente contra normas que vedam, por exemplo, a prestação de informação falsa, prisão de pessoas de sexos diferentes na mesma cela ou espaço de confinamento, início de processo sem justa causa fundamentada, obtenção de provas por meios manifestamente ilícitos entre outros. O que expôs o funcionamento de um preocupante discurso-transverso, que aponta para a prática desses atos como abrangente de uma “atuação séria”, que não deveria ser afetada pela referida Lei.

Outro ponto que merece atenção, é a preocupação demonstrada nas notas públicas acerca da subjetividade da Lei, e da presença de termos vagos, que possibilitariam a criminalização. Situação que ocorre, por exemplo, em enorme escala, com a noção de “ordem pública” como fundamento de prisão preventiva, presente no artigo 312 do Código de Processo Penal, e que é diariamente utilizada para pedir prisões (por parte de Promotores) e deferir prisões (por parte de Juízes), sem que isso cause nenhum incômodo, e sem que isso enseje notas de repúdio (a exemplo das notas analisadas), revelando a ocorrência do esquecimento nº 2, da ordem da seleção e rejeição.

A Lei, em apertada síntese, acrescentou punição penal para atos que já eram proibidos pela Constituição Federal, e com isso gerou um enorme descontentamento da Magistratura e Promotoria, a ponto de serem elaboradas as notas de repúdio analisadas, produzindo efeitos de sentido que confirmam uma regularidade de práticas preocupantes no sistema penal, como parte do que seria uma “atuação séria”. O discurso-transverso revela funcionamentos, práticas, atos reiterados que se instalam como evidência, mascarando o caráter material dos sentidos.

Destarte, o descontentamento em razão da Lei e sua incidência sobre atos ilícitos já proibidos pela Constituição Federal, evidencia como a ideologia dominante naturaliza que, no funcionamento do sistema, uma atuação considerada séria envolve todas essas condutas ilícitas, efeito de sentido preocupante, do qual depreende-se que não há funcionamento do sistema penal sem a realização de atos ilegais vinculados à imagem que se tem de uma “atuação séria”.

 

Notas e Referências

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BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, 5 out. 1988. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>. Acesso em: 8 dez. 2019.

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FEDERAL, Ministério Público. Nota Pública. MPF, 15 ago. 2019. Disponível em: <http://www.mpf.mp.br/pgr/documentos/notapublicaccrsepfdc.pdf>. Acesso em: 8 dez. 2019.

FERREIRA, Maria Cristina Leandro. Análise do Discurso e suas interfaces: o lugar do sujeito na trama do discurso. ORGANON – Revista do Instituto de Letras da UFRGS. Rio Grande do Sul, v. 24, n. 48 (2010).

GADET, Françoise e HAK, Tony. Por uma análise automática do discurso: uma introdução à obra de Michel Pêcheux. (Trad. Bethânia S. Mariani et al.). 2.ed. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 1993.

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[1] BRASIL, Ordem dos Advogados do. Nota pública - Lei do abuso de autoridade. OAB, 21 ago. 2019. Disponível em: < https://www.oab.org.br/noticia/57469/nota-publica-lei-do-abuso-de-autoridade>. Acesso em: 08 dez. 2019.

 

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