ANÁLISE DE CASO: ARTIGO 19 DO MARCO CIVIL DA INTERNET E ABUSO DE DIREITO    

30/07/2020

Coluna Defensoria e Sistema de Justiça / Coordenador Jorge Bheron

Em determinado caso, na Defensoria Pública, uma assistida (resguardada a anonimização em razão do segredo de justiça) buscou assistência jurídica gratuita para retirada de perfil falso em aplicativo de relacionamentos, com indicação de seu telefone celular na biografia e fotos suas, mas com nome diferente. A assistida passou a ser importunada diariamente, com mensagens diretas de interessados em seu WhatsApp. Entretanto, não conseguiu realizar o print do perfil falso criado (exibido de forma aleatória), ficando inviável a busca específica a qualquer perfil. A assistida, então, lavrou um boletim de ocorrência e registrou reclamações nos canais de atendimento da plataforma. A Defensoria Pública notificou extrajudicialmente a aplicação de internet para remoção do perfil fake. Porém, em resposta, esta informou que não havia identificação clara e específica do conteúdo apontado como infringente, que permita a localização inequívoca do material. Além disso, a empresa de tecnologia ressaltou que a medida de tornar indisponível o material falso dependeria de ordem judicial. Então, a Defensoria Pública ingressou com ação de obrigação de fazer com pedido liminar cumulada com indenizatória por danos morais.

Diante do caso em análise, além do dever de retirar o perfil fake, haveria responsabilidade civil do aplicativo de relacionamento? O artigo 19, caput do Marco Civil da Internet (MCI) estabelece: “Com o intuito de assegurar a liberdade de expressão e impedir a censura, o provedor de aplicações de internet somente poderá ser responsabilizado civilmente por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros se, após ordem judicial específica, não tomar as providências para, no âmbito e nos limites técnicos do seu serviço e dentro do prazo assinalado, tornar indisponível o conteúdo apontado como infringente, ressalvadas as disposições legais em contrário”.

Porém, indaga-se: bastaria o intérprete aplicar a letra fria da lei, tornando absoluta a interpretação desse dispositivo? Haveria nuances no caso narrado, a ponto de demandar o sopesamento de outros valores e a reflexão dessa norma inserida no sistema jurídico?[1] Essa será a discussão central deste artigo.

Em nossa sociedade complexa (e da informação), mais uma vez o STF foi provocado a decidir a validade de uma norma diante de um novo conflito.[2] O RE 1037396 (Tema 987 de Repercussão Geral) questiona a constitucionalidade do artigo 19 do MCI, que versa sobre a responsabilidade de provedores de internet, websites e aplicativos de redes sociais pelos conteúdos ofensivos ou ilegais gerados por terceiros.

O tema envolve duas questões: i) O provedor de aplicações de internet deve remover conteúdo quando tão somente notificado extrajudicialmente? O texto legal dispõe negativamente, porém está sendo impugnada a sua constitucionalidade por impor ao ofendido obter uma decisão judicial; (ii) Em caso de violação de políticas e termos de uso do provedor de aplicações da internet, este poderia retirar a postagem ou deveria obter a tutela jurisdicional?

O “melhor dos mundos” para as aplicações de internet seria retirar conteúdos somente por decisão judicial, mas com a possibilidade de derrubar conteúdos espontaneamente quando violados os seus termos de uso.

Investigando sistemas estrangeiros bastante influentes, conforme o modelo norte-americano, o artigo 230 do Communications Decency Act (1996) isenta os provedores de aplicação de internet da responsabilidade pelos conteúdos ofensivos publicados por terceiros, fomentando, todavia, a remoção espontânea de conteúdos considerados ilícitos e contrários às políticas e termos de uso do provedor – “bloqueio do bom samaritano” (SOUZA, 2014).

O modelo alemão, por sua vez, no Netzwerkdurchsetzungsgesetz – Network Enforcement Act (2017), confere aos provedores de aplicação com mais de dois milhões de usuários, em seu território, a responsabilidade e atribuição de avaliar, a partir da notificação extrajudicial de usuários, a ilegalidade do conteúdo publicado por terceiros. Na hipótese de conteúdo manifestamente ilícito, a remoção ou o bloqueio deve ocorrer em 24 horas, enquanto aos demais materiais ilegais, o prazo é de sete dias. O Ato determina aos provedores, inclusive, a disponibilização de canais de atendimento aos usuários em suas plataformas. As decisões do provedor devem ser fundamentadas e imediatamente informadas ao usuário notificador. A legislação confere, ainda, a opção aos provedores de aplicação de encaminhamento do conteúdo denunciado a uma instituição autorregulada, independente e especializada, reconhecida pelo Departamento de Justiça Federal da Alemanha, criada para moderação desse tipo de conflito. Em caso de descumprimento do Ato, o indivíduo responsável pelo controle das notificações poderá ser sancionado com uma de multa de até € 5 milhões, e o provedor de aplicação poderá ser multado em até € 50 milhões (CARVALHO FILHO; PEIXOTO, 2019).

O presente Tema 987 de Repercussão Geral ainda está pendente de julgamento, devendo o STF observar os referidos modelos, bem como “conformar a cultura político-jurídica ao arcabouço normativo de regulação da rede” (CARVALHO FILHO; PEIXOTO, 2019).

No caso em exame, o defensor público concluiu ser impossível uma empresa de tecnologia não conseguir localizar em seu sistema um perfil falso com a indicação do telefone celular da vítima, estando, assim, cumprido o requisito do artigo 19, § 1º do MCI.[3] Tanto que, após a concessão da tutela de urgência, o aplicativo localizou e bloqueou o perfil fake.

Ademais, nos próprios termos de uso, a aplicação de internet pode remover o conteúdo, bloquear o acesso, desativar a conta ou contatar as autoridades em caso de identificação de conduta que prejudique terceiros.

Apesar de o artigo 19, caput do MCI isentar a responsabilidade da aplicação de internet por ato de terceiros, salvo quando houver descumprimento de ordem judicial, o caso estudado também envolveu a conduta omissiva da empresa diante das notificações para remoção do perfil falso (com imagens pessoais e número do celular da vítima) e da importunação atual e potencialmente diária por interessados em relacionamento com a vítima por WhatsApp, que sequer buscou os serviços do aplicativo.

No âmbito cível, fica nítido o abuso de direito, tornando-se a omissão um ato ilícito a ensejar indenização por danos morais. Nesses termos, o artigo 187 do Código Civil, in verbis: “Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes”.

Daniel Ustárroz (2019), baseado na máxima de Voltaire (“un droit porté trop loin devient une injustice”), explica que:

“o exercício desmedido de um direito, sem limitação, conduziria à injustiça por desconsiderar interesses legítimos alheios. [...] a cega obediência da literalidade da lei é enfocada mais como uma forma de perturbar a realização do direito do que propriamente um meio de encontrar a justiça. Os direitos prima facie reconhecidos no ordenamento precisam ser temperados, quando de sua aplicação concreta, para o respeito e a consideração dos direitos alheios”.

Evidentemente, o aplicativo tem o direito de manter ou remover os conteúdos de sua plataforma em homenagem à livre iniciativa (artigo 2º, V da MCI) e à liberdade de expressão da própria empresa e dos usuários (artigos 2º, caput e 3º, I), aplicando-se, a princípio, o artigo 19, caput; todavia, na hipótese deste artigo, o aplicativo excedeu os limites de sua finalidade social e econômica, nos termos do artigo 187 do CC.

A finalidade social e econômica do aplicativo envolve a aproximação de pessoas interessadas em relacionamentos nas redes, e não de permitir, mesmo com notificações da assistida e da própria Defensoria Pública, que uma vítima de perfil fake (não usuária da plataforma) seja importunada diuturnamente por interessados em seu telefone particular, afetando a sua privacidade e intimidade (artigo 3º, II do MCI). [4]

O princípio de interpretação constitucional da concordância prática ou harmonização preceitua a coordenação e combinação dos bens jurídicos em conflito de forma a evitar o sacrifício total de uns em relação aos outros, ou seja, a ponderação na colisão entre direitos fundamentais (CANOTILHO, 2003, p. 1224-1226).

No caso analisado, a privacidade e a intimidade da assistida restaram totalmente sacrificadas, já que o bloqueio ou a remoção do perfil fake não comprometeria a livre iniciativa da empresa, e nem mesmo a liberdade de expressão da empresa e dos usuários.  Assim, além do dever de remoção do conteúdo, a empresa de tecnologia deve ser responsabilizada por danos morais em decorrência de ato omissivo, que acentuou a violação da privacidade e intimidade da vítima, nos termos do artigo 5º, X da CRFB, e caracterizou o abuso de direito.

Esses e outros casos ligados às manifestações em redes sociais e às plataformas digitais cada vez mais estarão presentes na rotina da Defensoria Pública, que deverá estar sempre atenta às mudanças tecnológicas para exercer plenamente a sua função constitucional de “orientação jurídica, promoção dos direitos humanos e defesa, em todos os graus, judicial e extrajudicial, dos direitos individuais e coletivos, de forma integral e gratuita, aos necessitados” (artigo 134, caput da CRFB).

 

Notas e Referências

ADEODATO, João Maurício. Uma teoria retórica da norma jurídica e do direito subjetivo. São Paulo: Noeses, 2011.

CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 7. ed. Coimbra: Almedina, 2003.

CARVALHO FILHO, José S.; PEIXOTO, Anna Carolina Finageiv. STF analisa responsabilidade do provedor por conteúdo de terceiros. Conjur, 2019. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2019-dez-14/observatorio-constitucional-stf-analisa-responsabilidade-provedor-conteudo-terceiros#author. Acesso em 03.04.2020.

FERRAZ JR., Tercio Sampaio. Conceito de sistema no direito. São Paulo: RT, 1976.

HIRATA, Alessandro. Direito à privacidade. Enciclopédia jurídica da PUC-SP. Tomo de Direito Administrativo e Constitucional. São Paulo: PUC-SP, 2017.

SOUZA, Carlos Affonso Pereira. Responsabilidade civil dos provedores de acesso e aplicações de internet: evolução jurisprudencial e os impactos da Lei n 12.965/2014 (marco civil da internet). In: LEITE, George Salomão; LEMOS, Ronaldo (Coordenadores). Marco Civil da Internet. São Paulo: Atlas, 2014.

USTÁRROZ, Daniel. A atualidade da teoria do abuso do direito. GEN Jurídico, 2019. Disponível em: http://genjuridico.com.br/2019/01/14/a-atualidade-da-teoria-do-abuso-do-direito/. Acesso em 14 jul. 2020.

[1] Segundo Ferraz Junior (1976), o termo “sistema” vem do grego systema (syn-istemi), que significa “o composto, o construído”, com a ideia de uma totalidade construída, composta de várias partes. Explica que o sistema jurídico tem um caráter acabado, ainda que não perfeito; já o sistema da realidade dá a dimensão da sua imperfeição, pois é inacabado, dinâmico e em constante mutação. O sistema jurídico é dotado de uma estrutura plural e complexa, capaz de combinar a técnica da formação de hierarquias com a institucionalização de valores comuns e formas de cooperação. Reduzir o sistema jurídico a um conjunto de proposições e conceitos formalmente encadeados é desconhecer a pluralidade da realidade empírica imediatamente dada em relação à simplificação quantitativa e qualitativa dos conceitos gerais. Os fatos e as situações jurídicas devem ser entendidos como um entrelaçamento da realidade viva com as significações de direito, no sentido de que ambas se prendem fortemente uma à outra.

[2] Segundo Adeodato (2011, p. 56), “as diferenças entre os indivíduos na sociedade complexa chegam a níveis nunca dantes alcançados e as opiniões sobre o que é correto são tão pulverizadas que cada grupo tem a sua ética. Isso provoca um distanciamento cada vez maior entre o texto normativo significante e a norma jurídica significada e faz mais difícil prever como será a decisão concreta, tornando mais e mais obsoletas as concepções exegéticas, literais e filológicas, o que aumenta a importância daquele que decide no caso concreto, o papel do ato, a vontade de decidir. Esse fenômeno social vai enfraquecer a crença na possibilidade de textos normativos controlarem decisões casuísticas, o que significa diminuir a importância da legislação tradicional, exercida pelo Poder Legislativo. E vai aumentar a força do Judiciário, que fica por sua vez sobrecarregado e não consegue corresponder” (ADEODATO, 2011, p. 56).

[3] Artigo 19, § 1º do Marco Civil da Internet: “§ 1º A ordem judicial de que trata o caput deverá conter, sob pena de nulidade, identificação clara e específica do conteúdo apontado como infringente, que permita a localização inequívoca do material”.

[4] Segundo Hirata (2017), “a intimidade poderia ser considerada no âmbito do exclusivo, referente ao que alguém reserva para si, sem qualquer tipo de repercussão social, nem sequer ao alcance de sua vida privada. Já a vida privada, por mais isolada que possa ser, sempre se caracteriza pelo viver entre outros (por exemplo, em família, no trabalho, no lazer em comum)”.

 

O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.

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